Chico Xavier: a procissão do adeus

Desde as primeiras horas eram imensas as filas no velório de Chico Xavier, médium cuja trajetória de vida se confunde com a história do Espiritismo no Brasil. O local escolhido foi a Casa da Prece, o centro espírita de Uberaba, no Triângulo Mineiro, onde Chico Xavier recebeu, nos últimos quarenta anos, romeiros de todas as partes do país. Foram dois dias de despedida, nos quais compareceram, segundo se calcula, cerca de 100 mil pessoas. A fila à frente da casa tinha três quilômetros; a espera era de quase três horas. Por hora passaram, aproximadamente, 2.500 pessoas. O cortejo até o cemitério São João Batista, conduzido por bombeiros, foi acompanhado por mais de 30 mil pessoas. Entidades assistenciais, artistas, políticos e empresários enviaram mais de 150 coroas de flores. Lideranças de segmentos diversos do campo religioso também lhe renderam homenagem

Chico Xavier faleceu aos 92 anos, de uma parada cardíaca, em sua casa. Era o dia 30 de junho de 2002, data da quinta conquista do Brasil numa Copa do Mundo. Segundo relatos de familiares, Chico Xavier levantara cedo nesse dia como de costume. Não assistiu ao jogo, mas quis saber o resultado. Mais tarde percorreu cada ambiente de sua casa e também visitou as salas da Casa da Prece. Recolheu-se imediatamente após o jantar, vindo a morrer logo em seguida.

Essa forma silenciosa, serena e sem alarde de transição para o «outro lado da vida», como dizem os espíritas, parece condizente com um dos atributos mais lembrados de Chico Xavier: a humildade. 

Nem sempre, porém, foi essa a aura em torno de sua imagem. Especialmente no início da carreira, sua presença na mídia esteve freqüentemente associada a eventos polêmicos. Os primeiros registros, realizados pela imprensa, datam dos anos 30, época em que o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, realizou um inquérito sobre suas atividades. O mote dessa investigação foi o lançamento de seu primeiro livro, Parnaso de além-túmulo, obra em que apresenta poesias póstumas de autores «ilustres»: Casemiro de Abreu, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, etc. Largamente debatida na ocasião, a credibilidade desse tipo de produção literária mobilizou os círculos intelectuais da época. Uma década mais tarde o tema voltou à baila com a notícia de que uma ação judicial havia sido movida pela família Humberto de Campos contra o médium Chico Xavier e a Federação Espírita Brasileira. Nesse segundo inquérito jornalístico, além da participação de críticos literários e jornalistas, contou-se também com o envolvimento de juristas, uma vez que a questão em pauta era o destino legal dos direitos autorais em se tratando de produção literária post mortem.

Mesmo depois de ter sua autoridade reconhecida, as polêmicas continuaram. Em 1979, por exemplo, Chico Xavier voltou a ter seu nome envolvido em debates jurídicos, desta vez em decorrência da inclusão de duas mensagens suas, psicografadas, nos autos de defesa em dois processos de crime. Alardeado pela imprensa espírita, esse fato teve repercussão inclusive no exterior. Isso sem contar inúmeras outras matérias jornalísticas produzidas nesse ínterim motivadas por boatos sobre sua vida pessoal, como supostos namoros, casamentos, a discussão sobre sua sexualidade, etc. 

Os anos 80 constituem o turningpoint de sua imagem na mídia: o lançamento da campanha de sua candidatura ao prêmio Nobel estendeu para além do campo espírita e em âmbito internacional a imagem de Chico Xavier como «homem santo». Os programas de televisão de que participou contribuíram para essa construção. Sua estréia neste veículo de comunicação deu-se nos anos 70, quando participou do então famoso Pinga-fogo. Além de responder a perguntas de jornalistas, do público e de representantes de diferentes instituições religiosas, neste programa Chico Xavier realizou, a pedidos, o que se considera ter sido a primeira sessão mediúnica televisionada. A repercussão de público alcançada por esse programa estimulou, em anos posteriores, a realização de outras entrevistas, bem como a produção de vários documentários.

No entanto, essa projeção social do médium teve pouca repercussão no meio acadêmico. Luiz Eduardo Soares chama atenção para esse fato num artigo publicado em 1979. Duas décadas decorreram, porém, antes que o Espiritismo se tornasse objeto renovado de interesse nas Ciências Sociais e que Chico Xavier viesse a ocupar o devido lugar no universo dos estudos sobre a religiosidade brasileira. Aqui você pode ler algo sobre Mestrado em Antropologia USP.

