Silvana de Souza Nascimento
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo
Esta festa não se acaba
Esta festa não tem fim
Se esta festa se acabar
Ai, ai meu Deus
Que será de mim?1

Introdução

Foto: Silvana Nascimento - Romeiros de Mossâmedes a caminho do santuário de Trindade, 1997O tempo da festa é o tempo da seca. Depois que já foram feitas as colheitas do milho, do feijão e do arroz, entre os meses de maio e setembro, este é o período propício para as festividades do município de Mossâmedes, no sudoeste do estado de Goiás. Em maio, há a Festa de São José, o padroeiro da cidade; em finais de agosto, comemora-se o Divino Espírito Santo; em julho, Nossa Senhora das Graças e em junho, especialmente, dezenas de famílias dirigem-se em romaria para a grande Festa do Divino Pai Eterno2, no santuário de Trindade, a poucos quilômetros de Goiânia. Esta é uma das mais importantes festas católicas de Goiás e atrai romeiros de diversas regiões do país, principalmente do Centro-Oeste, que chegam até lá nos mais variados meios de transporte: caminhão, ônibus, carro, carroça, carro de bois e a pé.

No pequeno município rural de Mossâmedes, com poucos mais de 5500 habitantes, cada ano é marcado pelo período anterior e posterior à Festa do Divino Pai Eterno – a referência central em relação às demais comemorações, que se intercalam às atividades cotidianas, ao longo da época da estiagem. Todos os anos, aproximadamente quarenta famílias percorrem 150 quilômetros de estrada de terra em carro de bois, durante seis dias, até chegar ao santuário. 

Durante a festa, Trindade chega a receber mais de 300 mil pessoas e entre elas mais de dez mil chegam à cidade em carro de bois, originárias principalmente dos municípios que circundam a capital. São justamente estes romeiros, os chamados carreiros, que são o foco deste texto, mais especificamente o grupo de Mossâmedes, que é um dos mais antigos no hábito de fazer essa romaria utilizando esse meio de transporte. Mas este hábito de viajar em carro de bois em direção a uma terra santa, embora possa ser interpretado como ‘tradicional’ ou ‘antigo’, não se mostra uma prática folclórica de velhos romeiros e velhas devoções. A romaria, como pretendo demonstrar no decorrer do artigo, mostra-se uma proposta contemporânea de continuidade de elementos das culturas tradicionalmente rurais e do chamado catolicismo rústico e, ao mesmo tempo, apresenta a possibilidade de dialogar com certos aspectos das culturas urbanas3.

Nesse sentido, meu propósito é mostrar que, diferentemente do que os estudos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, nos anos 1960 e 1970, prenunciavam – de que, pelo processo de urbanização e industrialização, os elementos fundamentais do catolicismo rústico4, tenderiam a desaparecer, inclusive as festividades, que organizavam os bairros rurais5 – a festa de romaria mantém traços de uma forma tradicional de devoção e não está fechada nem vulnerável às transformações que provém de um mundo urbanizado.

Apesar de enfatizar a falta de isolamento e a ligação dos bairros rurais com a sociedade global, Queiroz previa um triste futuro para a organização tradicional dessas populações rurais. A urbanização e a industrialização terminariam por incorporá-las ao universo das cidades e elas perderiam seus traços característicos, inclusive as manifestações do catolicismo rústico, que organizavam os bairros rurais. Em suas palavras, “não apenas o catolicismo rústico brasileiro se constituiu segundo as necessidades do bairro rural tradicional, como também a ele está associado de maneira profunda, não sobrevivendo se por acaso o bairro rural desaparece” (1973a:96)6. Contudo, na atualidade, ainda se podem observar diversas formas de religiosidade, especialmente festas populares, associadas ao catolicismo rústico entre populações sertanejas no Brasil. Ele se manifesta de diferentes maneiras, não somente na zona rural como também nas cidades, e continua a apresentar-se como um dos elementos formadores da chamada cultura rústica7 e que contribuem para a sua permanência. 

Miguel Santos (1976), em sua dissertação de mestrado sobre o santuário de Trindade, já aponta para o crescimento das romarias durante o desenvolvimento do processo de urbanização: primeiramente quando a capital é transferida para Goiânia, em 1934 e, posteriormente, quando a sede federal transporta-se para Brasília, em 1960.

Atualmente, a Festa do Divino Pai Eterno é um grande evento de massa, organizado pelos missionários redentoristas, que dirigem o santuário desde o final do século XIX 8, pela Prefeitura de Trindade e por comerciantes. Por parte dos padres, eles realizam missas de hora em hora nas duas igrejas da cidade, procissões todas as manhãs, e também confissões. A cidade fica repleta de camelôs, barracas de comida, bebida e de jogos, parques de diversões, shows e bailes.

A pesquisa de Carlos Steil sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, indica também que, ao contrário da previsão de Queiroz, o processo de urbanização e as mudanças contemporâneas na economia, na política e na cultura no campo não estimulam o desaparecimento dessas manifestações religiosas de caráter popular. Na verdade, vê-se um aumento do número de romeiros nas últimas décadas. “As mudanças sociais nas relações sociais no campo e o processo explosivo de urbanização têm feito crescer o número de romeiros” (Steil, 1996:294). 

Para desenvolver uma etnografia da romaria, então, é preciso analisá-la como um processo múltiplo, que abarca diferentes dimensões (religiosas, sociais, econômicas, culturais) e mobiliza a vida social dos romeiros de Mossâmedes na sua totalidade. A idéia é percorrer três momentos distintos, seguindo o caminho do ciclo da peregrinação – o lugar de origem dos romeiros, a viagem propriamente dita e a festa no santuário – e não delimitar o campo de investigação apenas ao evento oficial da Festa do Divino Pai Eterno, em Trindade, do qual a romaria de Mossâmedes seria apenas um complemento. 

Como um lugar de encontro, a romaria, para além do seu aspecto religioso, conforma uma ampla rede de sociabilidade e comunicação entre seus atores. Pelo menos uma vez ao ano, eles têm a oportunidade não apenas de participar das comemorações à Santíssima Trindade mas também de experimentar um estilo de vida diferenciado que dialoga, de certa forma, com as culturas urbanas, como se poderá compreender melhor ao longo do texto9.
No caminho de Trindade

Foto: Silvana Nascimento. Crianças dentro do carro de bois, a caminho de Trindade, 1997A romaria para a Festa do Divino Pai Eterno começa com os preparativos no município de Mossâmedes, tanto na zona rural quanto na cidade. Participar ativamente da romaria significa realizar determinadas atividades antes, durante e depois da viagem e contribuir para que ela tenha realmente êxito. Não basta ser devoto do Divino Pai Eterno, para ser romeiro é preciso trabalhar e cumprir certas regras de sociabilidade. 

Em sua maioria, os romeiros possuem pequenas propriedades na zona rural, o equivalente a terras até aproximadamente 100 hectares em fazendas10 de criação de gado, e sustentam-se com o trabalho familiar. Mesmo aqueles que moram na cidade possuem pequenas propriedades ou trabalham no campo como diaristas. 

A pequena cidade de São José de Mossâmedes nasceu da formação de um aldeamento jesuítico nos tempos da colonização, em meados do século XVIII. Atualmente, a cidade é uma extensão do campo, onde se encontra um pouco mais da metade da população do município. As atividades pecuárias – de leite e de corte – são a base da sua economia e a agricultura (arroz, milho, feijão, mandioca, cana-de-açúcar) está voltada, de modo geral, para a subsistência. 

