É esta ordenação que, de alguma forma, norteia os acontecimentos da festa, fazendo, entre outras coisas, com que os filhos observem, através das músicas, os momentos apropriados ao cumprimento da etiqueta religiosa como, por exemplo, dançar de certa maneira ou pedir a bênção à mãe-criadeira quando se toca para o orixá dela. O indivíduo participa deste mesmo modo também do repertório «histórico/musical» do grupo, que consiste nas cantigas do orixá do pai ou mãe-de-santo, dos ebomis da casa como ogãs e equedes, da mãe-criadeira, irmãos de barco, enfim aquelas que, ao determinarem a ordem das reverências (quem pede e quem dá a bênção) durante a festa, estabelecem publicamente a hierarquia do terreiro e localizam o indivíduo numa determinada posição. Existem, inclusive, cantigas próprias dos graus hierárquicos. A chegada dos ebomis durante uma festa, por exemplo, obriga a uma ligeira interrupção da música para que os «couros» (atabaques) «dobrem» em homenagem ao recém-chegado. Estando a música intimamente relacionada à condição hierárquica, até mesmo as pausas entre uma cantiga e outra revelam isto: a roda dos iaôs e abiãs deve abaixar-se (ficar de cócoras) enquanto a roda dos ebomis permanece em pé. Ainda o paó (palmas ritmadas), com o qual se louvam os orixás e se reverenciam os ebomis indica, musicalmente, a alta posição de quem o recebe. E mais, se considerarmos os terreiros de ritos diferentes, poderemos ver que suas identidades são construídas também através da música que se toca nas festas. Um terreiro é ketu porque, entre outras coisas, toca os ritmos de Ketu, canta em «ioruba», toca seus atabaques com aguidavis (varetas). Outro terreiro é angola porque toca os ritmos de Angola, canta em língua «banto» e toca seus atabaques com as mãos. Como a música constitui elemento fundamental também nos rituais privados, é comum que durante determinadas cantigas em que são rememorados momentos da iniciação (ou outros, marcantes da vida do filho-de-santo) essa identidade seja chamada a se expressar de modo intenso, como pede o espírito da festa. É então que o indivíduo entra em transe de seu orixá. A vivência desse momento de intensidade é dinamizada pelo ritmo dos atabaques, que fornece a «atmosfera» adequada ao caráter mais ou menos vibrante de cada orixá (AMARAL & GONÇALVES DA SILVA, 1992a). Os orixás expressam, através dos ritmos particulares, suas características, criando um momento musical em que elas se tornam inteligíveis e plenas de sentido religioso. A sincronia entre dança, cores e ritmo é tão perfeita, que é possível entender o orixá como este conjunto de cor, ritmo, e movimento.
Para a assistência não iniciada, entretanto, conforme pude verificar, muito pouco do que está acontecendo é inteligível, pois poucas pessoas além do povo-de-santo dominam o complexo código religioso ou mesmo a «etiqueta» do candomblé. Muita gente está ali apenas para assistir ao «espetáculo», sem se perguntar por significados particulares. Sabem que naquele lugar estão dançando deuses, que pessoas estão incorporando «entidades divinas». Muitos dizem que vão para ver os orixás dançarem. Parecem sentirem-se satisfeitos por participarem, de algum modo, dos eventos considerados sagrados. Mas a assistência é extremamente valorizada e o povo-de-santo adora exibir seus convidados ilustres aos amigos. Edison Carneiro (1948) diz que uma das maiores aspirações dos candomblés baianos de sua época era a de terem um caminho asfaltado, por onde os carros pudessem trafegar, levando uma assistência «seleta» às festas.
Para alguns,  o candomblé é também a única beleza possível, numa vida de pobreza: 

«Quando eu era criança, minha família era muito pobre. Nós não tínhamos nem o que comer em casa. Então nos fins-de-semana a gente ia pro candomblé. Lá tinha música, tinha dança, roupas bonitas, brilhantes. Lá tinha comida! O candomblé era a única coisa bonita na minha vida. A única beleza. Então eu fiquei» (Roberto de Oxum).

Os chefes de terreiro também percebem este elemento lúdico, de lazer mesmo, da festa de candomblé:

 

«Candomblé é boate de pobre» (Sandra de Xangô).

