II- Conclusão: A Trajetória do Texto Etnográfico Afro-Brasileiro – da Ciência à Sagrada Apropriação.

Havíamos nos referido ao fato de que não existe linguagem sem a presença de interlocutor. De modo semelhante nenhum autor científico escreve textos para interlocutores abstratos. De um lado seu texto dialoga com outros que, somados, perfazem o contexto no qual ele próprio foi concebido e visa atuar. Por outro lado, o texto científico, constituído por enunciados derivados da observação da realidade (em nosso caso religiosa) constrói um modelo textual explicativo para as ações e representações dos grupos estudados, os quais tendo acesso a leitura deste modelo poderão utilizá-lo como um interlocutor a mais no processo de construção de sua identidade social e religiosa.

É o que parece acontecer com a bibliografia religiosa afro-brasileira e a comunidade dos terreiros.Os textos produzidos por autores desde Nina Rodrigues até aqueles mais recentes, têm sido procurados e lidos por um número cada vez maior de leitores que necessariamente não frequentam as salas de aula das Universidades. São leitores em geral adeptos da religião e que buscam no texto referências para comparação, implementação ou ressignificação das práticas rituais tomando-o,portanto,como fonte autorizada no estabelecimento dos princípios sagrados da religião.

Nesse sentido, o texto etnográfico cientificamente construído e sacralmente lido, tende a registrar a trajetória de um processo que ele próprio, paradoxalmente, ao escrever (na forma sincrônica do «presente etnográfico») tem ajudado a transformar, seja porque permite ao leitor religioso, que é muitas vezes o próprio informante, refletir sobre suas práticas a partir do ponto de vista proposto pelo texto, ou ainda porque generaliza o que é a visão particular de certos grupos.

Nesse ponto, para entendermos melhor a utilização da etnografia como registro de um modelo litúrgico, é preciso considerar as características próprias do campo religioso afro-brasileiro. Em primeiro lugar, trata-se de grupos religiosos altamente hierarquizados internamente, com posições estabelecidas segundo a idade de iniciação dos seus membros, a qual regula o acesso ao conhecimento ritual que é transmitido oralmente e segundo as regras do segredo. Além disso, o caráter dos intensos contatos entre as várias tradições de origens diversas na África, ao mesmo tempo que promoveu um culto marcado por múltiplas referências, criou também rivalidades entre os terreiros pelo monopólio daquelas tradições tidas como mais genuínas ou puras e, portanto, com maior poder de influência sobre as demais. Por outro lado, as descrições etnográficas que subsidiam as análises são textualizações de universos empíricos da vida dos grupos religiosos estudados, que podem valer-se dos livros como meio de legitimação e valorização de sua visão de mundo sobre os demais.

As etnografias realizadas nos terreiros mais «afamados» contribuem, assim, para a generalização e valorização da tradição religiosa neles encontrada, ao mesmo tempo em que autovalorizam-se por registrar parcelas significativas dessa liturgia que conforme mencionamos passam a ser buscadas como fonte do sagrado. Além do que, o livro, de acesso facilitado a qualquer um, atenua num certo grau as dificuldades decorrentes da regra do segredo na transmissão oral do conhecimento religioso. As etnografias ao reportarem a universos não conhecidos pessoalmente pelo leitor, como a África, podem também fornecer elementos para uma ressignificação de parcelas do patrimônio de conhecimento tradicional, o qual, aliás, parece nunca ter existido de forma pura ou homogênea no Brasil. As etnografias vão constituindo assim o «corpus inscriptionum» da religião.

Retomando a segunda parte deste trabalho podemos dizer que a apropriação sacralizada do discurso etnográfico apresenta-se como possibilidade garantida pelo modo como as etnografias nesta área vem sendo construídas, no sentido de persuadirem seus leitores sobre a adequação da interpretação proposta de uma realidade textualizada. Assim um ritual observado pelo pesquisador como uma «lavagem de contas», e descrito no texto monologicamente, pode tornar-se um registro litúrgico seguido ou contestado pelos leitores mas de qualquer forma lido sempre como uma descrição isenta e autônoma, enfim, um modelo de referência «abstrato».