Nos dias que prenunciam as festividades, os trabalhos para a festa alternam-se com os realizados no cotidiano. Os trabalhos são divididos entre homens e mulheres. Estas permanecem muitas horas na cozinha preparando, além dos almoços e jantares rotineiros, carnes, doces, bolos e salgados para a festa. Esse é um momento em que mães, filhas, noras e cunhadas encontram-se com mais freqüência e trabalham de forma coletiva. Elas também aproveitam a ocasião para contar casos, piadas e principalmente fofocas. A conhecida expressão “lugar de mulher é na cozinha”, tão pejorativa no universo urbano das grandes cidades, revela-se aqui uma realidade cotidiana que não é vista nem como ultrapassada nem como negativa. A cozinha é predominantemente o lugar das mulheres. Principalmente na zona rural, elas ficam dias sem visitar o curral, as roças, os pastos e os bois, lugar do trabalho masculino. Por sua vez, os homens circulam pela cozinha durante todo o dia, seja para comer, seja para tomar café, conversar com a esposa ou receber alguma visita. No dia a dia, eles estão sempre de passagem entre a casa, a cozinha e a fazenda, e elas circulam apenas pelos espaços da casa e do terreiro. Assim, os homens têm uma maior mobilidade em relação às mulheres e, como se verá mais adiante, esta situação tende a alterar-se durante a romaria. 

Enquanto as mulheres preparam o banquete para a festa, fora da cozinha os homens dedicam-se aos trabalhos no curral (produção de leite) e nas roças, e à montagem dos carros de bois, que vão conduzi-los até o santuário. Um cuidado especial com o carro é que ele deve cantar. A roda deve emitir um som característico – o chiado – que pode ser ouvido e identificado a quilômetros de distância. Se a roda não canta, o carro morreu, acabou, explica um velho carreiro. 

Desse modo, desde os preparativos até as festividades no santuário de Trindade, os trabalhos não são suspensos. Na situação de festa, a obrigação do trabalho de cada dia torna-se voluntária. Como nos diz Victor Turner (1974b), nas peregrinações particularmente cristãs, a obrigação transforma-se em uma experiência desejável. 

No caso da romaria de Mossâmedes, o aumento do volume de trabalho em função da festa cria uma situação prazerosa e necessária, revelando que esse aparente sacrifício é concebido como um valor. Nesse sentido, o trabalho não se opõe à festa mas a complementa. Ambas categorias revelam-se constitutivas de um certo ethos camponês, no qual se insere o universo de valores dos romeiros.

Segundo Klaas Woortmann, há três categorias comuns às populações camponesas, relacionais e interdependentes, que constituem a sua ordem moral: a terra, a família e o trabalho, vinculadas aos princípios de honra e hierarquia. “O importante, contudo, não é que sejam comuns – pois elas estão presentes, também, em culturas urbanas – mas que sejam nucleantes e, sobretudo, relacionadas, isto é, uma não existe sem a outra. Nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem pensar em família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família. Por outro lado, essas categorias se vinculam estreitamente a valores e princípios organizatórios centrais, como a honra e a hierarquia” (Woortmann, K., 1990:23).

Em Mossâmedes, partindo do modelo de Woortmann, o trabalho, a família e a terra também são categorias fundamentais para a compreensão de sua organização social. Mas, em relação às formas de sociabilidade, uma outra categoria revela-se importante: a festa. Nessa realidade etnográfica específica, ela se mostra como um dos componentes centrais do universo de valores dessa população camponesa. A festa constrói uma rede de sociabilidade que dialoga com diferentes dimensões do cotidiano, inclusive o trabalho, e sintetiza, rearranja e intensifica as relações na esfera das relações de gênero, da família, da vizinhança, como será desenvolvido mais adiante.

A partida da romaria é feita na casa do seu Tota, na fazenda Paraíso, que possui um grande prestígio no município, especialmente porque ele é um dos romeiros mais antigos, que participa da viagem há mais de quarenta anos. Tradicionalmente, os carros de sua família ocupam a primeira posição e guiam os demais pelas estradas, formando uma comprida carreata. A sua presença na romaria mostra-se de fundamental importância para os demais participantes; ele é visto como um líder no período da festa e representa, acima de tudo, a garantia de sua perpetuação.

De sua casa, os romeiros saem para uma viagem de seis dias, por estradas de terra, e acampam em fazendas até chegar ao santuário. Uns atrás dos outros, os carros de bois, numa ordem que quase nunca é interrompida, seguem num balanço vagaroso e cantam, cada um à sua maneira, até chegar aos pousos. A romaria passa por algumas pequenas cidades: Americano do Brasil, Capelinha (vilarejo) e Avelinópolis.

A ordem dos carros obedece a uma relativa hierarquia, determinada pela tradição. A posição específica de cada carro depende do período em que o carreiro está participando da viagem. Assim, os primeiros da fila são aqueles que já fazem a viagem há muitos anos e os últimos são aqueles que começaram a participar da jornada há pouco tempo e ainda não estão familiarizados com as suas regras. Então, na frente, vão os carros da família do seu Tota, depois alguns carreiros mais antigos e assim por diante. Na verdade, não existe uma ordem rígida que determine uma posição específica para cada carreiro, que pode estar aleatoriamente um pouco mais na frente ou mais atrás, dependendo do ano. Além disso, cada família extensa11, que tem mais de um carro, procura posicionar seus carros uns atrás dos outros.

Percorrendo em média 25 quilômetros por dia, ao cair da tarde, os romeiros chegam aos pousos – terras de fazendeiros previamente negociadas e escolhidas pelo líder. Em cada pouso, repetem-se as mesmas atividades. Se, pelas estradas, os homens realizam o trabalho de carreiro, nos pousos, as mulheres cumprem também a sua obrigação, num ato de reciprocidade, e fazem a janta. 

As refeições são momentos de reunião familiar. Interessante notar que, na maioria das barracas, as mulheres utilizam os mesmos utensílios domésticos para preparar as comidas: fogão industrial em caixote de madeira, panela de pressão, panelas de ferro, tacho e latões para armazenar água. E a dieta também não varia muito entre as famílias (arroz, feijão, carne seca, carne de vaca cozida, feijão, repolho, tomate e macarrão).

Nos pousos, cada grupo familiar ampliado, ou melhor, cada família extensa, dorme e come de baixo do mesmo teto. Essa é uma situação peculiar em relação ao cotidiano, em que cada família nuclear possui a sua própria casa e, algumas vezes, a sua propriedade. A romaria possibilita uma ampliação da convivência entre parentes, intensificando as relações familiares.

Depois da janta, em cada pouso, os romeiros reúnem-se para a reza. As orações são organizadas por duas jovens mulheres, irmãs, ambas noras do seu Tota. Antigamente, as famílias faziam, individualmente, a reza do terço nas barracas, sem compartilhar as orações com todo o grupo de romeiros. Cada um fazia sua devoção na barraca. Cada um fazia seu pedido a Deus, conta uma romeira idosa.

Somente há dez anos as rezas passaram a ser coletivas, estimuladas por essas jovens mulheres, que circulam entre as barracas chamando todos os romeiros. As orações apresentam uma estrutura definida: partilha dos acontecimentos do dia, uma intervenção de um representante da Igreja, leitura do Evangelho, o Pai Nosso, às vezes seguido de uma Ave Maria cantada, intercalando vozes femininas e masculinas, e a música principal que é cantada durante todo o percurso: Romaria12

Essas rezadeiras, leigas, são coordenadoras de um grupo católico que se reúne na zona rural de Mossâmedes, e que parece ter sido originado de uma proposta de formação de uma Comunidade Eclesial de Base. Esse grupo, que se autodenomina comunidade, faz parte de um projeto mais amplo da Diocese de Goiás que, a partir dos anos 1980, começou a desenvolver uma pastoral popular para “dar voz” aos trabalhadores do campo. O objetivo era descobrir “uma religiosidade comum que traduzisse a ‘caminhada’, a luta popular em que se envolviam ao mesmo tempo os agentes da base (os lavradores e outros) e os agentes de pastoral (os padres e outros)” (Brandão; 1985:158).

