A vida cotidiana dos jovens das camadas populares nas metrópoles brasileiras apenas recentemente tornou-se objeto de investigação entre os cientistas sociais. Os estudos pioneiros sobre a periferia realizados nas décadas de 1970-1980 (Sader, 1988, Telles, 1988) registraram uma multiplicidade de atores sociais, mas em nenhum momento referiram-se aos jovens enquanto um grupo social específico. O contexto era o da luta pela cidadania política articulada a reivindicações concretas: saneamento básico, legalização de terrenos clandestinos e transportes coletivos. Movimentos por saúde na Zona Leste, contra a carestia na Zona Sul, associação de moradores de bairro em diferentes espaços, inauguravam uma nova forma de atuação à margem dos partidos oficiais instituídos pelo regime ditatorial.
Nos anos 90 o cenário mudou radicalmente. Situações traumáticas relacionadas com a violência urbana, como rebeliões na FEBEM, ações do narcotráfico e de grupos de extermínio, revelaram que os jovens haviam se tornado personagens centrais de um problema de proporções alarmantes. Simultaneamente, porém, uma segunda dimensão do fenômeno passou a ser registrada. Produções artísticas como o grafite, pichações,  rodas de break e shows musicais, que progressivamente passaram a integrar a paisagem urbana, revelaram outras modalidades de intervenção no cenário urbano. 
Os dramas dos jovens vitimados pela violência permaneceram circunscritos ao noticiário da grande imprensa. Coube às Ciências Sociais o estudo das produções simbólicas, concentrando-se na esfera do lazer.  Os estudos de Caiafa(1985) e Hermano Vianna (1988) foram nesse sentido, pioneiros, mas um conjunto de contribuições igualmente importantes asseguraram a continuidade do tema (Costa, 1993; Kemp, 1993; Abramo 1994; Diógenes, 1998). Aspectos relacionados com as diferentes modalidades de constituição das identidades juvenis passaram a integrar a pauta das etnografias. Os bailes funk, os shows de rock, o universo da cultura hip hop, as tatuagens e o corte de cabelos dos punks, entre outras expressões sonoras e visuais foram analisadas de forma detalhada. 
As recentes pesquisas quantitativas produzidas nos últimos anos por instituições como a Fundação SEADE e o IBGE revelaram que a violência embora não contemplada pela pesquisa acadêmica permaneceu como um aspecto fundamental da condição juvenil. Os números confirmam que a juventude tem sido o segmento social mais atingido pelas mortes violentas. Essa questão agora admitida como um problema social de extrema gravidade, foi anteriormente apreendida no plano do sensível pelos jovens filiados ao movimento hip hop. Ainda no início dos anos 90, mesmo não dispondo de dados objetivos, os rappers produziram as primeiras narrativas sobre as situações dramáticas que presenciavam nos bairros periféricos. Antecipando-se aos dados oficiais, descreveram um quadro preocupante de perdas de vidas humanas entre a juventude pobre que classificaram como holocausto urbano. Sabemos agora que essa expressão não era um mero exagero de retórica, mas expressão de um sentimento íntimo sobre a cruel realidade que se configurava.
Juventude e cidade