No candomblé, de fato, há muita diversão nas festas. Além das danças dos orixás, verdadeiro «espetáculo» a que se assiste, há também as rodas-de-samba depois do ajeun (refeição comunitária, feita ao final da festa), quando se comem as iguarias «do santo» enquanto se conversa, flerta, contam-se piadas, dançam-se sambas, namora-se e consegue-se favores dos assistentes. O povo-de-santo tem um senso de humor delicioso e até mesmo suas piadas são, freqüentemente, impregnadas dessa vida «no santo». É muito divertido ouvir suas conversas durante o ajeun, nas festas. Brinca-se de «dar ekê» (fingir que virou no santo ou qualquer outra entidade). Alguém comenta, como fez uma mãe-de-santo certo dia: «Eu não tenho pombagira. Minha pomba é fixa». Ou então, enquanto alguns comentam o brilho e a beleza de certos orixás, um iaô sobe num banco e faz um «pas-de-gat», dizendo: «Minha Iansã é de balet» (trocadilho com Iansã de Balé, deusa dos ventos, que dança espantando os eguns – mortos – e uma improvável Iansã bailarina, que dance nas pontas de sapatilhas…). Muitos comentários jocosos também são tecidos, como por exemplo «Fulano está fazendo um novo ritual, o orodupau» (orô significa «cerimônia ritual») e que, se perguntado, explicarão que é um tipo de «descarrego sexual». Casos sobre as «marmotagens» (falcatruas, engodos) ou erros de alguns chefes de terreiro, como «pintar o iaô com guache», na falta dos pigmentos sagrados, são bastante contados. É ainda em tais momentos de descontração que o povo-de-santo articula, com os convidados ou com gente conhecida como clientes, visitas, pequenas relações de favores como a consulta com o dentista simpatizante, uma doação para a próxima feitura, a doação de alguma coisa para o terreiro, um emprego etc., e que começa (essa articulação), geralmente, pelo convite: «vem fazer uma fofoquinha comigo?».

Para os iniciados a festa também é uma espécie de «jogo» que consiste em reconhecer peças, códigos, decifrar signos (que orixá é aquele que virou, qual sua qualidade, o que as contas penduradas no pescoço «dizem»), uma espécie de texto já muito conhecido que se acompanha praticamente «dizendo» as falas dos personagens junto com os atores. Por exemplo, quem vai virar em que cantiga, o que o orixá vai fazer quando se toca um certo ritmo, quais orixás virão em determinadas festas, em determinadas casas, quem será «suspenso» etc. E uma festa de candomblé só tem «fim» quando outra começar a ser gestada. Até lá, servirá de assunto cotidianamente nos terreiros e entre as pessoas que dela participaram. Será avaliada quanto ao rigor ritual, quanto à fartura da comida, quanto à assistência e tudo o mais.

 

«São os fuxicos `pós-festa’! Porque sempre sai, os fuxicos. Porque sem fuxico não existe candomblé. E é justamente na cozinha da casa-de-santo que sai tudo. Todos os fuxicos, todas as conversas, o que fulano disse, falou e viu…» (Armando de Ogum).

A festa também assume, muitas vezes, o caráter de «lazer», de espetáculo, a que se vai nos fins-de-semana, e do qual é possível fazer parte, seja apenas assistindo, dançando na assistência, seja aproximando-se, aos poucos, da religião. Por ser o momento síntese de tudo que o povo-de-santo pode apresentar publicamente em termos de imagem da religião, para a assistência a festa é não só um verdadeiro espetáculo, de estética ímpar, mas também uma «vitrine» da alegria, do ludismo, da sensualidade e beleza vividos pelos adeptos desta religião. De seu estilo de vida.

 

Além dos muros do Terreiro

A vivência nesse mundo religioso, cheio de minúcias rituais, constantemente referido à mitologia dos orixás, (geradora de relações e comportamentos também singulares) e pleno de uma estética ímpar, soma-se à vivência na cidade, criando um «gosto» peculiar do povo-de-santo. Este gosto é capaz de distingui-lo como grupo (BOURDIEU, 1983) e de oferecer matrizes para a construção de uma identidade entre os membros dos terreiros através não só dos códigos reconhecíveis por eles, mas também do contraste que apresentam em relação a outros grupos religiosos.