A comunidade, que tive a oportunidade de observar na fazenda Paraíso, não possui mais um vínculo direto com os projetos originais das Cebs, de caráter político e militante. Durante as reuniões, não se discutem nem se põem em prática as questões político-religiosas divulgadas pela Teologia da Libertação. Contudo, durante a romaria, o espírito da “caminhada” conduz as orações. As coordenadoras, ao lado de padres, monges e seminaristas visitantes, procuram estimular os seus participantes a expressarem suas opiniões sobre a experiência da romaria, e sobre a leitura do Evangelho do dia.

As rezas realizadas nos pousos indicam que há uma reelaboração de diversas formas de oração que foram incorporadas pelos romeiros. De um lado, as organizadoras leigas procuram incentivar a participação de todos nas celebrações e, de certo modo, permanecem ligadas, pelo menos no discurso, nos princípios comunitários das Cebs, ainda que não haja uma clara preocupação política e militante. De outro, parece existir uma certa independência das rezas em relação às celebrações realizadas pelos agentes eclesiásticos. Mesmo que alguns padres acompanhem a romaria, no momento das rezas eles participam apenas de maneira periférica como “assistentes” das coordenadoras. Ou seja, as orações são organizadas de maneira relativamente autônoma em relação aos padrões oficiais da Igreja Católica e apontam, portanto, para a permanência de um aspecto fundamental do catolicismo rústico tal como foi definido por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973a): a ausência de padres.

Depois das orações, são os jovens que animam a festa noturna, com bailes, música e paquera. O baile começa antes da reza, é suspenso durante as orações coletivas, e depois continua noite adentro. Quando não tem baile, grupos de jovens costumam reunir-se ao redor de carros ou de fogueiras para ouvir músicas.

Antes do nascer do sol, todos se preparam para continuar a jornada. As mulheres fazem um almoço matinal, todas as bagagens retornam para os carros e juntam-se os bois. À medida que a carreata vai saindo do pouso, formam-se alguns grupos: além dos carreiros, mulheres casadas que andam a pé, moças solteiras, também a pé e jovens a cavalo. Também há pessoas que estão pagando promessas, que fazem todo o percurso a pé. Os carreiros e candeeiros permanecem próximos aos carros, para que os bois não desviem do caminho certo13

Em relação às mulheres, há duas maneiras de fazer o percurso: dentro ou fora do carro. Na primeira, são as mães com crianças pequenas ou aquelas que preferem ficar com seus esposos ou as que simplesmente não gostam de andar. Na outra, estão as que optaram andar na frente, e entre elas as que estão pagando promessas. Nesse último caso, as mulheres andam em grupos nos quais a presença masculina é quase nula. As solteiras preferem distanciar-se das casadas, porque a viagem é um momento propício para paquerar e namorar os rapazes. 

Certa vez, uma das mulheres que nos primeiros dias andava a pé resolveu acompanhar o marido, ao lado do carro de bois, e foi alvo de comentários como ela não larga o marido. Largar o marido, mais para umas e menos para outras, revela-se um fato extraordinário, já que o casamento, para essas mulheres, implica permanecer em casa a maior parte do tempo. Durante a romaria, elas têm a oportunidade de afastar-se temporariamente do marido, mas este não perde de vista a sua esposa, pois sabe que está na frente, no grupo das casadas, e portanto fora do risco do adultério. Em contrapartida, as mulheres também estão sempre de olhos abertos em relação aos maridos. Nas palavras de uma romeira, homem é bicho custoso.

No caminho, entre um pouso e outro, forma-se uma rede de sociabilidade que redimensiona as relações sociais estabelecidas no cotidiano. Abre-se uma brecha para as mulheres casadas afastarem-se temporariamente do marido, para as moças se encontrarem com rapazes sem a presença da família, para os homens mostrarem sua masculinidade nas cavalgadas e suas habilidades de carreiro. Ao mesmo tempo, formam-se novas relações entre romeiros de diferentes municípios e entre romeiros e moradores das fazendas em que passa a romaria. 

Na estrada, os moradores das fazendas e das cidades esperam os romeiros com garrafas de água e abrem suas casas para o uso dos banheiros. Sabe-se aproximadamente o horário em que a romaria passa e as famílias ficam na beira da estrada para ver os carros de bois. Pressupõe-se uma certa hospitalidade em relação aos moradores dos lugares em que passam os romeiros. Só encontramos gente boa no caminho, comentou uma romeira de Americano do Brasil, que estava cumprindo promessa, que acompanhava o grupo de Mossâmedes. Essas cidades de passagem criam uma sociabilidade momentânea fundamental, formando pontos de encontro entre moradores e romeiros. “Nesse comércio particular – troca de víveres e abrigo por orações –, o sacrifício da caminhada adquire o seu sentido próprio, sacra facere, faz sagradas as coisas e pessoas ao redor” (Fernandes; 1994: 25).

Foto: Silvana Nascimento. Vista do Santuário Novo, Trindade, 1998
Lugar de encontro

A rede de sociabilidade que se forma na romaria amplia as relações dos romeiros para fora da esfera restrita do seu lugar de origem e, ao mesmo tempo, dinamiza as relações familiares, entre famílias e entre os gêneros. A romaria, nesse sentido, mostra-se como um lugar de encontro. 

Pierre Sanchis, em seus estudos sobre peregrinações e festas populares em Portugal, aponta para uma noção de “estrutura de encontro” das romarias: estas revelariam os permanentes conflitos entre as formas de religiosidade popular e aquelas consideradas oficiais pela Igreja Católica. Desse maneira, o autor procura demonstrar que as romarias formam-se por uma ambigüidade intrínseca de conflito e compatibilidade entre uma religião popular e a religião católica oficial. “Essa ambigüidade fundamental, na visão das coisas e no comportamento cultual, terá tendência a permanecer viva, de uma vida subterrânea, para emergir e se alojar, desta vez visivelmente, em qualquer nicho de legitimidade oferecido pelas manifestações religiosas aceitas pela hierarquia. A principal, desde então e até hoje, será a romaria” (Sanchis, 1973:10). Segundo ele, a romaria, no caso específico português, representaria um espaço de tolerância e reivindicação da religião popular como resposta à ordenação e regulamentação da religião oficial.

No caso de Mossâmedes, para além da religião, o processo da romaria abarca outras dimensões da vida social dos seus atores, entre elas o parentesco, a sociabilidade (familiar e de vizinhança), o trabalho, o consumo. Esta perspectiva tem sua inspiração na teoria de Victor Turner. Para ele, as peregrinações, de modo geral, devem ser compreendidas como um processo social que apresenta uma estrutura temporal determinada: 
lugar familiar – lugar distante – lugar familiar

O autor pensa essa estrutura a partir da teoria de Van Gennep (1969) em relação aos rituais de passagem, que possuem três fases distintas: separação – margem – reagregação. Resumidamente, nesses ritos, o indivíduo é posto à margem da sociedade em que está inserido, por um tempo determinado, para depois ser reagregado a ela, assumindo um novo papel social. Mas enquanto esses ritos introduzem um estado permanente a peregrinação precisa ser repetida todos os anos (Steil, 1996). 

Turner faz essa analogia para mostrar que, nas romarias, forma-se uma situação liminar na qual o indivíduo liberta-se das obrigações cotidianas e vive temporariamente um novo modelo de vida. “A romaria libera o indivíduo dos constrangimentos cotidianos obrigatórios de status e papéis, o define como um ser humano integral com capacidade de fazer escolhas livres, e dentro dos limites de sua ortodoxia religiosa, lhe apresenta um novo modelo de vida, de fraternidade humana” (1974b:107).