As informações sistematizadas pelo IBGE indicam que passamos nas últimas décadas por uma revolução urbana de proporções consideráveis, e que a reordenação do perfil socioeconômico das metrópoles brasileiras, tem contribuído para a emergência da juventude como uma categoria social expressiva. A tabela abaixo demonstra que atualmente quase 80% dos jovens se encontram nos centros urbanos. 
A presença massiva dos jovens nas cidades não é um fenômeno apenas de natureza demográfica. A violência revelada pelos indicadores sobre “mortalidade por causas externas”, item que inclui os acidentes de trânsito, homicídios e suicídios, atingiu proporções de tal ordem que alterou inclusive o perfil histórico de óbitos no segmento juvenil.
Estudos históricos realizados em São Paulo e Rio de Janeiro mostram que as epidemias e doenças infecciosas que eram as principais causas de morte entre jovens há cinco ou seis décadas, foram sendo progressivamente substituídas pelas denominadas “causas externas” de mortalidade, principalmente os acidentes de trânsitos e homicídios (Waiselfisz, 2004, p. 26). 
Nesse aspecto os números sobre a experiência juvenil impressionam. Quando dividimos a população total em grupos de idade, o quadro comparativo torna ainda mais evidente a situação específica que atinge a juventude. Considerando-se como o grupo dos jovens a tradicional faixa etária entre 15 e 24 anos; não-jovens o intervalo entre 0 a 14 anos e adultos aqueles que se encontram entre 25 e mais anos, constatamos que no Brasil 72% das mortes verificadas no grupo dos jovens são decorrentes de “causas externas”. (Mapa da violência IV, p.26). 
Os números sobre mortalidade entre jovens referentes à região sudeste permitem avaliar o estado da questão na área de maior concentração populacional do país. Excetuando-se Minas Gerais, todos os demais estados apresentam percentuais superiores aos 72% da média nacional (cf. tabela 2). Mas embora os acidentes de trânsito e suicídios integrem o universo pesquisado, são os homicídios os principais responsáveis pelas elevadas taxas de mortalidade juvenil. São Paulo apresenta, por exemplo, nesse quesito um percentual aproximadamente quatro vezes superior aos acidentes de transportes e no Rio de Janeiro essa mesma relação se revela cinco vezes maior.
A partir do Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), categoria elaborada pelo projeto “Fábrica de Cultura”, desenvolvido pela Fundação SEADE/SP, procuramos avaliar o fenômeno da violência juvenil de forma mais específica na metrópole paulistana. Observamos que os bairros mais pobres das periferias da Zona Sul e Leste concentram os percentuais mais expressivos de homicídios de jovens, confirmando que o quadro de carências sociais os tornam mais expostos à cooptação pelo crime organizado, sujeitos à violência policial e alvos dos grupos de extermínio.
Cumpre destacar que entre os 20 bairros paulistanos que registram elevados IVJ, 08 se encontram na região Sul, a saber: Marsilac, Jardim Ângela, Grajaú, Parelheiros, Pedreira, Capão Redondo, Cidade Ademar e Jardim São Luís. Esse universo corresponde praticamente à metade do total dos distritos de maior vulnerabilidade da capital paulista. Selecionamos da tabela geral da Fundação SEADE apenas os índices mais expressivos no sentido de proporcionar uma visão comparativa com outras localidades. Os bairros da Zona Sul aparecem destacados em negrito.