Igualmente o discurso científico resvalando para afirmações «desde dentro» asseguram a confiabilidade das informações perante os leitores religiosos, embora muitas dificuldades apareçam na avaliação «desde fora» das afirmações produzidas nessas circunstâncias. Como afirma Jean Ziégler:

«Alguns dos nossos colegas – como E. Carneiro, Deoscoredes dos Santos, Milton Santos, Vivaldo da Costa Lima, Pierre Verger – são iniciados do candomblé. Seu estado e sua fé lhes conferem meios de percepção de que não dispõe o sociólogo ordinário. Seu saber, entretanto, deriva da fé. Para eles, a transubstancialidade dos Orixás constitui uma evidência intuitiva. Em outras palavras: ela traduz uma certeza subjetiva não demonstrável. Em outras palavras ainda: o argumento de Costa Lima, de Carneiro e Deoscoredes dos Santos situa-se além do estreito limite que separa a investigação racional da afirmação apodítica de uma fé experimentada». (ZIÉGLER, 1972:74).

Ao lado da etnografia religiosa afro-brasileira de cunho científico, vale lembrar, ainda, a existência de um outro tipo de literatura religiosa de divulgação crescente, principalmente nos grandes centros urbanos, cujos autores são em sua maioria autoridades religiosas (pais e mães-de-santo) e que escrevem para um público não necessariamente acadêmico, mas sem dúvida já acostumado com este tipo de veiculação da informação religiosa.

O interessante a notar neste tipo de literatura é o fato de que seus autores passam de informantes citados na etnografia científica à categoria de autores editados angariando também através dos meios escritos o prestígio e a autoridade de falar legitimamente.

Os textos dos autores religiosos apresentam, aliás, grande semelhança com a etnografia científica: no caso dos terreiros estes serão descritos a partir do esquema do panteão cultuado, serão mencionadas as histórias dos fundadores,os rituais de iniciação, calendário das festas anuais, hierarquia dos cargos religiosos, algumas rezas e cânticos, e em alguns casos não faltará inclusive o desenho da planta do terreiro com a designação dos diversos cômodos, semelhantes aquelas vistas nos livros de Bastide e E.Carneiro (Ver por exemplo FERREIRA,1987; OLIVEIRA,1989; EGYDIO,1980).

Assim, para o grupo religioso, ter sua história registrada num livro representa sinal de valorização positiva de suas práticas e, para o pai-de-santo, publicar ou divulgar textos (muitas vezes em congressos e encontros científicos) pode significar sinal de legitimidade também no nível do saber escrito, além de uma inserção importante do religioso no grupo daqueles que, com seus parágrafos, influem consideravelmente para a invenção e/ou consolidação das tradições.

Por outro lado, muitos textos dessa literatura religiosa não visam propriamente uma interlocução com os trabalhos acadêmicos, seja na sua forma: não são exatamente etnografias de terreiros, seja nos seus objetivos: trata-se de textos que procuram fornecer uma série de informações religiosas básicas para orientar os leitores em práticas mágicas do tipo:como jogar búzios, fazer ebós (despachos) etc. Vale citar, nesse caso, os livros de Byron de Freitas, José Ribeiro e Fernandes Portugal entre outros. Os textos destes autores são uma espécie de amálgama de informações das mais variadas fontes, inclusive das etnografias científicas de onde são reproduzidos trechos inteiros sem qualquer referência bibliográfica. As explicações para o fato podem ser variadas, como o desconhecimento das regras que presidem a construção do texto científico-acadêmico ou, ainda, a suposição de que os conhecimentos veiculados pelas etnografias dos pesquisadores são de domínio público e não atributo de uma autoria única ou singularmente citável.

Concluindo, podemos dizer que a crescente publicação de livros e artigos escritos por aqueles que tradicionalmente têm ocupado, na literatura científica, lugares somente nas páginas de agradecimento ou nas eventuais citações diretas ou indiretas, representa uma transformação significativa, ainda em curso (e talvez por isso ainda não avaliada seriamente pelos etnógrafos dos cultos afro-brasileiros), das posições tradicionais que pesquisadores e informantes têm ocupado na clássica tríade: autor-informante-leitor. Uma tranformação para a qual um modelo discursivo de prática etnográfica não pode mais fechar os olhos.


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