Este estado de liminaridade, que se encontra “no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial” (Turner, 1974a:117), permite, pois a experiência da communitas que, segundo o autor, pode ser analisada a partir de três diferentes tipos. A primeira, existencial ou espontânea, resulta de um sentimento momentâneo de uma identidade coletiva e homogênea, como se os romeiros fossem, em determinados momentos nos santuários, membros de uma irmandade. A segunda, normativa, relaciona-se à necessidade de organização e controle social de seus membros por meio de regras determinadas. A terceira, ideológica, refere-se a modelos e projetos utópicos baseados na communitas existencial14

De acordo com a teoria de Turner, a communitas normativa é a predominante porque, nas romarias, a distância geográfica entre o lugar de origem e o santuário, além do grande número de participantes, compele à organização e à disciplina. Todavia, esta situação não elimina as regras da estrutura social mas as simplifica. A experiência da communitas, fons e origo da estrutura, põe em questão suas regras, dialoga com ela e sugere novas possibilidades. Para Turner, essa ambigüidade sugere um compromisso mútuo entre a estrutura15 e a communitas, um movimento entre a obrigação e a voluntariedade, a norma e o desvio, o sagrado e o secular.

Segundo Carlos Steil, a experiência da communitas não esgota o sentido da peregrinação porque essa idéia rompe justamente com as fronteiras de classe, de idade e de sexo das estruturas sociais e pressupõe uma certa homogeneidade e uma espécie de igualitarismo entre os romeiros. Sua abordagem aproxima-se de John Eade e Michael Sallnow (1991), que pensam a romaria como um campo no qual competem diversos discursos, religiosos e seculares, oficiais e não-oficiais (realm of competing discourses). Eade e Sallnow argumentam que, nas peregrinações de tradição cristã, ao invés de uma atenuação ou dissolução dos laços sociais (que se observa na communitas), há um reforço tanto do consenso quanto da separação, tanto dos laços quanto das distinções sociais. 

Partindo da perspectiva desses autores, Carlos Steil argumenta que a romaria comporta múltiplas divergências internas e pode ser melhor compreendida a partir da noção de totalidade contraditória: uma dinâmica da inclusão das diferenças, uma articulação entre o local e o universal, a tradição e a modernidade, a convenção e a invenção. Desse modo, ela permite a formação de um sistema de comunicação, isto é, de um espaço de trocas culturais, que inclui, mas não privilegia, a experiência da communitas.

A descrição etnográfica da romaria de Mossâmedes aqui elaborada possibilita apresentar um contraponto às interpretações de Steil, Eade e Sallnow, sem, no entanto, adotar a abordagem de um único autor. Esta peregrinação revela uma dinâmica específica que, antes de mais nada, não cria um estado que rompe com o anterior, mas promove o diálogo entre situações heterogêneas, dentro e fora do contexto da festa. Assim, ela contribui para reforçar a idéia de que a experiência da communitas não subverte completamente a ordem estabelecida e não oferece um modelo de vida mais homogêneo no qual as distinções sociais atenuam-se. Na verdade, a communitas pode ser vista como um ideal a alcançar – um lugar no qual todas as famílias, vizinhos, amigos viveriam em harmonia –, mas que está longe de propor concretamente regras e padrões diferenciados na duração da romaria16. Portanto, apesar de se apresentar como um lugar de encontro – no qual impera, à primeira vista, a experiência da communitas –, a romaria de Mossâmedes também se mostra como um espaço de reafirmação de diferenças sociais e permite o estabelecimento de relações de alteridade.

Além disso, ela sugere uma nova possibilidade para se pensar a estrutura da peregrinação proposta por Victor Turner (lugar familiar – lugar distante – lugar familiar) porque o percurso que faz a ligação entre esses dois lugares diferentes também deve ser levado em conta para compreender a dinâmica da festa na sua totalidade. Nesse sentido, sugiro um desdobramento desta estrutura, desmembrando o lugar denominado por Turner como “distante” que, em princípio, poderia ser entendido como homogêneo: 
lugar familiar – travessia – santuário – lugar familiar

No momento em que a romaria sai do seu lugar de origem e cria uma situação que difere do cotidiano, ela forma dois tipos de contextos – na estrada e no santuário –, construídos de diversas maneiras e que mantêm uma relação também diferente com o lugar familiar, de origem dos romeiros.

Na capital da fé

Quando chegam ao santuário, depois de sete dias de viagem, os romeiros de Mossâmedes, junto com grupos de outros municípios, participam de um desfile que inaugura o início das festividades no santuário de Trindade numa quinta-feira17. A entrada triunfal na cidade sagrada em carros de boi representa uma participação fundamental na festa, celebrando e valorizando não somente este antigo meio de transporte mas um símbolo central que remete à identidade de ser romeiro e carreiro, originário da zona rural.

Assim, os carreiros e suas famílias de Mossâmedes, Sancrerlândia, Anicuns, Inhumas, Avelinópolis, Americano do Brasil, Damolândia, entre outros reúnem-se na entrada da cidade e desfilam pelas ruas principais do santuário. Geralmente, o grupo de Mossâmedes – conhecido como um dos mais tradicionais, talvez porque possui carreiros que fazem a romaria há mais de quarenta anos – é o primeiro da fila e depois unem-se a ele os representantes dos demais municípios18

Depois do desfile, a primeira coisa que se faz é ir nos pés do Divino Pai Eterno: a primeira coisa, quando eu toco meus bois, é ir lá nos pés do Divino Pai Eterno, do jeitinho que eu estou na viagem, eu posso ter poeira até dentro dos olhos. A primeira coisa que eu faço é ir lá. A hora que eu fiz minhas preces, então, eu venho. Aí qualquer coisa que você quiser eu já faço. Eu vou fazer barraca, vou tomar banho, qualquer trem já me serve. Mas até aquele momento, enquanto eu não vou lá não está certo. Eu não cumpri minha missão (Seu José, carreiro de Mossâmedes, julho de 1998).

O ato de visitar a imagem sagrada é conhecido como o beijamento. Fitas coloridas são amarradas à imagem do Divino Pai Eterno e os devotos, em fila, beijam-nas, rezam, passam por baixo delas e fazem o sinal da cruz. Alguns escrevem pedidos. Depois disso, os romeiros estão livres para festar e podem entrar no universo das práticas profanas.

Segundo Rubem César Fernandes, na cosmologia dos romeiros católicos, tomando como exemplo os Cavaleiros do Bom Jesus – homens que vão a cavalo de Campinas à Pirapora do Bom Jesus em romaria –, não há separação entre as esferas do sagrado e do profano mas uma sobreposição de ambas. Elas fazem parte de um mesmo mundo no qual a dualidade é irredutível, “e permite sempre a descoberta da manipulação profana nas coisas sagradas e, vice-versa, o sacrifício pelo sagrado nas lides profanas” (Fernandes; 1983:85). 

Para fazer reverência ao santo, antes de mais nada, o romeiro deve visitar a sua casa. Essa possível sujeição à coisa ou à pessoa sagrada pressupõe um sacrifício que pode ser representado de diversas maneiras: viajar em carro de bois durante dias em estradas tortuosas, fazer a romaria a pé, entrar de joelhos na igreja e andar nesta posição até o altar etc. Segundo Fernandes, é a dimensão simbólica do sacrifício que permite a passagem do plano profano, comum, ao sagrado, ideal. Se, de um lado, o carreiro é exaltado pelos demais agentes da festa durante o desfile de carro de bois, de outro, ele faz reverência ao Divino Pai Eterno num ritual de sacrifício, chegando do jeito que está na viagem para visitar a sua imagem na igreja. 