Quando observamos a violência juvenil a partir do critério étnico-racial verificamos que o fenômeno também tem cor. Os dados do M

 

apa da Violência confirmam que ser jovem e negro potencializa as chances de se tornar vítima da violência em qualquer metrópole brasileira. Não dispomos no momento de indicadores sobre homicídios de jovens negros na cidade de São Paulo, porém, as informações embora se refiram ao quadro nacional e sub-regiões, revelam que,

Se no conjunto da população a vitimização de negros já é severa, entre os jovens de 15 a 24 anos o problema agrava-se ainda mais. A taxa de homicídios dos jovens negros (68,4 em 100.000) é 74% superior à taxa de jovens brancos (39,3 em 100.000) (Waiselfisz,, 2004, p. 68).

A tabela 4 apresenta dados sobre homicídios entre jovens nos estados da região sudeste correlacionados com a variável étnico-racial. Quando observamos as taxas de homicídio entre negros e brancos nos referidos universos verificamos que os negros encontram-se em situação destacada. Os percentuais que ostentam são aproximadamente o dobro do segmento branco nos estados de Minas Gerais e São Paulo e o triplo nos estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro.
Conclui-se que os jovens têm sido vítimas preferenciais da violência e que os negros representam o segmento mais vulnerável. Mas esta não é uma questão meramente circunstancial. Trata-se de um fenômeno que confirma tendências do racismo vigente na sociedade brasileira combinado com mudanças estruturais que se verificam nas grandes metrópoles. 
No caso específico da cidade de São Paulo as transformações urbanas quando articuladas à reestruturação socioeconômica possibilitam compreender alguns aspectos mais específicos do atual quadro de violência enfrentado pela juventude. Novas concepções sobre a vida urbana e a redefinição do perfil histórico de cidade industrial reconfiguraram o modelo anterior de segregação urbana e criaram novas tensões no espaço público. 
A antiga forma de organização do urbano foi gestada sob a hegemonia da indústria. A forte atração exercida sobre os migrantes de diferentes estados, que atingiu o auge nas décadas de 70 e 80, resultou em uma planta urbana espacialmente recortada entre o centro e a periferia. Essa estrutura reproduzia em termos espaciais a separação entre ricos e pobres. Mas até então, alguma possibilidade de mistura entre as classes sociais podia ser identificada no centro urbano, garantida pela presença de atividades relacionadas com o mercado financeiro, consumo e lazer. Porém, nas últimas décadas São Paulo deixou ser uma cidade industrial. A grande onda migratória dos anos 70 refluiu. A cidade tornou-se policêntrica e uma nova ordem econômica passou a gravitar em torno das grandes corporações financeiras e do setor de consumo (Frúgoli, 2000).
A reestruturação econômica foi responsável por alterações na organização dos espaços de moradia, trabalho, lazer e consumo. Uma nova forma de segregação socio-espacial emergiu, apresentando como característica principal a contiguidade entre os espaços outrora separados geograficamente (Caldeira, 2000). Por meio da fortificação do espaço urbano, com erguimentos de muros, cercamento de ruas, instalação de guaritas, monitoramento eletrônico e segurança privada, a aproximação espacial entre as áreas nobres, as chamadas “zonas de guerra” (Sassen, 1996) e a periferia tornou-se possível. Paisagens urbanas como a que se estruturou em torno da Avenida Berrini foram edificadas em consonância com os novos parâmetros defensivos da arquitetura pós-moderna, cujos projetos se orientam para a satisfação das demandas dos setores privados (Harvey, 1989, p. 78). Seguindo essa tendência, grandes shoppings centers e condomínios fechados foram construídos próximos a favelas e bairros periféricos. 
Nos espaços próximos ou distantes dos bairros nobres organizaram-se as chamadas “zonas de guerra”. Nesses locais a ação de grupos criminosos passou também a responder por uma ordenação especial da vida pública. Cadeados, lanças e muros expressam do ponto de vista dos pobres o novo cenário da cultura do medo (Caldeira, 2000). A “lei do silêncio” e “o toque de recolher” tornaram-se os principais símbolos da deterioração do espaço público. Os micropoderes locais em sua teia de ramificações difusas, conforme as formulações de Michel Foucault (1979), instauraram uma nova relação de dominação e vigilância alheia ao Estado. Traficantes, “justiceiros” e policiais corruptos têm sustentado um quadro de insegurança que atinge de maneira indistinta o cidadão comum.
