Conhecido no meio espírita pela produção de livros em co-autoria com Chico Xavier, Waldo Vieira realizou um percurso que pode ser balizado em dois momentos: o primeiro, aquele de sua juventude, compreende o período em que desenvolveu a prática mediúnica sob a liderança e na companhia de Chico Xavier; a ruptura com o Espiritismo, em meados dos anos 60, marca a segunda etapa, fase em que, depois de dedicar-se ao estudo da medicina, decide investir numa carreira solo, assumindo, alguns anos mais tarde, a liderança de um grupo voltado à prática de «experiências fora do corpo» (ou «viagem astral» como a denominam os espíritas). Conhecido pelo nome de Projeciologia, esse grupo fundado e liderado por Waldo Vieira teve o seu desenvolvimento desdobrado em duas fases: na primeira, segundo D’Andrea (1981) que realizou estudo de caso sobre o tema, predomina a construção carismática da imagem pública de sua liderança; a outra, mais recente, envolve a institucionalização e burocratização organizacional do grupo. Saiba mais sobre Museu de Antropologia USP.

Assim como outras correntes que integram o universo das chamadas paraciências, a Projeciologia se caracteriza pela pretensão de promover uma síntese entre saberes científicos e não-científicos. Trata-se, portanto, da construção de um pensamento de cunho secular sobre fenômenos que, no senso comum, são tidos como próprios do domínio religioso. Neste caso, o objeto-alvo de produção de conhecimento é a experiência de consciência «fora do corpo físico». 

Waldo VieiraFundador do Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia, Waldo Vieira começou a divulgar sua experiência pessoal e conhecimentos sobre o tema por meio da realização de palestras públicas e da produção de livros. Os mais conhecidos dentre estes últimos foram lançados nas últimas décadas, com um intervalo de aproximadamente dez anos: Projeciologia: panorama das experiências da consciência fora do corpo humano foi publicado em 1986; 700 experimentos de Conscienciologia foi lançado em 1994. Nesse ínterim, entre uma publicação e outra, deu-se a institucionalização do movimento. Segundo D’Andrea esse processo foi conduzido por Waldo Vieira por meio da realização de cursos de treinamento, visando a formação de professores. Criando por meio desse expediente uma ampla rede de disseminadores de suas idéias, Waldo Vieira passou a ter nestes «profissionais» uma base para a disseminação de núcleos de estudo e pesquisa, os quais se encontram hoje espalhados no Brasil e no exterior. 

Observa D’Andrea que esse processo de disseminação não atinge, contudo, a produção intelectual, que permanece sendo monopólio de seu fundador. 

O estilo de liderança adotado é de tipo carismático: à semelhança de certos gurus indianos, Waldo Vieira usa uma vasta barba (branca), veste-se sempre de branco e ostenta, para além de traços distintivos de aparência, certos dons, dentre eles a mediunidade, a projetibilidade, a clarividência e a manipulação de energias para cura e materializações. A essas faculdades se soma ainda, como fator de distinção, a ostentação de sua condição de médico. A formação acadêmica serve nesse caso não apenas como fator de prestígio, mas, também, como suporte para a pretensão de cientificidade que reinvidica para a sua produção. 

Com relação a esse último aspecto observa-se que a tentativa de aproximação do campo científico se realiza basicamente por meio de dois expedientes: 1) ênfase no experimentalismo, prática que envolve o desenvolvimento e a catalogação de técnicas de produção da projetibilidade, isto é, da capacidade de «sair do corpo»; e 2) investimento na construção de um universo conceitual singular. O rebuscamento lingüístico se apresenta como índice desse layout pretensamente científico, o qual se caracteriza pela criação de palavras, supostamente novas, que gradativamente vão sendo agregadas a um repertório cujo traço marcante é estar sempre em construção. A própria mudança de denominação do grupo para Conscienciologia se insere nessa lógica. Sendo seu objetivo é expresso nos seguintes termos: trata-se de um movimento que visa o «estudo da consciência (a partir de uma) abordagem integral, holossomática, multidimensional, bioenergética, projetiva, autoconsciente e cosmoética» (D’Andrea, 2000: 164; destaques meus). 