A idéia do sacrifício está sempre presente no discurso dos romeiros quando eles se referem à romaria de modo geral. Tem-se como pressuposto que fazer a romaria é uma penitência. 

Na romaria se torna penitência porque a gente dedica alimentação, tudo ali vive em comum, tanto com os que a gente conhece como as pessoas que a gente não conhece. E na comunidade a gente vive com quem a gente conhece já e só partilha a palavra de Deus, a maioria das vezes. E na Trindade não, além da gente partilhar a palavra de Deus, há a caminhada, que é a penitência, e a alimentação, né, com a maioria que a gente não conhece (Jovem romeira de Mossâmedes, 1998). 

Seguindo a explicação acima, compartilhar as orações, rezar, comer, viver em comum, fazer a viagem com romeiros de diferentes regiões, com laços de parentesco e de vizinhança distintos, implica um determinado sacrifício. Durante a festa, é preciso criar novas formas de sociabilidade para lidar não somente com seus parentes, compadres e amigos mas também com pessoas desconhecidas, que são encaradas, muitas vezes, como um perigo em potencial. 

Você pode assuntar, romeiro não anda sozinho. Ao menos de dois. Uma hora sai às vezes uma moça com velho, outra hora um menino com… mas sair um sozinho é difícil. No ano passado, no ano retrasado, mataram um cara bem ali (Seu José, carreiro de Mossâmedes, 1997). 

O fato de não se andar sozinho revela um cuidado especial com a cidade onde está localizado o santuário. Nos acampamentos, os romeiros procuram montar suas barracas nas proximidades do grupo do seu município, o que cria uma sociabilidade segura entre pessoas conhecidas. No entanto, nunca se deixa a barraca sozinha e sempre fica alguém tomando conta, enquanto os outros vão passear na cidade. É preciso ficar atento aos perigos de roubo, ainda que raros. Mesmo em uma cidade sagrada, não se está isento dos perigos do mundo. 
Padres e missas

Foto: Silvana Nascimento. Entrada paraTrindade - Romeiros de Mossâmedes na entrada do santuário de Trindade,1998As atividades religiosas do santuário de Trindade são dirigidas, desde o século XIX, pelos padres redentoristas, cuja proposta está diretamente voltada para um grande público, para a massa de devotos. Os redentoristas – “especialistas em santuários”, nas palavras de Carlos Steil (1996) – também estão na direção de centros como o de Aparecida, no estado de São Paulo e Bom Jesus da Lapa, na Bahia. 

Quando se compara o santuário de Trindade com o de Aparecida e Bom Jesus da Lapa, centros de devoção que vivem praticamente do movimento de romeiros o ano inteiro, vê-se que ele apresenta uma peculiaridade. Trindade só se concretiza como santuário quando vive a Festa do Divino Pai Eterno. “O centro da vida social de Trindade é a grande festa de julho, em que a cidade se transfigura e transborda de seus padrões normais, marcando profundamente o calendário na dicotomia ‘antes e depois da festa’” (Santos, 1976:33). Fora deste período, ela volta ao ritmo normal de uma cidade do interior19, e há apenas um pequeno movimento de romeiros aos domingos, principalmente de Goiânia, para assistir à primeira missa do dia no Santuário Novo. 

Inserida no catolicismo popular tradicional, a festa, originalmente, era dirigida por leigos e as celebrações eram feitas em torno de uma capela. Pela ausência de padres na região, até o final do século XIX, a Igreja atuava esporadicamente em diversas vilas e pequenas cidades, exercendo as chamadas Santas Missões. Eles faziam a substituição de paróquias vagas, pregações na Semana Santa e desobrigas20. Inicialmente, os padres visitavam Trindade apenas no primeiro domingo do mês e somente a partir de 1924 a presença de um representante da Igreja tornou-se permanente. Assim, as comunidades realizavam suas festas de maneira independente, sem a interferência dos padres, nos moldes de um catolicismo tradicional rural. 

A tentativa de interferir nas festividades populares por parte dos redentoristas não se fez sem conflitos, já que a Igreja Católica pretendia realizar uma transformação radical da religiosidade popular. O Padre Ângelo Licati, que foi durante dez anos reitor do santuário de Trindade, e também trabalhou no santuário de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, narra sua versão do conflito: 

(…) foi uma briga. A briga maior não foi por causa da religião, foi porque a irmandade da capela ficava com o cofre e repartia entre si. Eram quatro espertalhões, quatro coronéis, que eles comandavam a festa. (…) Coronéis mesmo. Eles então eram os donos. Todo povo que vinha tinha que obedecer. Então o carro que vinha, leiloava, e repartia o dinheiro entre eles, e acabava a festa. A capela não tinha nem vela, nem paramento, ficava lá. Esse bispo que foi nomeado para Goiás, d. Eduardo, não aceitou mesmo. Tem que mudar. E como ele sozinho não podia foi buscar os alemães, nossos padres em 189421.

A preocupação da Igreja era separar as dimensões consideradas sagradas e profanas da festa. Contudo, um dos traços mais característicos das festas do catolicismo popular, tradicionalmente rural, estava (e está) na mistura, na bricolagem, de ritos e festejos de devoção e diversão. “Apesar dos esforços da Igreja para separar uma parte propriamente religiosa das outras, folclóricas ou das francamente profanas, para o devoto popular o sentido da festa não é outra coisa senão a sucessão cerimonial de todas essas situações, dentro e fora do âmbito restrito dos ritos da Igreja” (Brandão, 1989:37).

A partir do Concílio do Vaticano II (1962 a 1 965), a Igreja Católica redefiniu sua postura em relação ao catolicismo popular. As preocupações clericais voltaram-se sobretudo para as questões sociais, estimulando a participação de leigos em suas atividades. Essas reformas possibilitaram o desenvolvimento de correntes voltadas especialmente para as classes populares, como a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base, de um lado, e a Renovação Carismática, de outro.

A proposta dos redentoristas no santuário de Trindade parece não estar ligada diretamente a esses movimentos. O que existe é um projeto específico dirigido para o público do santuário que pretende abarcar a massa dos fiéis, sem distinção econômica, política ou social. Não há propriamente uma pastoral especializada em atender grupos específicos de romeiros e que procure voltar a atenção para questões sociais e políticas da população que visita o santuário. Nos últimos anos, porém, alguns padres e leigos estão procurando elaborar projetos pastorais em Trindade22

Segundo o padre Ângelo Licati, a preocupação eclesiástica está voltada acima de tudo para o aspecto religioso: o trabalho dos padres é esse: acolher, incentivar a fé, sustentar a vivência cristã, renovar o compromisso com Deus nosso senhor. Rezando você vai conseguir o que precisa, Deus é seu pai (Goiânia, março de 1998). Atualmente, a principal estratégia dos redentoristas está centrada nas celebrações oficiais, realizadas nas igrejas, sem interferir diretamente nas formas de religiosidade popular. Durante a festa, os padres celebram missas de hora em hora nas duas igrejas e realizam confissões coletivas. Organizam também as Procissões da Penitência, todas as manhãs, e uma procissão de encerramento, no domingo à noite. Fora desse período, as missas são realizadas em diversos horários na Igreja Matriz e em quatro outras igrejas da cidade, de acordo com os tradicionais deveres paroquiais. 

A tendência hoje em Trindade é concentrar as celebrações no Santuário Novo, que pode abrigar um número muito maior de devotos do que a antiga Igreja Matriz. No santuário, os redentoristas podem pôr em prática os ideais desta ordem religiosa: atingir grandes assembléias populares. E nada mais propício para ampliar a sua atuação do que a Festa do Divino Pai Eterno.