A nova segregação urbana apoiada em estratégias defensivas, armamento da população, sistemas de vigilância e controle dos indivíduos se coloca do ponto de vista das elites como uma resposta à violência, mas é certo que essa atitude na edificação do urbano tem contribuído para o aumento progressivo do quadro de agressões que se traduz no elevado número de homicídios. A ação violenta aparece nos espaços nobres dissimulada pelo emprego das novas tecnologias e patrulhamento ostensivo do exército de seguranças privados, enquanto do outro lado da cidade murada, isto é, nas “zonas de guerra”, denominada pelos rappers de “campo minado”, os micropoderes locais amiúde empregam mecanismos menos sutis, como chacinas, execuções sumárias, listas de condenados à morte. Embora o controle dos cidadãos se desenvolva nos distintos espaços sociais empregando meios específicos, os resultados são análogos. Confirmam que as noções clássicas articuladas em torno da garantia da vida e da liberdade, que desde o renascimento urbano orientaram a edificação das cidades, encontram-se ameaçadas: o desrespeito aos direitos humanos e a inviabilização da cidadania, enquanto conjunto de direitos iguais assegurados a todos, estão sendo na prática contestados.
A interpretação dos rappers
As músicas produzidas pelo grupo de rap Racionais MC’s são exemplares da compreensão que os jovens adquiriram sobre os processos globais que passaram a estruturar a vida na metrópole paulistana. As composições narram situações reais comuns ao cotidiano das periferias em que a violência aparece como tema central. Os autores recorrem freqüentemente a imagens e sons que integram cenas da vida diária e as musicalizam: sirenes, tiros, vozes, recortados por meio do sampler, reforçam o realismo de situações recorrentes na periferia, como o trágico destino de um ex-presidiário narrado em Homem na estrada; as chacinas em bares, minuciosamente descritas em Mano na porta do bar; a violência policial abordada em Pânico na Zona Sul. 
O sucesso obtido pelos Racionais MC’s junto às camadas populares se relaciona com a capacidade de produzirem um discurso esteticamente diferenciado em que se posicionam como intérpretes dos problemas experimentados pelos moradores dos bairros pobres. Mano Brown, o principal integrante do grupo, tornou-se conhecido pelas composições em que denuncia o estado de abandono da periferia, mas é inegável que desempenha também o papel de liderança política representativa de um novo tempo. A experiência de vida na localidade é o que confere legitimidade política ao discurso musical. Os rappers assumem, assim, a condição de porta-vozes de um universo silenciado pelos meios de comunicação e ignorado pelo poder público.
O tipo de documentação que produzem é, portanto, de natureza pessoal, biográfica e intransferível. Resulta do processo de criação de narrativas diretas sobre a vida urbana até então não autorizadas aos segmentos populares. Rompem assim com uma tradição da música popular brasileira de reconhecer apenas nos autores consagrados pela indústria fonográfica a legitimidade para abordar os problemas sociais e políticos. 
O rap paulistano se estruturou em um circuito alternativo, sustentado por pequenos selos originários da black music que se firmou no cenário paulistano a partir dos anos 70. Não reivindica por opção política a legitimidade conferida pela grande indústria fonográfica. As letras incorporam expressões locais peculiares ao universo social em que geralmente são ouvidas. Nesse caso, a mensagem é sempre singular, autoral. O que importa não é a interpretação, mas a natureza política do ato de compor, por isso os rappers não cantam músicas de outros grupos, mesmo que tenham logrado sucesso popular. A atitude cover é considerada incompatível com a filosofia do hip hop, pois a razão maior para se integrar ao grupo é exatamente o princípio de “levar uma mensagem positiva para os manos”. Como no fazer musical a trajetória de vida é essencial, aqueles que não possuem origem na localidade experimentam dificuldades em se legitimar.
Um exemplo revelador da posição assumida pelos rappers enquanto cronistas do cotidiano é a música Pânico na Zona Sul (Racionais MC’s, 1990). Trata-se de uma narrativa realista sobre as situações micropolíticas características das “zonas de guerra”. Os problemas da violência urbana hoje registrados pelos institutos de pesquisa, e que apontam os jovens como as principais vítimas dos homicídios, são interpretados a partir do testemunho pessoal. A aliança entre justiceiros e policiais corruptos atuando enquanto forças paramilitares; o tema da delinqüência, como justificativa ideológica para o extermínio dos jovens; as armas de fogo como instrumentos da prática violenta, revelam no discurso musical uma nova consciência sobre a nova realidade urbana, resumida, a propósito, no título do LP: Holocausto Urbano (1993). 