O presente trabalho se inscreve entre os primeiros a fazerem de sua vida e obra tema central de reflexão, trazendo à tona o papel que Chico Xavier desempenhou no delineamento do éthos católico de que se revestiu a doutrina espírita no Brasil.

Outra lacuna na produção recente sobre o tema diz respeito à reflexão sobre as novas formas de presença e inserção do Espiritismo no campo religioso brasileiro. Como assinalam Brandão (1988) e Giumbelli (1997), dentre as religiões ditas brasileiras, o Espiritismo tem sido a menos estudada. Observação válida, inclusive, para os artigos recentes que tratam da dinâmica contemporânea do campo religioso na sociedade brasileira: nestes são freqüentes as análises sobre as mudanças que vêm ocorrendo no meio católico, no contexto das tradições afro e no âmbito pentecostal. Raramente, porém, esses textos se referem ao universo espírita.

Reverter essa tendência implica um trabalho de mais fôlego. Na tentativa de contribuir para a discussão, o presente artigo se desdobra em duas partes: na primeira realizo uma revisão da literatura produzida sobre o Espiritismo. A análise da história de vida e carreira religiosa de Chico Xavier segue como ilustração, sugerindo, com base na estratégia biográfica, como se deu a construção do «estilo católico» de que se revestiu o Espiritismo no Brasil. Na segunda parte desloco o olhar, focalizando dois outros personagens, originários do campo espírita, cujos percursos pessoais apontam para duas das tendências contemporâneas de inovação da doutrina: uma que envereda na direção do cientificismo, outra que investe na carnavalização como forma de produção de inovações. Apresentados como tipos-ideais esses três personagens apresentam uma grande riqueza no que diz respeito à particularização de certas possibilidades, ao passo que em conjunto permitem perceber processos mais abrangentes da dinâmica contemporânea no campo religioso. 
Entre a França e o Brasil: a invenção de tradições

Allan Kardec ainda escrevia os principais tomos de sua obra, quando o Espiritismo aportou ao Brasil, sendo, portanto, divulgado quase simultaneamenteà sua difusão na Europa. Os estudos sociológicos aqui realizados sobre o tema, no entanto, são relativamente recentes. Dois autores, Cândido Procópio Camargo e Roger Bastide, assinam os primeiros trabalhos, introduzindo a questão que nortearia boa parte da discussão dos estudos de religião nos anos 60 e 70: como explicar a difusão de religiões populares, especialmente o Pentecostalismo, o Espiritismo e as religiões afro-brasileiras, num contexto de aceleração do processo de urbanização? Ou em outros termos: como explicar a proliferação da religiosidade popular, tida como símbolo de «atraso», justamente no pólo do desenvolvimento urbano e econômico do país, ou seja, no espaço social e simbólico tido como emblemático da «modernidade»? 

Inaugurando a discussão desse tema, esses autores se tornaram referência de toda a produção subseqüente. Dentre as idéias que postulam, tornaram corrente a assertiva de que o Espiritismo sofreu uma significativa mudança no processo de sua transplantação para o Brasil, considerando-se que na França, onde teve origem, prevalecia a ênfase na dimensão experimental e científica da doutrina, enquanto no Brasil tornou-se dominante a feição mística, religiosa.

Cândido Procópio Camargo sustenta essa idéia já às primeiras páginas do seu livro Kardecismo e Umbanda. Neste afirma: «A ênfase no aspecto religioso da obra de Kardec constitui […] o traço distintivo do Espiritismo brasileiro e, talvez, seja a causa de seu sucesso entre nós» (1961: 4). Afirmação que reitera adiante, quando declara: 

Tanto a doutrina, como especialmente a prática espírita, ganharam no Brasil novo alento, desenvolvendo conotações e ênfases especiais que as adaptaram à realidade brasileira. A história dessa adaptação é um aspecto […] da constituição de uma religião original entre nós. (: 8; destaques meus) 

Alguns anos mais tarde Procópio Camargo reapresenta essa idéia em seu novo livro, Católicos, espíritas e protestantes (1963). Nesta obra o autor sugere que a doutrina kardecista «não sofreu modificações essenciais quando transplantada para a sociedade brasileira, embora a adaptação a uma situação social nova tenha gerado algumas características especiais» (: 162; destaques meus). Dentre estas últimas destaca o fato de que «no Brasil o aspecto religioso torna-se preponderante, em contraposição ao filosófico e científico» (idem; destaques meus). O autor atribui essa mudança de ênfase doutrinária à «tradição cultural brasileira», caracterizada como «impregnada de um estilo sacral de compreender a realidade» (1961: 112). Donde conclui que esta é uma sociedade «moderna», porém, contraditória: «embora a cultura brasileira seja naturalmente complexa» e, portanto, oriente-se «também por valores estritamente racionais e profanos, cremos não ser exagerado afirmar que a solução sacral para a vida assume, entre nós, importância considerável» (idem; destaque meu).