Concebido como «índice de racionalidade», esse investimento de ordem lingüística visa marcar, simbolicamente, o distanciamento de Waldo Vieira de outros sistemas de idéias, que operam essas mesmas práticas, tendo porém como fundamento orientações tradicionais, doutrinárias. O intenso investimento na organização burocrático-administrativa, implementada por ele especialmente nos últimos anos, tem esse mesmo sentido: os padrões de racionalidade, eficiência e profissionalismo adotados visam, dentre outros, marcar seu distanciamento do campo religioso

É interessante observar nessa trajetória a tendência à aproximação daquele que era o projeto de Allan Kardec, isto é, fazer do Espiritismo uma doutrina científica. Essa mesma intenção mobiliza Waldo Vieira com relação à Projeciologia, projeto que o distancia definitivamente da tradição espírita, em especial da interpretação religiosa consolidada sob a liderança de Chico Xavier. Como resultado tem-se, portanto, um deslizamento, isto é, a constituição de uma corrente dissidente, que assume como característica básica o deslocamento da ênfase no aspecto moral em favor do experimentalismo.

Waldo Vieira sinaliza dessa forma um afastamento da tradição religiosa que marcou a sua iniciação. Os sinais diacríticos utilizados remetem simbolicamente à modernidade, cujo discurso tem na racionalidade um de seus valores fundamentais. Esses valores são explicitados de duas formas: por meio da produção discursiva e da ênfase que vem sendo dada nos anos mais recentes à organização burocrática. 

Luiz Antonio Gasparetto: entre o Espiritismo, a auto-ajuda e a cosmologia new age

Luiz Antonio Gasparetto seguiu caminho oposto ao de Waldo Vieira, realizando um percurso que é emblemático do carnavalesco, termo empregado aqui tal como utilizado por Da Matta (1981). Sua trajetória segue, em princípio, o mesmo modelo acima observado: a primeira fase é marcada por forte influência de Chico Xavier e da Federação Espírita Brasileira; a segunda envolve o desenvolvimento de um percurso voltado à inovação, prática que, «pelas artes do sincretismo», se concretiza por meio da incorporação de idéias e práticas de auto-ajuda e do universo da chamada Nova Era. 

Este é, portanto, um percurso que implica, como no caso anterior, em distanciamento da tradição, embora não configure, como no caso de Waldo Vieira, um total rompimento com o Espiritismo.

Os anos 80 constituem nesse caso o marco da mudança. Por essa época Luiz Gasparetto realizou uma série de viagens à Europa e aos Estados Unidos com a finalidade de promover a divulgação do Espiritismo. As sessões públicas de pintura mediúnica e programas de TV de que participou lhe permitiram observar a atuação de outros médiuns. Numa dessas viagens esteve também em Esalem, o centro new age da Califórnia (EUA), onde entrou em contato com idéias e práticas de diversos sistemas de conhecimento, especialmente com o então chamado «pensamento positivo» e técnicas de psicoterapia corporal. De volta ao Brasil, Luiz Gasparetto começou a se indispor com a Federação Espírita Brasileira. O alvo principal de suas críticas era dirigido ao moralismo espírita, manifesto, entre outros, no tratamento de certos temas, sexo e dinheiro, por exemplo. 

Quando viajo para o estrangeiro e converso com os médiuns, os espíritos conversam abertamente de sexo e seus problemas. Aqui não. No Brasil nenhum espírito toca nesse assunto […]. Aqui só dizem: «vai tomar passe, vai tomar passe!» […] «apesar dos espíritos terem tentado passar uma mensagem libertadora, aqui os médiuns eram católicos e a linguagem que usaram era própria de sua estrutura mental. Passou o que foi possível. O resto ficou cheio de catolicismo. (Apud Stoll, 1999: 46) 

Pouco tempo depois, aliando sua formação de psicólogo à experiência mediúnica, Luiz Gasparetto acabou criando um espaço alternativo de trabalho. Inaugurado em São Paulo nos anos 80, o Espaço Vida e Consciência passou a integrar o circuito dos espaços neo-esotéricos da cidade. Suas atividades regulares são cursos e palestras, às quais se somam shows e workshops, realizados eventualmente. 

Por muitos anos Luiz Gasparetto se dividiu entre essas atividades e o exercício da prática da pintura mediúnica no centro Os Caminheiros, dirigido pela sua mãe, Zíbia Gasparetto. Por mais de dez anos a complementaridade definiu o trabalho realizado nesses dois espaços. Ou seja: no centro as atividades obedeciam ao padrão espírita tradicional (realização de sessões públicas de pintura mediúnica e aconselhamento; manutenção de uma creche a título de trabalho de caridade; destinação dos recursos financeiros, oriundos das atividades mediúnicas da família, para esta última); por sua vez, no Espaço Vida e Consciência, local definido como de exercício de atividade de cunho profissional, predominava a realização de atividades em caráter experimental, destacando-se entre estas, cursos e práticas voltados à questão da auto-ajuda. Com essa perspectiva Luiz Gasparetto explorou, nesse «espaço», as mais diversas linguagens. Além de novos usos dados à pintura mediúnica, como o de objeto de cenografia para seus shows, verifica-se a utilização de práticas discursivas diversas, incorporando-se ao seu repertório o uso da música, da expressão corporal, de técnicas de relaxamento e do psicodrama, bem como da representação teatral. 