Pânico na Zona Sul
(Mano Brown, LP Holocausto Urbano, 1990)
(…)
Então, quando o dia escurece, só quem é de lá sabe o que acontece.
Ao que me parece prevalece a ignorância, e nós… Estamos sós.
Ninguém quer ouvir a nossa voz.
Cheia de razões, os calibres em punho, dificilmente um testemunho vai aparecer
E pode crer, a verdade se omite, pois quem garante o meu dia seguinte?
Justiceiros são chamados, por eles mesmos, matam, humilham e dão…Tiros a esmo.
E a polícia não demonstra, sequer vontade, de resolver ou apurar a verdade.
Pois simplesmente é… conveniente.
Porque ajudariam se nos julgam delinqüentes?
As ocorrências prosseguem sem problema nenhum. 
Continua-se o pânico na Zona Sul.
(…)

As situações desumanas que constatam na periferia não a tornam um local a ser repudiado. Ao contrário, a identificação com os espaços marginalizados surge no rap como contra-face ao estado de abandono. O sentimento de pertença é enfatizado em diferentes momentos. O mapa da cidade destacando os bairros do Capão Redondo, Jardim São Luís, Campo Limpo e as suas diferentes subdivisões, foi inserido no encarte do primeiro CD (Racionais MC’s, 1996) com esse propósito. Embora seja uma mera reprodução da planta urbana, o registro teve grande impacto entre os jovens, pois projetou positivamente a região. As músicas também homenageiam os bairros pobres por meio de citações afetivas, conforme verificamos na expressão de Mano Brown: “É lá que moram os meus irmãos, meus amigos e a maioria por aqui se parece comigo” (Fim de semana no parque, Racionais Mc’s, 1996).
Os rappers expressam também o vínculo afetivo com o lugar por meio de referências pessoais a amigos e vizinhos. Nas capas dos discos as listas de agradecimentos e dedicatórias são extensas. A inclusão de fotos de jovens atingidos pela violência cumpre duplamente a função de indicativo de pertença e protesto contra a impunidade. O registro de fotografias, como em Sobrevivendo no Inferno, se coloca como um ato político, pois fixam a indignação contra o esquecimento e o descaso em punir os homicidas.
Sabemos que o rap é uma expressão musical característica de um momento de internacionalização da música popular, mas fica evidente também que adquiriu internamente características próprias. Nos limites da periferia assumiu as feições de um movimento em defesa da vida. Através de estratégias distintas os músicos têm procurado evitar que as identidades individuais daqueles que foram mortos sejam diluídas no conjunto frio dos números arrolados pelas estatísticas. O próprio rapper Mano Brown se auto-refere nos encartes dos CDs e shows por meio da expressão: aqui quem fala é mais um sobrevivente, porque é essa a sensação que se tem na periferia paulistana após a ultrapassagem do período crítico entre 15 e 24 anos. O depoimento abaixo é esclarecedor:

As vezes eu vejo o Racionais tipo no meio de um inferno, cercado de uma pá de coisas – tráfico de um lado, polícia que quer ferrar a gente de outro, a inveja do outro, os playboys que querem pegar você e te esmagar. Então cê tá no meio, driblando o tempo todo prá sobreviver. É treta, é maluco que é viciado, é mano que mata o seu camarada e pode querer vir atrás de você também e você tá no meio. Ao mesmo tempo, cê não quer se vender pro sistema dos caras e tem que conviver com o sistema dos caras aqui embaixo também. Então é como um desabafo de como você faz prá sobreviver no meio disso tudo (Mano Brown, Caros Amigos, 3 1998).

A referência ao sagrado presente no CD Sobrevivendo no inferno (1997), pode ser também interpretada como uma conseqüência indireta da violência que passou a dominar a vida na cidade. O tema é mencionado em diferentes momentos. A escolha da faixa de abertura, Jorge da Capadócia, revela a adesão ao candomblé por membros do grupo, mas é também indicativa do crescimento das religiões afro-brasileiras na periferia paulistana como legado da grande onde migratória dos anos 70. Porém, outras referências, como a cruz estampada na capa do CD, citações do Salmo 23, versículo 3 (“refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça”), a inclusão de músicas com títulos alusivos à Bíblia: GênesisCapítulo 4 versículo VI, articulam um conjunto de elementos peculiares ao domínio do religioso, recurso esse cada vez mais presente no cenário de incertezas que predomina nas “zonas de guerra”. 
A temática racial mereceu também atenção especial dos rappers paulistanos ainda na fase inicial (1990-1994). O tema foi abordado originalmente no contexto norte-americano pela new school à qual se filiam o grupo Public Enemy,NWA, KRS One, Eric B e Rakin. A proposta musical que apresentaram contribuiu decisivamente para a consolidação do rap como música de protesto. Ícones da luta pelos direitos civis dos negros como Martin Luther King, Malcom X, Black Panters, o islão, passaram a ser citados com freqüência nas composições e videoclipes.  A música Voz Ativa (Racionais MC’s) é ilustrativa dessa tendência no Brasil. As referências à luta pelos direitos dos negros e aos símbolos afro-americanos internacionalizados confirmam que os jovens redescobriam internamente a temática racial através do olhar externo.