Roger Bastide partilha dessa idéia, mas envereda a análise noutra direção. Ele sugere que o Espiritismo sofreu interpretações diversas na sociedade brasileira, segundo a classe social. Segundo ele, os segmentos de classe alta, «intelectualizados», tendem a enfatizar as experiências de tipo científico. Já o Espiritismo praticado nos centros, que concentra os segmentos de classe média, caracteriza-se por um cunho acentuadamente religioso. Mas a ênfase de suas práticas é terapêutica, tal como se observa entre os segmentos populares. Com relação a estes últimos, porém, ressalva: «Aqui […] o caráter médico do espiritismo continua, tanto mais que a tradição do curador, da magia curativa, de definição da doença pela ação mística de feiticeiros ou da vingança dos mortos, permanece a base da mentalidade primitiva» (1985[1960]: 433).

A ênfase no aspecto terapêutico, associado a noções mágicas, constitui, portanto, o diferencial do Espiritismo brasileiro. Mas, embora Bastide sinalize cortes raciais e/ou de classe na interpretação da doutrina espírita, conclui generalizando: «Em suma, o espiritismo foi transformado pelo meio brasileiro, meio [este] mais confiante no ‘curandeiro’ que no médico e que não separa o sobrenatural da natureza» (idem). 

Divergentes, as duas linhas de interpretação angariaram inúmeros seguidores. Não cabe aqui, porém, reconstruir genealogias. Importa sinalizar que a perspectiva comparativa, relacional, que inaugura a análise do fenômeno, tornou-se o modo corrente pelo qual passou a se pensar a história do Espiritismo no Brasil. 

Dentre as imagens resultantes interessa-me retomar uma que se tornou corrente, dentro e fora dos meios acadêmicos. Refiro-me ao suposto, com base nas análises acima, de que no Brasil a doutrina kardecista sofreu uma distorção. Autores nacionais bem como estrangeiros partilham dessa posição. Revisões recentes de processos de confronto cultural permitem, no entanto, recolocar a questão em outros termos. Ou seja, considerar deslocamentos de ênfases doutrinárias como distorção ou adulteração de um modelo original obscurece o fato de que toda versão, toda reinterpretação é sempre um ato criativo. Sahlins, em seu livro Ilhas de história, chama atenção para essa questão ao afirmar que a ordem cultural não é estática, mas alterada na ação, isto é, sujeita a riscos empíricos. 

Isso porque agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual à sua maneira. A comunicação social é [portanto] um risco […]. E os efeitos desses riscos podem ser inovações radicais. (1990: 10; destaque meu) 

Tratar a experiência do confronto cultural, mais especificamente a diversidade de respostas locais ao sistema mundial dessa perspectiva, fornece uma pista para se pensar as especificidades assumidas pelo Espiritismo no Brasil a partir de um novo enfoque. Ou seja, argumentando com Sahlins, é possível afirmar que privilegiar determinadas práticas assim como deslocar a ênfase de certos preceitos doutrinários envolvem um ato criativo. Trata-se de reinterpretação, isto é, de uma particularização cultural e histórica de idéias e práticas concebidas com pretensão de universalidade. Nesse sentido, o Espiritismo à brasileira seria uma versão original e não um produto menor, adulterado ou desviante. 
Resta saber como se construiu essa originalidade.

Construindo laços, definindo fronteiras: Espiritismo, Catolicismo e as religiões afro

A literatura mencionada tende a situar o Espiritismo no campo religioso brasileiro a partir da interlocução por este estabelecida com as religiões de tradição afro. Essa perspectiva de análise engendrou duas posturas distintas: 1) de um lado, há autores que pensam as relações entre o Espiritismo e as religiões de tradição afro em termos de um continuum ­ isto é, como variação empírica de um mesmo princípio de estruturação cosmológica e de produção da experiência religiosa (Camargo,1963 e 1973; Birman, 1995); 2) outros concebem o Espiritismo por oposição às religiões afro-brasileiras, uma espécie de espelho invertido, seja quanto às suas características sociais e étnicas, seja quanto à estrutura ritual e doutrinária (Maggie, 1992; Ortiz, 1991 [1978]; dentre outros).