Nesse universo de relações, o povo-de-santo estabelece, fora do terreiro, laços com outros grupos que compartilham, de alguma forma, seu ethos, muitas vezes exatamente pelo fato de abrigarem, em seu interior, muitos adeptos do candomblé e da umbanda. Essa relação dialética implica uma espécie de «espelhamento» do universo de um grupo no outro. É o caso das escolas de samba (ou mais radicalmente dos afoxés) ou ainda da capoeira, de modo menos enfático. A música dos tambores, a alegria, o dispêndio, o ludismo e a sensualidade são elementos constitutivos também do grupo dos sambistas e dos afoxés, assim como as intrigas, o falatório, as mudanças de escola. Os mesmos elementos festivos que encontramos no candomblé. Muitas escolas de samba e afoxés, inclusive, tiveram sua origem nos candomblés, através de pessoas que se reuniam na «roda-de-samba» após a festa religiosa, como aponta Roberto Moura (1983) referindo-se ao Rio de Janeiro da primeira metade do século. Essas organizações deram origem às escolas de samba, famosas em São Paulo e no Rio de Janeiro, como a Vai-Vai, a Rosas de Ouro, Mangueira, Império Serrano, Portela entre outras. Mesmo quando não foram fundadas por gente do santo, a tendência a aglutinar esse grupo foi se revelando. Há também pessoas que foram para o candomblé através do caminho da escola de samba, levado por algum sambista e vice-versa.

No final do desfile da Vai-Vai de 1991, por exemplo, surgiu o carro de Oxalá, todo branco e cheio de espelhos. O desfile se encerrou com Oxalá, da mesma maneira que cantar para Oxalá encerra a festa de candomblé, «fecha o xirê». Se nem todos os sambas-enredos são sobre o candomblé, sempre existem alusões ao universo do culto, revelando a marca da presença do povo-de-santo nas escolas de samba. Além disso, pelo menos alguns ebós são feitos pelas escolas antes de entrar na avenida.

O mesmo acontece com os afoxés, estes ainda mais próximos do candomblé que as escolas de samba. O afoxé foi, historicamente, a primeira manifestação da religiosidade do candomblé nas ruas. Nina Rodrigues, no começo do século, já relatava notícias de protestos contra os afoxés no carnaval, época em que o candomblé e o samba eram proibidos (RODRIGUES, 1988:157/8). Contudo, apesar dos protestos, a participação do grupo negro num carnaval de ranchos e entrudos não poderia acontecer sem a marca da religiosidade e da alegria do candomblé. É assim que surgem os «Pândegos da África», os «Filhos da África» e a «Chegada Africana», entre outros. Hoje, são famosos (e disputados inclusive pelas elites) os afoxés «Filhos de Gandhi», «Ilê Ayê». «Badauê» e «Olodum», entre outros. Em São Paulo, desde sua fundação, em 1981, é o afoxé «Filhos da Coroa de Dadá» que abre o desfile das escolas de samba fazendo, inclusive, o padê, em plena avenida. Apoiados na tradição religiosa afro-brasileira, exibindo danças, ritmos e cantos da liturgia do candomblé e, ao mesmo tempo, inseridos no contexto delirante do carnaval, os afoxés se situam na fronteira de dois mundos, aproximando, por caminhos simultaneamente iniciáticos e seculares, dois universos dialeticamente complementares: o sagrado e o profano.

Os afoxés também são dirigidos por gente «do santo» ou por personalidades envolvidas com o culto. O afoxé paulista «Filhos da Coroa de Dadá» é dirigido por um ogã (Gilberto de Exu) e sua mulher, uma mãe de santo (Wanda de Oxum), que é responsável pelo figurino do afoxé. Hoje, entretanto, diferentemente do passado, os afoxés e escolas de samba não se ligam a nenhum candomblé com exclusividade. Talvez por isso mesmo venham crescendo. Em alguns anos, com o tema homenageando Oxalá saíram, no «Filhos da Coroa de Dadá», ,mais de mil pessoas, todas de branco, vestidas por «mãe Wanda». Os músicos que tocam nos afoxé‚s são, muitos deles, os que tocam nos candomblés (alabês) e a massa de seus «foliões», em sua quase totalidade é constituída por pessoas que, de uma forma ou de outra, mantêm vínculos, em graus variáveis, com esta religião.

Apenas depois de despachar Exu, para que tudo corra sem problemas é que o afoxé começa a cantar e, vestindo seu figurino de estilo africano, inicia sua apresentação pública. A dança, no seu traçado básico, é a mesma dos terreiros. As cantigas vão se desenrolando e os «foliões» realizam uma coreografia ritual de acordo com ela, mas geralmente estilizada, simplificada ou adaptada. E quando as cantigas não são as do candomblé, propriamente ditas (há inclusive quem «vire no santo» (entre em transe), algumas vezes, durante a exibição dos afoxés, tanto no próprio grupo como na assistência), elas remetem, quase que invariavelmente, à religião, aos orixás, seus signos e elementos.