Voz Ativa
(Mano Brown/Edy Rock, LP Escolha seu Caminho, 1992).
(…)
Precisamos de um líder de crédito popular
Como Malcom X em outros tempos foi na América
Que seja negro até os ossos, um dos nossos
E reconstrua o nosso orgulho que foi feito em destroços
Nossos irmãos estão desnorteados
Entre o prazer e o dinheiro desorientados
Brigando por quase nada, migalhas coisas banais
Prestigiando a mentira, as falas, desinformados demais.
Chega de festejar a desvantagem e permitir que desgastem a nossa imagem.
Descendente negro atual, meu nome é Brown.
Não sou complexado e tal, apenas racional.
É a verdade mais pura, postura definitiva.
A juventude negra agora tem voz ativa
(…)

A compreensão das relações raciais no contexto norte-americano permitiu aos rappers brasileiros conceber o racismo como uma experiência comum aos negros na diáspora. A despeito das particularidades culturais e lingüísticas, compreenderam que não existiam diferenças significativas entre ser negro no Brasil ou nos EUA. A questão racial passou a fundamentar-se internamente na perspectiva bipolar característica do contexto norte-americano. A democracia racial brasileira tornou-se objeto de questionamentos, sendo qualificada como uma máscara responsável por dissimular as desigualdades reais existentes entre negros e brancos:

O Brasil é o país mais inteligente para discriminar os “negros” e os pobres, por isso ele é falso, aqui no Brasil se usa uma estratégia que vem funcionando há mais de 400 anos certo! Que é mentir prá você, que é para mostrar para aos “negros” e para o mundo que o Brasil não é um país racista, e que aqui é o paraíso da integração, e não é isso, há uma máscara que esconde tudo isso, e não temos como provar, você só consegue ver isso no dia-a-dia, nas atitudes das pessoas, na atitude da polícia. Quando você vai arrumar um emprego, nos papéis que os negros fazem nas novelas, nas revistas, nas grandes modelos que aparecem (Mano Brown, Revista Mix: 6 , 40, 1997).

O LP Raio X do Brasil inicia exatamente com um discurso de Mano Brown confirmando a partir de dados estatísticos que a violência no Brasil tem cor, e que são os negros o alvo preferencial. Apresenta também um apelo aos jovens para que busquem informações sobre a realidade social por meio do rap. A música é simultaneamente apresentada como alternativa de lazer e veículo de conscientização sobre as implicações da nova ordem social, genericamente denominada de “o sistema”. 

Racionais, usando e abusando da nossa liberdade de expressão, um dos poucos direitos que o jovem negro ainda tem nesse país. Você está entrando no mundo da informação, auto-conhecimento, denúncia e diversão. Este é o raio x do Brasil, seja bem vindo ( Mano Brown, Raio X do Brasil, 1993).