Esses enfoques que fazem dos cultos de possessão uma unidade, pelo princípio da afinidade ou pelo princípio da oposição são, sem dúvida, pertinentes. No entanto, tal recorte tende a omitir ou, pelo menos, a relegar a um segundo plano as relações estabelecidas entre o Espiritismo e o Catolicismo, religião ainda hegemônica no país. É o que se verifica, por exemplo, no estudo de Maria Laura Cavalcanti (1983), para quem a questão sequer se coloca. Outros autores se referem ao tema sem problematizá-lo, como Renato Ortiz, para quem as relações entre Espiritismo e Catolicismo são tidas como dadas: «Consideramos a influência do catolicismo como sendo implícita», diz ele (1991 [1978] : 34). Cândido Procópio Camargo também partilha dessa posição: «[…] no kardecismo predomina a formulação ética de inspiração cristã» (1963), diz ele, sem se preocupar em qualificar o modo como esta foi apropriada e/ou reinterpretada pelo Espiritismo.

Uma das lacunas da produção sobre o tema consiste justamente no fato de não se questionar como o imaginário e as práticas católicas impactaram o Espiritismo, influenciando de forma significativa o modo de sua expressão no Brasil. Aubrée e Laplantine (1990) fazem menção a essa questão ao sugerirem que o modo como os brasileiros se relacionam com os espíritos não faz mais que «prolongar, ampliar e sistematizar o que se poderia chamar de cultura brasileira dos espíritos» (: 85), cujo principal traço seria a «intimidade com os santos, eguns e orixás» (idem). Mas também esses autores não avançam a discussão e acabam realçando, como os demais, as relações entre o Espiritismo e as religiões de tradição afro.

O que se perde de vista nessas análises é a complexidade das relações estabelecidas pelo Espiritismo no campo religioso brasileiro, em particular aquelas que dizem respeito às disputas e negociações realizadas com a religião dominante, hegemônica no país. Privilegio essa relação uma vez que considero, em oposição à tradição consolidada na literatura, que o Espiritismo definiu sua identidade elegendo como sinais diacríticos elementos do universo católico. Isso significa afirmar que sua relação com a religião dominante no país não se resumiu simplesmente ao endosso de certas idéias ou práticas rituais, como sugerem autores acima mencionados. O «matiz perceptivelmente católico» do Espiritismo brasileiro decorre, conforme pretendo demonstrar, da incorporação de um dos substratos fundamentais da cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade.

Chico Xavier configura nesse contexto, como pretendemos demonstrar adiante, um paradigma dessa construção. No cenário contemporâneo, porém, é possível, vislumbrar novas tendências. Mas estas reforçam o argumento acima, uma vez que é em larga medida contra esse «viés católico» de que se revestiu o Espiritismo brasileiro que começaram a emergir, a partir dos anos 80, novas tendências de filiação nesse campo.

O presente artigo ilustra essas diferentes versões que hoje convivem no campo espírita a partir da análise da trajetória de três personagens: 1) Chico Xavier, o primeiro deles, ilustra a construção da «tradição» espírita brasileira, cuja marca consiste na síntese com o Catolicismo; 2) Luiz Antonio Gasparetto e 3) Waldo Vieira sintetizam, cada um à sua maneira, tendências da crítica contemporânea a esse modelo que se tornou hegemônico, o primeiro realizando-a por meio da busca de diálogo com temas e práticas do chamado neo-esoterismo e do universo da auto-ajuda, enquanto o segundo enveredou em busca de uma nova síntese com a ciência.

Apresento-os aqui em contraponto, a partir da construção narrativa de suas biografias, sem ter a intenção de contextualizar historicamente suas trajetórias pessoais. Clifford Geertz já advertia, em Observando el Islam, que «observar a história a partir de personalidades, especialmente personalidades dramáticas, é sempre perigoso»(1994 [1968]: 97). O risco do empreendimento, porém, justifica-se, diz ele, quando se trata de personagens cujas carreiras sintetizam um determinado período da história de seus países. Entendendo ser este o caso, decidi assumir o risco.

O Espiritismo segundo Chico Xavier 

Personagem paradigmática do Espiritismo brasileiro, Chico Xavier é aqui considerado um dos principais responsáveis pela consolidação da «feição católica» de que se revestiu o Espiritismo no Brasil. Essa síntese foi por ele produzida pela introdução tanto de práticas populares como institucionais do Catolicismo na performance espírita. Síntese que Chico Xavier realiza, na sua biografia, por duas vias: por um lado, a relação santorial, que caracteriza o Catolicismo popular, serviu-lhe de modelo para a construção e narrativa de sua experiência com os espíritos; por outro, sua imagem pública ­ o ideal de santidade que conforma o seu estilo de vida ­, inspira-se em princípios da prática monástica católica. É o que pretendo demonstrar revendo alguns aspectos de sua biografia.