Apesar de a vivência no candomblé gerar um gosto que se manifesta em várias esferas, estas, entretanto não chegam a se confundir com a religiosa. Que o gosto do candomblé extrapole os muros do terreiro e impregne outras esferas da vida cotidiana dos adeptos, como vemos, não há dúvidas. Mas o candomblé, enquanto ritual religioso deve manter sua identidade, que se expressa principalmente no que se chama de o «segredo», o «fundamento», que em outras palavras significa aquilo que não se partilha a não ser com os do terreiro. Aquilo que realmente marca a identidade da religião.

O gosto construído pela convivência no candomblé, contudo, reflete-se não só na opção que se faz quanto aos grupos com os quais se relacionar, como no caso da participação do povo-de-santo nas escolas de samba, afoxés e capoeira (que mantêm em maior ou menor grau os elementos simbólicos por eles valorizados) mas também se expressa no consumo que ele faz dos bens materiais e simbólicos disponíveis para tanto. E é nesse consumo que se expressa aquilo que Bourdieu (1983) chamou de «estilo de vida» distintivo.

Nas diferentes dimensões da vida cotidiana fora do terreiro, como no lazer, nas atividades culturais, sociais e outras, o povo-de-santo expressa seu gosto distintivo. Existe, inclusive, uma espécie de «circuito», em São Paulo, freqüentado pelos «do santo». As apresentações de filmes relativos à cultura religiosa afro-brasileira sempre contam com a presença desse «povo». Vários são os filmes consumidos pelos «do santo»; entre eles: «Amuleto de Ogum», «Barco de Iansã», «Egungum – ancestralidade africana», «Iaô, ou A iniciação num terreiro gege-nagô», «Por que Oxalá usa ekodidé», «Ori», «A Deusa Negra» e outros.

Exposições de arte africana, de fotos e outras relativas ao universo do culto também fazem parte desse circuito. Os grupos de dança afro-brasileira são muito prestigiados em suas apresentações e vários deles são compostos por gente do candomblé. Freqüentam-se também Oficinas de Dança que oferecem, entre outras coisas, cursos de percussão de atabaques e construção dos mesmos, além de capoeira, «conscientização corporal negra» (sic) etc. O povo-de-santo freqüenta, também, cursos de língua ioruba (como o oferecido pela Universidade de São Paulo) e outros institutos de divulgação da cultura religiosa afro-brasileira, como o Centro Cultural Oduduwa. Paralelamente ao circuito dos institutos acontece o consumo de uma literatura especializada que conta com inúmeros títulos, vendidos nas casas de artigos religiosos ou em livrarias, especializadas (como a Eboh e a Zipak) ou não. Essa literatura trata de temas de interesse do povo-de-santo como receitas de ebós, práticas mágicas em geral, histórias dos orixás, manuais de jogo de búzios, receitas de remédios feitos com ervas etc. O povo-de-santo também consome obras de caráter científico como as de Edison Carneiro, Roger Bastide, Juana Elbein e outros. Quase todos os chefes de terreiro possuem pelo menos o exemplar de Orixás, de Pierre Verger, bastante manuseado.

Quando o candomblé é tematizado, seja nos programas de rádio, como o de «Mãe Gui», o de «Mãe Sylvia de Oxalá«, o programa «Nosso Cantinho» de pai Celso de Oxalá, ou ainda em novelas ou minisséries de televisão como «Tenda dos Milagres», «Pacto de Sangue», «O Sorriso do Lagarto», «Anastácia», «Mandala», «Carmem» etc., o povo-de-santo assiste invariavelmente, fazendo a crítica de acordo com sua vivência pessoal. A minissérie «Mãe-de-Santo», exibida pela rede Manchete de televisão, serviu de assunto durante semanas, dentro e fora dos terreiros. Já os programas de rádio onde pais ou mães-de-santo jogam búzios e respondem às questões dos ouvintes, são ouvidos pelo povo-de-santo por curiosidade e pelo reconhecimento, neles, de suas práticas e convicções. Eles servem, também, de assunto para conversas cotidianas, dentro do terreiro ou fora, com gente «do santo». Gente que adora contar e ouvir «casos» – ou «causos» como eles dizem.