Foto: Silvana Nascimento. Fila para beijamento da imagem do Divino Pai Eterno, na Igreja velha, Trindade, 1998Por parte dos romeiros de Mossâmedes, a participação nas missas é relativamente esporádica. Só nos últimos seis anos é que eles começaram a freqüentar uma celebração que foi criada especialmente para os que vieram em carro de bois e em grupos de folias: a “Missa dos Carreiros e Foliões”. Os carreiros vão com suas varas de ferrão, os foliões com seus instrumentos e bandeiras, e ambos os grupos participam ativamente da celebração. O trabalho dos redentoristas está voltado, cada vez mais, para a criação de mecanismos e estratégias para atrair um certo público que não costuma freqüentar a igreja nos lugares de origem, principalmente se habitam nas zonas rurais. Há uma preocupação em investir em determinados símbolos populares e tornar as missas mais atrativas, em que os fiéis podem se identificar como parte de uma mesma coletividade23. Este projeto também reflete-se no incentivo que está sendo dado aos carreiros para participarem do desfile de carros de bois24.

As missas são momentos nos quais pode aparecer mais nitidamente a idéia de communitas de Victor Turner. A diversidade dos romeiros, provenientes das mais variadas regiões, é momentaneamente homogeneizada e todos voltam-se para um único interesse: entrar em contato com o sagrado por meio das orações. Assistir à missa e entrar para ver e beijar a imagem significa interromper, por um momento, as festividades profanas.

Como todo centro de devoção, a famosa Sala dos Milagres atrai muita gente. Em Trindade, ao cenário tradicional de fotografias, quadros, pedaços de cabelos, muletas, cruzes, objetos pessoais, cabeças, braços e pernas feitos de cera, oferecidos ao Divino Pai Eterno por promessas cumpridas e graças recebidas, misturam-se stands com projeções de vídeo organizadas por empresas especializadas com imagens da festa, da cidade e especialmente das romarias de carros de bois. 

O santuário torna-se também um local propício para as atividades de mendicância. Em Trindade, a grande circulação de mendigos e doentes incentivou a Igreja a criar a instituição Vila São José Bento Cottolengo que, desde a década de 1950, acolhe centenas de  deficientes, além de prestar serviços de saúde para a população. A Vila sustenta-se com doações, inclusive dos romeiros de Mossâmedes que, todos os anos, oferecem a ela toneladas de sacos de arroz e feijão.
Passeios pelos camelôs

Além dos ritos devocionais – beijamento, missa, procissão –, os romeiros freqüentam bares e lanchonetes, parque de diversões, circo e rodeio. Mas uma das maiores atrações são as barraquinhas. A cidade torna-se um gigantesco camelódromo. Há produtos para todas as idades, gostos e necessidades. Muitas vezes, os passeios pelo santuário, quando já se visitou a imagem e assistiu-se a alguma missa, resumem-se aos camelôs. 

Na verdade, os produtos comprados em Trindade têm mais importância simbólica do que econômica. Um camelódromo montado no santuário ganha um significado especial para os consumidores romeiros. Importa mais onde e menos o quê está sendo comprado. Além disso, durante a festa, Trindade oferece, para a população que vem do interior do estado de Goiás, uma variedade de bens de consumo que só são encontrados naquela quantidade e preço barato nas grandes cidades.

Assim, a “capital da fé” (o nome oficial de divulgação do santuário) torna-se um pólo de consumo. Este deve ser entendido nos seus múltiplos aspectos: como atividade cultural e de lazer, religiosa e comercial. Segundo Mike Featherstone, os bens materiais não podem ser considerados apenas utilidades mas comunicadores, que derivam da produção e da manipulação ativa de signos. Por exemplo, num shopping center, as mercadorias incitam desejo, fascínio e sonhos “à medida que a curiosidade do passante é alimentada pela paisagem em constante mutação, onde os objetos aparecem divorciados do seu contexto e submetidos a associações misteriosas, que são lidas nas superfícies das coisas” (Featherstone; 1995: 44). 

De modo analógico, pode-se afirmar que, para os romeiros, o camelódromo do santuário é o seu “shopping center mambembe”. Como quer Carlos Steil, o santuário é um espaço de trocas simbólicas que inclui um circuito de comércio religioso, espiritual e material. “Assim como se podem alcançar favores materiais por intermédio de orações e penitência, também se podem alcançar graças sobrenaturais, através de doações em dinheiro” (1996:83).

Especialmente entre as mulheres, um dos assuntos centrais são as compras nas barraquinhas. Até o fim das festividades, no domingo, já se sabe onde comprar a calça mais barata de determinado modelo, ou panelas de ferro com o melhor preço, ou a bolsa mais bonita. Interessante observar que, durante o dia, as mulheres circulam ao lado de suas cunhadas, irmãs e comadres, não necessariamente em companhia dos seus maridos, que também fazem passeios pelo santuário junto com outros homens. No entanto, à noite, as casadas circulam pela festa ao lado de seus esposos, ou permanecem nas barracas, e as solteiras, com autorização dos pais, passeiam em grupos ou com os namorados. Não se pode esquecer também que, entre um passeio e outro, elas são responsáveis pelo preparo de todas as refeições para a família e visitas de parentes.

Assim, enquanto velhos e casados podem ficar nos acampamentos contando causos, as moças e os rapazes solteiros, sempre em turmas, saem para os bares e bailes da cidade. Em uma das avenidas existe uma concentração de barracas, uma do lado da outra, que vendem bebidas alcóolicas e colocam, na rua, caixas de som com músicas dançantes, no estilo axé, forró sertanejo, dance music, e até telões com transmissão de videoclips. Este é o lugar de maior movimento durante a noite. Existem circuitos de bares específicos que a juventude de Mossâmedes costuma freqüentar. Nesses lugares, em meio à multidão, os jovens podem encontrar pessoas do seu município e arredores. Assim, uma moça ou um rapaz pode encontrar um pretendente da rede de relações sociais conhecidas da família. Mas também existe relativamente uma abertura para conhecer pessoas diferentes, que moram em outras cidades como Goiânia ou mesmo Trindade. 
A cozinha da festa

Enquanto uma intensa movimentação acontece no centro de Trindade, no acampamento forma-se uma outra dinâmica. O grupo de Mossâmedes monta suas barracas num território comum e transforma-as em casas improvisadas. De modo geral, cada barraca abriga uma família extensa, composta de uma ou várias famílias nucleares. A sociabilidade das barracas promove uma experiência familiar especial em que todos os parentes podem dormir e comer debaixo do mesmo teto, conformando uma comunidade de substância. 

Nesse sentido, alguns aspectos do mundo doméstico, da casa, são postos em evidência, em contraposição à rua, representada pelo santuário como um todo. Segundo Roberto DaMatta (1997), nas situações normais e rotineiras, separamos três visões de mundo complementares: o código da casa, o código da rua e o do outro mundo. No primeiro, encontramos as relações de parentesco, de intimidade, lugar propriamente das pessoas e, principalmente, da mulher; no segundo, um código regulado por leis impessoais, pelo mercado, lugar público onde as pessoas são identificadas como indivíduos; o terceiro refere-se à síntese dos outros dois, espaço de renúncia do mundo com suas dores e ilusões, que se refere aos momentos extraordinários, das festas e dos rituais.

Tendo como referência a classificação de DaMatta, no acampamento em Trindade, de um lado, reproduzem-se as mesmas atividades domésticas, cotidianas, como o preparo das comidas; de outro, e ao mesmo tempo, transformam-se essas atividades pela própria dinâmica da festa. Se as mulheres continuam exercendo as funções de donas de casa, os homens, por sua vez, interrompem o trabalho de carreiro. Assim, a tradicional divisão do trabalho entre os sexos permanece, mas adaptada ao contexto festivo. 