A divulgação das atividades desenvolvidas nesses dois «espaços» contou com recursos diversos de mídia, destacando-se dentre eles os programas de rádio que nos últimos anos passaram a ser diários. Protagonizados pelo próprio médium, Luiz Gasparetto, nos últimos anos estes passaram a contar, às segundas-feiras, com a participação de Zíbia Gasparetto, mãe de Luiz, cuja presença tem sido uma constante nas listas dos livros de auto-ajuda ou não-ficção mais vendidos. 

Essa duplicidade dos «espaços» e das atividades desenvolvidas ­ uma caracterizada como profissional, a outra como mediúnica ­ manteve-se por mais de uma década, tendo sido preservada, em larga medida, em função da restrição dos espíritas quanto à remuneração da atividade mediúnica. 

Como outras já citadas, essa reinterpretação espírita da tradição cristã tem em Chico Xavier um modelo exemplar. Tensões crescentes em relação a esse modelo, moral e ético, levaram afinal a família Gasparetto ao rompimento com a prática institucional espírita, fato consumado em 1995, quando se decidiu encerrar as atividades do centro Os Caminheiros. Essa decisão, assumida publicamente como resultado da «orientação dos espíritos», abriu caminho para se promover, com mais liberdade, o uso da mediunidade com fins lucrativos. Um primeiro passo nessa direção fora dado anteriormente, quando se decidiu fechar a editora do centro Os Caminheiros. A abertura de um novo selo, desvinculado do centro, tornou possível a apropriação dos direitos autorais de livros psicografados, prática condenada na tradição espírita. «Podemos fazer uma mediunidade moderna», disse Gasparetto numa de suas palestras, sintetizando nessa fala a possibilidade do médium fazer uso da mediunidade visando o seu próprio bem-estar (inclusive financeiro), além de utilizá-la para a orientação dos indivíduos na solução de seus problemas cotidianos. 

Esse afastamento do ideal kardecista da caridade caracteriza um deslizamento significativo com relação à tradição. A essa prática soma-se ainda, neste caso, a reintepretação da noção de karma de uma forma mais positiva, permitindo assim a passagem da ética da caridade ­ que implica a noção de doação como sacrifício ­ para a ética da prosperidade ­ tema do repertório neo-esotérico e de auto-ajuda, que tem como objeto a questão do bem-estar dos indivíduos, aqui e agora. 

O percurso trilhado por Luiz Gasparetto descreve, portanto, um modo particular de produção da inovação da tradição espírita, sem implicar um total rompimento com esta, como no caso de Waldo Vieira. Isso porque o uso da mediunidade em moldes espíritas continua sendo a forma de produção da mediação entre este e o «outro mundo», prática religiosa que se mantém como fonte de autoridade das práticas e idéias que o grupo sustenta. Trata-se, portanto, de um outro modo de «ser espírita» menos convencional, menos constrangido pelo moralismo católico, mais afeito ao experimentalismo no que diz respeito ao uso de linguagens, de técnicas de comunicação, e mais voltado às questões de ordem psicológica. 

Retomando, enfim, o argumento de início, esse «sistema de personagens» sugere serem diversos os modos de produção da fragmentação do campo espírita, que a colocam, cada um a seu modo, a tradição sob «riscos empíricos» (cf. Sahlins, 1990). Um dos resultados produzidos é o alargamento do campo das interlocuções estabelecidas: os casos apresentados sugerem um processo de redefinição das margens de trânsito, confronto e aliança, tanto dentro como fora do campo religioso. No que se refere ao aspecto da crítica ao sincretismo católico, este movimento se coaduna com o que alguns autores observam em relação a certos segmentos do Candomblé. No entanto, as respostas apresentadas pelo Espiritismo parecem ter um espectro mais amplo, uma vez que estas incluem tanto projetos que visam o distanciamento completo de um viés religioso ­ caso dos grupos que, a exemplo de Waldo Vieira, buscam uma reaproximação da ciência , como grupos ou movimentos que buscam a renovação das idéias e práticas espíritas por meio do amálgama de possibilidades que oferece o chamado universo neo-esotérico. Desse segundo movimento emerge um aspecto inovador, que consiste na abertura de um novo campo de diálogo no interior do campo religioso, na medida em que o ideário da prosperidade se apresenta como moeda moral que agrega segmentos tradicionais e novos do campo religioso, dentre eles, certas correntes do universo neo-esotérico, do Espiritismo e das religiões neopentencostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Para mais informações, você pode sempre contatar n-a-u.org.