Estas conversas também são entabuladas a respeito das notícias veiculadas pelos jornais tablóides publicados e consumidos pelo povo-de-santo. Em jornais como «Umbanda & Candomblé», «Umbanda» e «A voz do Orixá» entre outros, são tratados temas de interesse do grupo como o mundo do candomblé, o carnaval, futebol, capoeira, medicina alternativa, previsões, festas de candomblé, trabalhos nas federações, congressos religiosos, AIDS, além da divulgação de conhecimentos e serviços religiosos. Esses jornais são patrocinados por anunciantes também ligados ao culto dos orixás, como os fabricantes de velas e defumadores, tanoarias, além de escolas de dança, cabeleireiros, butiques de «confecções afro-brasileiras» (sic) e lojas de artigos religiosos. Mais ainda, pequenos comerciantes, e «casas de santo», oferecem seus serviços nesta «imprensa especializada», fazendo amplo uso do código e da linguagem religiosa.

O vocabulário do candomblé também é encontrado no título das colunas dos jornais, tais como a coluna «Correio Nagô» (comentários sobre as festas, aniversários de santo e demais acontecimentos sociais do povo-de-santo) no jornal «Umbanda & Candomblé»; «Olossain» (uma coluna onde são discutidas questões sobre os fundamentos da religião, como folhas, comidas, etc.) e «Olukó» (palavra que em ioruba significa «professor», onde são ensinados rudimentos de ioruba, geralmente usando as cantigas como exemplo), no jornal «A voz do Orixá», indicando claramente o modo pelo qual estes jornais refletem o mundo e os interesses do candomblé. Isto é tão evidente que alguns deles comentam por escrito (da mesma maneira que se comenta nos terreiros) as fofocas, intrigas e disputas entre o povo-de-santo.

Mesmo quando o candomblé não é explicitamente tematizado, mas apenas referido, como é o caso de certas manifestações culturais como músicas e shows de música, o gosto já consolidado e que tem por matriz o ethos e a estética da religião, guiará as escolhas para aquelas que mais próximas se encontrem desse «habitus» do povo-de-santo.

 

«O candomblé é uma coisa que entra no sangue, entra no psiquê das pessoas; precisa daquilo. Vive aquela coisa; e é gostoso, é uma embriaguez psíquica». (Marco Antonio de Ossaim).

Sendo assim, os adeptos do candomblé serão encontrados nos shows e nas «rodas-de-samba», nos espetáculos de cantores ligados à religião como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Margareth Menezes, Martinho da Vila, Gerônimo, Leci Brandão, o afoxé baiano Olodum e o Ilê Ayê, entre outros. Do mesmo modo, a música que o povo-de-santo ouve e os discos que compra também são marcados pelo gosto criado no contato com a religião. Alguns cantores se projetaram mesmo, cantando as coisas do candomblé, como Dorival Caymmi e Clara Nunes. E para a umbanda, Martinho da Vila. As músicas podem ser as do terreiro, como certos «pontos» de umbanda cantados por Martinho da Vila ou cantigas de candomblé, cantadas por Clara Nunes (a musa do candomblé), Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethania. A maioria, no entanto, faz pequenas referências, apenas, aos orixás ou a termos do candomblé e que apenas o povo-de-santo ou quem com ele mantém intimidade, reconhece. São também comuns canções homenageando um determinado orixá ou mãe-de-santo, como as famosas «Oração a Mãe Menininha» (de Dorival Caymmi), «A Bênção, Senhora» (Vinícius de Moraes e Toquinho), o «Canto de Oxalufã» (de Vinícius de Morais em homenagem a seu orixá) e «Logun-Edé» (de Gilberto Gil em homenagem ao «dono» de sua cabeça). Os filhos-de-santo geralmente conhecem as músicas que fazem referência a seu orixá e têm o disco, se têm condições para tanto.

Existe ainda a produção e o consumo de uma discografia ligada propriamente ao culto, que tem na música um elemento estrutural. Estes discos apresentam cantigas de candomblé de várias nações ou «pontos» de caboclos, boiadeiros, pombagiras etc. Geralmente são gravados por ogãs e/ou pais-de-santo, gente que conhece a fundo os interesses do grupo. Apenas em uma única loja encontrei 36 albuns!. Aqui você pode ler algo sobre departamento de antropologia da USP.

É tão explícito o gosto particular do povo-de-santo, e alcança tantas esferas de sua vida social que até mesmo os cartões postais que ele envia e recebe têm como tema o candomblé, a África, a Bahia, a capoeira. Os mais populares são os que apresentam figuras dos orixás (plenos de significado, portanto) ou símbolos do candomblé. Finalmente, como o povo-de-santo está inserido na sociedade mais ampla, a sobreposição desse ethos, desse «gosto,» aos valores próprios da sociedade ocidental, cristã, consumista, faz com que surjam elementos inusitados, como cartões de visita com elementos e termos religiosos e até um cartão de Natal com um «papai Noel» negro, de barba branca desejando «AXÉ!»