A atitude política a ser adotada naqueles momentos inaugurais deveria orientar-se pelo auto-conhecimento. Na prática isto significava adquirir formação literária complementar ou paralela à educação oficial, pois os saberes que demandavam não eram veiculados pelas escolas públicas. Desejavam, sobretudo, obter conhecimentos sobre a cultura negra em geral e sobre as implicações do racismo. Livros como Negras Raízes (Alex Haley), Escrevo o que Eu Quero (Steve Byko); biografias de lideranças negras internacionais como Martin Luther King e Malcom X;  textos que discutiam a especificidade do racismo brasileiro, especialmente produzidos por Joel Rufino e Clóvis Moura, passaram a integrar a bibliografia pessoal daqueles que se filiavam ao movimento hip hop. Adotaram ainda nesse primeiro momento valores relacionados com o black is beautiful e com o orgulho negro na perspectiva celebrizada por James Brown na frase I’m black and I’m proud. Enfatizaram assim os laços com o movimento black power dos anos 70 e se colocaram como continuadores das tradições mais expressivas da black music
Do ponto de vista antropológico os problemas enfrentados atualmente pelos jovens pobres e negros nos bairros periféricos são decorrentes da desindustrialização da metrópole e da segregação urbana que dividiu a cidade em guetos nobres fortificados e o mundo da periferia (Caldeira, 2000). A música dos rappers tem feito a crítica dessa nova ordem. Por meio de categorias próprias, denunciam o holocausto urbano e ironizam os controles implantados pelos sistemas eletrônicos nos shoppings centers, bancos e condomínios fechados. A partir de expressões como é nóis na fita mano, referem-se à incapacidade das novas tecnologias em deter os excluídos. Com as narrativas sobre o mundo da periferia os rappers pretendem romper com o silenciamento sobre os problemas enfrentados nas “zonas de guerra”. Os jovens ao serem submetidos ao desemprego e privados dos sistemas de apoio social, como saúde, educação e segurança, cujos financiamentos foram drasticamente reduzidos pelo poder público nos anos 90, tornaram-se prisioneiros da crise social, expressa pelos indicadores crescentes de violência. 
Atualmente a classe média ao se ver também atingida começa reagir, mas os problemas da violência que aparecem agora como uma novidade há algum tempo são diretamente enfrentados pelos cidadãos comuns na periferia. Sabe-se que nesse universo a crise social continua sendo tratada como um caso de polícia. Diante do silêncio indiferente da metrópole os rappers têm se colocado como os principais porta-vozes da juventude. Algumas músicas são claros manifestos em defesa da vida. O conteúdo dessa nova postura pode ser localizado em frases simples e viscerais, como no exemplo: “periferia segue sangrando e eu pergunto até quando?” (GOG, rapper de Brasília).

Professor de Antropologia da Universidade Federal de Uberlândia

Notas
  O hip hop é um movimento estético que articula três expressões artísticas fundamentais: a arte gráfica (o grafite), a dança (o break) e a música (o rap). Originou-se no final dos anos 70 nos bairros negros novaiorquinos. Em São Paulo as primeiras manifestações ocorreram em meados dos anos 80 através da breakdance. Para uma análise mais detalhada ver Silva (1998)
  A escolha do termo ‘vulnerabilidade juvenil’ foi uma opção àqueles utilizados de forma mais recorrente, como “adolescente em situação de risco” ou “adolescente em situação de exclusão social (…) a restrição ao uso do termo “adolescente em situação de risco” decorreu do entendimento de que este remete para a mensagem, preconceituosa, de que só os pobres são vulneráveis (…). O termo ‘adolescentes em situação de  exclusão social’ é ainda mais enganoso, pois o que ocorre não é propriamente uma exclusão, mas uma ‘inclusão perversa’ ”
  Principal grupo de rap nacional. Surgiu no final dos anos 80, sendo integrado por Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KLJ. 
  Instrumento eletrônico que permite recortar e colar sons em uma música. Trata-se de um recurso fundamental para a construção das bases sonoras do rap
  As músicas mencionadas estão presentes no CD Racionais MC’s, Zâmbia, 1996. Reúne as produções anteriores do grupo lançadas em LPs (Holocausto urbano, 1992 e Raio X do Brasil, 1993).
  Tricia Rose (1994) discute este problema no contexto norte-americano a partir de experiência do rapper Vanilla Ice, jovem branco de classe média que encontra dificuldades em ser aceito como integrante do movimento hip hop. Condição semelhante tem sido vivida no plano nacional pelo rapper carioca Gabriel O Pensador.
  Reginaldo Prandi (1991) apresenta um mapeamento quase exaustivo sobre o candomblé na cidade de S. Paulo. Nota-se em sua descrição a presença significativa dos terreiros nos bairros da Zona Sul. Este movimento pode ser interpretado como reterritorialização cultural da desterritorialização da população afrodescendente nos anos 70 rumo aos centros mais dinâmicos da economia nacional conforme os argumentos desenvolvidos por Hasenbalg (1978).

  Um estudo interessante sobre a continuidade entre o movimento hip hop a matriz cultural africana e o black power no contexto norte-americano foi elaborado por Keyes (1996). Para uma análise do discurso interno dos rappers paulistanos e a black music, ver a música Senhor Tempo Bom (Thaide e DJ Hum).
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