Além disso, a romaria transpõe para o mundo da festa uma parte fundamental do seu cotidiano: o universo da cozinha, lugar feminino e, ao mesmo tempo, da mais íntima convivência social entre parentes. Na festa de romaria, a cozinha está representada pelo interior das barracas. Mesmo durante a viagem, é como se os romeiros levassem, nos e com os carros de bois, aqueles elementos mais significativos da estrutura social.

Dessa maneira, o fogão simboliza um elemento fundamental do universo dos romeiros e, em particular, do feminino. A presença do fogão dentro das barracas, tanto nos pousos quanto no acampamento no santuário, representa uma unidade familiar. Cada família nuclear ou extensa – que dorme e come na mesma barraca – possui o seu próprio fogão, mesmo que seus membros estejam viajando com mais de um carro de bois. É o caso, por exemplo, da família do líder: cada filho viaja com seu próprio carro de bois, mas há apenas um fogão para toda a família, no qual as mulheres compartilham o preparo das refeições. Mas há outra família, em que as mulheres, (duas cunhadas, casadas com dois irmãos) cozinham juntas no mesmo fogão durante a travessia e, depois, separam as cozinhas em Trindade e passam a fazer a comida separadamente, para seus maridos e filhos.

Se, durante a viagem, homens e mulheres reproduzem algumas atividades rotineiras, o trabalho com os bois e o preparo dos alimentos, em Trindade, as mulheres continuam cozinhando e arrumando a “casa”, enquanto os homens, por sua vez, suspendem o trabalho com os bois, já que os animais permanecem em pastos nas redondezas da cidade. No acampamento, durante o dia, podem-se observar mulheres lavando roupas em bacias, outras areando panelas e cozinhando – atividades comuns no cotidiano que aqui são improvisadas. Os homens fazem os serviços braçais mais pesados, como descarregar bagagens e mantimentos, buscar água em latões, além de comprar alguns alimentos no centro da cidade.

A romaria, então, não elimina propriamente as posições sociais. No tempo da festa, ao mesmo tempo em que afirma o lugar social de cada participante, associado ao fato de ser homem ou ser mulher, casado (a) ou solteiro (a), apresenta novos arranjos para as relações estabelecidas pela rotina. 

Se, na festa, os romeiros mantêm uma proximidade que intensifica as relações de intimidade e cria grupos de sociabilidade específicos, depois da intensa união que mantiveram durante a romaria, as famílias dispersam-se em suas casas, na fazenda ou na cidade, e suas relações diluem-se em meio a outras relações, articuladas por meio do parentesco, do compadrio, da terra e do gado, da vizinhança e das relações com as cidades. 

O fim da romaria fecha o ciclo da Festa do Divino Pai Eterno e inaugura o retorno dos romeiros para as atividades rotineiras em Mossâmedes. Das artes mais tradicionais de cozinhar, rezar, fazer romaria em carro de bois aos camelôs, shows e videoclips, Trindade termina suas comemorações ao Divino Pai Eterno, depois de nove dias de festa, com muito lixo nas ruas e a expectativa dos romeiros de retornar no próximo ano25
Considerações finais

De forma atual, a romaria oferece a possibilidade para seus participantes de experimentarem um estilo de vida diferenciado e de estabelecerem redes de relações que intensificam, aglutinam e repensam as relações de intimidade/identidade e de alteridade. De um lado, há uma preservação dos laços familiares, condensando a unidade familiar até mesmo num único espaço físico da barraca (nos pousos e nos acampamentos). De outro, e ao mesmo tempo, há uma maior elasticidade do canal de comunicação entre redes de relações que se diferenciam no cotidiano. 

A romaria reúne pessoas de todas as faixas etárias, inclusive um grande número de jovens, famílias inteiras, dos avós aos netos, parentes e compadres, padres e pagadores de promessa, patrões e peões, gente da cidade e gente da roça. Nesse grande encontro, que possibilita também desencontros ocasionais entre homens e mulheres, a vitalidade da cultura rústica ou caipira é celebrada e renovada. 

A rearticulação de formas de sociabilidade femininas e masculinas possibilita repensar a separação entre homens e mulheres nos momentos de trabalho. Esta divisão só faz sentido na relação com os períodos festivos nos quais se formam grupos nitidamente diferenciados pelo gênero e pela situação social (casados e solteiros). Na verdade, há uma nova organização das redes de sociabilidade que não excluem aquela estabelecida no cotidiano. Em outros termos, as categorias do trabalho e da família, neste ethos camponês, estão intimamente ligadas à categoria da festa. Assim, ao invés de eliminar as posições sociais estabelecidas no dia a dia, tornando-as mais homogêneas, mesmo que haja uma proposta de vida comunitária que, de certa maneira, aproxima todos os romeiros provenientes de Mossâmedes, a romaria reforça determinados papéis atribuídos a cada um dos sexos, a cada faixa etária e aos membros das famílias, e ainda destaca certos códigos, como o da cozinha. 

Esse revigoramento daquilo que é culturalmente tradicional não impede a procura por formas de lazer urbanas, como realizar passeios pelos camelôs durante a festa no santuário e fazer compras. Consumir e transitar entre “vitrines” faz parte da prática sagrada da romaria. Além disso, alguns elementos do catolicismo rústico manifestam-se e perpetuam-se como uma forma de organização social e de religiosidade popular dentro de um contexto mais amplo de uma celebração de massa. Para os romeiros de Mossâmedes, rezar, comer, socializar, namorar, participar de missas, divertir-se, visitar as barracas e comprar são todos elementos fundamentais de uma mesma festa.

Foto: Silvana Nascimento. Romeiros de Mossâmedes de volta para casa, depois da travessia para Trindade, 1998
Dessa maneira, de um lado, a festa mostra-se um espaço privilegiado para a compreensão do universo camponês e para sua atualização, e, de outro, para o estabelecimento de trocas entre valores e práticas distintos, rurais e urbanos. Em outras palavras, ela se apresenta como um lugar de encontro não somente entre seus atores mas também entre visões de mundo e estilos de vida distintos, relativos aos mundos do campo e da cidade. Nesse sentido, a criação do novo, neste universo camponês, não emerge necessariamente de uma relação estática ou passiva com a sociedade abrangente mas de um processo interno e externo de permanência e transformação. 
Texto originalmente publicado na revista Religião e Sociedade, 22/2, Rio de Janeiro, 2002.
Notas

1 “Folia da comunidade”, autoria de Zé Modesto, Mingas e Carlinho/Mossâmedes.
2 A Festa do Divino Pai Eterno comemora uma das imagens da Santíssima Trindade – o Pai, de um lado, o Filho, de outro, e a Virgem Maria no meio, coroada pela pomba branca do Espírito Santo. Essa celebração tem sua origem em um suposto milagre, no qual um casal de camponeses teria encontrado um medalhão de barro gravado com a imagem, enquanto roçava o pasto – história que faz parte de um quadro de narrativas entre os santuários espalhados pelo Brasil, que apresentam relatos sobre aparições milagrosas de imagens de santos justificando o início daquela devoção. 
3 Essa noção de cultura urbana refere-se à definição de José Guilherme Magnani, como “um conjunto de códigos induzidos por e exigidos para o uso de equipamentos, espaços e instituições urbanas e responsáveis pelo desempenho de formas de sociabilidade adequadas” (1998: 58). Essa noção abrange também o conjunto de conhecimentos usados para determinados recursos, bens e serviços oferecidos pela cidade.
4 Maria Isaura P. de Queiroz (1973a) define o catolicismo rústico como formas de religiosidade populares católicas baseadas nas festas coletivas, danças, rezas, romarias que se realizam, tradicionalmente, sem a interferência direta de padres ou representantes oficiais da Igreja. Esse catolicismo está baseado no culto aos santos, realizado especialmente durante as festas de padroeiro.
5 Os bairros rurais são definidos como um “agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo [mutirão] e pelas atividades lúdico-religiosas” (Candido, 1987:62).
6 É importante ressaltar que Maria Isaura P. Queiroz, e também Antonio Candido, estavam preocupados em apreender os traços característicos das sociedades ditas rústicas, principalmente no interior de São Paulo, e registrar suas especificidades já que, para os autores, a tendência era que, pelo avanço das cidades, em um período de importantes transformações no meio rural brasileiro, elas corriam o risco de desaparecer. Seus trabalhos tiveram bastante influência dos chamados estudos de comunidade (Hermann, 1948; Nogueira, 1962; Pierson, 1951;  Wagley, 1957;  Willems e Mussolini, 1952; Willems, 1947), que estavam preocupados em investigar as sociedades rurais tradicionais, até então vistas como “isoladas” da sociedade abrangente e do contato com as grandes cidades.
7 Nas palavras de Antonio Candido, “o termo rústico é empregado aqui não como equivalente de rural ou de rude, tosco, embora os englobe. Rural exprime sobretudo localização, enquanto ele pretende exprimir um tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil, o universo das culturas tradicionais do homem do campo” (1987:21, grifos do autor).
8 A ordem religiosa dos padres redentoristas também está na direção dos santuários de Aparecida, em São Paulo, de Bom Jesus da Lapa, na Bahia e São Francisco das Chagas, em Canindé, no Ceará.
9 A maioria dos dados apresentados aqui foi resultado de pesquisas de campo realizadas em 1997, 1998 e 1999 que foram feitas para a minha dissertação de mestrado, defendida em 2000, A romaria do Divino Pai Eterno – uma festa para a cidade. Em campo, procurei seguir, basicamente, o clássico método da observação participante, convivendo com os moradores e participantes das festas e procurando observar seus modos de vida, comportamentos, crenças, hábitos, práticas, ou, como queria Bronislaw Malinowki, “vivendo mesmo entre os nativos”. 
10 A zona rural de Mossâmedes está dividida em várias sub-regiões denominadas fazendas. Esse é um termo nativo que representa grandes porções de terra, antigamente pertencentes a um único proprietário, que hoje estão distribuídas em pequenas propriedades, cada uma com seu respectivo dono. Para saber mais sobre o desenvolvimento sócio-histórico das fazendas nas regiões sertanejas do Brasil, vale a pena consultar o artigo de José de Souza Martins “A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira” in História da Vida Privada, vol. 4, Companhia das Letras, SP, 1998.
11 O termo família extensa refere-se, aqui, a um conjunto de famílias nucleares, que se formaram pelos filhos que casaram e saíram da casa dos pais para criar uma nova família nuclear em uma outra pequena propriedade. O termo família nuclear aproxima-se da “família elementar” de Radcliffe-Brown – o pai, a mãe e seus filhos solteiros.
12 Autoria de Walter José, compositor goiano, contratado pelos padres redentoristas para compor diversas músicas para a Festa do Divino Pai Eterno. Entre as várias que são lançadas e divulgadas todos os anos, a música Romaria foi aquela que ganhou uma grande repercussão e é conhecida pela maioria dos romeiros, originários do estado de Goiás.
13 São dois homens que conduzem cada carro. O carreiro posiciona-se ao lado dos bois e conduz os animais com uma comprida vara com um chocalho e um espeto na ponta. O candeeiro fica na frente dos bois, também segurando uma vara e guiando a direção do carro. Geralmente, um menino começa na profissão como candeeiro e depois torna-se carreiro, evidenciando uma hierarquia de funções.
14 Alphonse Dupront aprofunda a noção de communitas ideológica de Turner. Para Dupront, a peregrinação forma-se por “um grupo humano dotado de uma irresistível pulsão comum, movido por uma força que o ultrapassa à procura de sua própria sacralização” (1987:406). Ele pensa na formação de uma sociedade peregrina que, para além das fronteiras de sexo, idade, hierarquia, busca uma aproximação com os poderes sobrenaturais do sagrado. O autor enfatiza a idéia de uma experiência, acima de tudo, religiosa que, percorrendo um espaço até o lugar sagrado, permite fazer uma transformação misteriosa e espiritual. “Transmutação do homem. Transmutação do espaço” (idem:375).
15 A noção de estrutura para Victor Turner baseia-se na definição de Robert Merton: “o arranjo padronizado de conjunto de papéis, conjunto de status e seqüências de status reconhecidos conscientemente e regularmente operativos numa dada sociedade e ligado às normas e sanções políticas legais” (1974b: 201, tradução Paula Miraglia). 
16 Mas em situações de emergência os carreiros podem tornar-se mais solidários e, por exemplo, quando há algum acidente com os carro de bois na estrada, muitos ajudam a concertar o carro da vítima e a amparar a sua família. Todavia, se tudo correr como o esperado, há mais um espírito de reciprocidade e de solidariedade do que propriamente a sua concretização porque cada família é que produz a sua própria comida e monta o seu próprio carro de bois. Ou seja, o trabalho não é compartilhado entre todo o grupo de romeiros, somente dentro das famílias, como ocorre no cotidiano.
17 A festa termina sempre em uma segunda-feira.
18 Geralmente, os romeiros que se dirigem para o santuário em carros de bois são originários de municípios localizados no Mato Grosso Goiano, região de pecuária no entorno de Goiânia.
19 Até a década de 70, a principal atividade econômica de Trindade era a agropecuária. E, atualmente, a economia da cidade vive da produção de derivados do leite e da carne e refrigerantes, sendo 80% das indústrias micro e pequenas empresas. Atualmente, apenas 5100 habitantes (7% do total da população do município) vivem na zona rural e 48900 na zona urbana, aproximadamente.
20 As desobrigas eram visitas ocasionais dos padres nas fazendas onde não existiam paróquias para realizar os sacramentos, como batismos e casamentos. Elas também eram realizadas durante a Páscoa, seguindo o preceito católico de que, nesta ocasião, é preciso comungar, além de se confessar pelo menos uma vez ao ano.
21 Entrevista realizada na Casa Paroquial dos padres redentoristas em Goiânia, em março de 1998.
22 Um padre redentorista, Agnaldo Gonzaga, está tentando desenvolver uma “pastoral dos carreiros”. Está procurando atender e solucionar os problemas principalmente de saneamento básico nos pousos em que ficam instalados os romeiros. 
23 Essa estratégia também pode ser observada em outros santuários dirigidos pelos redentoristas, como o de São Francisco das Chagas, em Canindé, no Ceará. Foi criada atualmente uma Missa do Vaqueiro, valorizando um personagem importante na região nordestina.
24 Para a divulgação da festa, os redentoristas também estão incorporando o uso de novas tecnologias e de meios de comunicação de massa. Geralmente a rádio Mil FM, voltada para um público jovem, e a Difusora AM, rede católica de rádio, ambas de Goiânia, fazem a cobertura da festa, instalando-se no santuário neste período. Há também projeções de videoclips em ruas da cidade para a animar a festa e, na internet, pode-se acessar o site do santuário, criado em 1996 (www.persogo.com.br/paieterno). É importante ressaltar que existe uma denominação comum para o santuário, usada pelos padres, políticos e jornalistas: “a capital da fé”, que traduz o seu caráter modernizador, como um pólo religioso e de consumo.
25 A volta para casa é feita de maneira dispersa. A ordem dos carros de bois não é mais seguida à risca e os carreiros fazem o percurso da viagem em menos dias. Muitas mulheres preferem retornar para Mossâmedes de ônibus ou carro, acompanhando seus maridos somente na ida.
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