Festa de Cowboys.  Associação dos Surdos de São Paulo.
Sábado, dia 26/10/2002.
Av. Pedro Bueno, 660 – Pq. Jabaquara (próximo ao metrô Conceição e aeroporto de Congonhas)
Participação e relato: José Guilherme C. Magnani

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Conforme o recado deixado por Lia na lista de discussão do Projeto Estudos da Comunidade Surda, o evento teria início às 21h00, estendendo-se até às 5:00h. O site da Associação, porém, apresentava outro horário: início do evento às 17h00. Tirando uma média, então, resolvi ir às 20h00 e, mesmo assim, cheguei muito cedo, como logo ficou claro. Havia pouca gente nas imediações; comprei o ingresso (2 reais) numa mesa posta no alto da escada que dá acesso ao  sobrado onde está sediada a Associação; não havia nenhuma placa ou indicação. O único  momento de comunicação que consegui estabelecer foi com um senhor, já no interior da casa, para confirmar “se era ali a festa”. Entendeu minha pergunta (provavelmente  pela leitura labial) e respondeu naquela voz característica de oralizado. Depois disso, passei duas horas sentado numa cadeira, olimpicamente ignorado por todos que lá estavam… O ambiente era meio precário: tipicamente uma sede de associação, meio clube de bairro, meio centro comunitário com mesas de pebolin, de baralho, uma cozinha, banheiro, cadeiras espalhadas e  umas quatro salas.

De cowboys mesmo, havia a representação de uma cabeça de boi pendurada no alto de uma parede, alguns cartazes de traço e tema meio infantilizados alusivos ao evento e algumas pessoas com chapéus de vaqueiro. Sentei-me numa das cadeiras colocadas ao longo das paredes no corredor que dá acesso às demais dependências e pus-me a observar os que já estavam e os que iam chegando. De início, umas vinte pessoas das quais 15 eram  homens. Foram chegando mais e o número de mulheres aumentou. No começo, as pessoas estavam conversando de forma mais individualizada. Quando saí, às 22h00, havia cinco grupos formados: 3 dentro da casa, sendo um só de moças; outro monopolizado por um rapaz acompanhado de sua namorada, muito animado; outro reunido numa das salas; uma na escada de acesso e o último já na calçada, em frente à sede.

Diferentemente desses grupos, o tempo todo no mesmo lugar, alguns senhores, com pinta de serem “da diretoria”, locomoviam-se de um lado para outro, alguns deles atentos ao fogo e aos espetinhos na churrasqueira.  A maioria absoluta era de jovens, entre 18 e 30 anos, metade rapazes metade moças, ao menos na hora em que saí. Mais ou menos 30 pessoas dentro da casa, 10 na escada, uns 20 fora.

A sensação foi, mais uma vez, de estar numa aldeia; só que, desta feita, eu estava não apenas isolado, como nas festas juninas,  mas também imobilizado. Não havia ninguém conhecido, o ambiente era menor, e senti-me acuado: estava realmente num pedaço surdo, e não era capaz de manejar a regra básica: a língua de sinais. Senti-me constrangido até mesmo para levantar e comprar algo para comer ou beber e assim, minimamente, participar da festa. Não ocorreu nem mesmo a situação em que  alguém chega e pergunta o que é que eu estava fazendo ali  – como bem poderia acontecer  quando se descobre alguém de fora do pedaço.

Num ambiente onde todos se conheciam, os surdos cumprimentavam-se e logo se enturmavam; e  eu,  um peixe fora d’água. Deram-me até as costas…. mas  não senti agressividade, hostilidade e sim indiferença; eu é que não agüentei a pressão: a única forma de comunicação era em língua de sinais.  Desta forma, não tinha condições de estabelecer qualquer contato nem mesmo para, se interpelado, dizer o que estava fazendo ali. E, pior: se alguém me fizesse a pergunta, que poderia responder? Que estava escrevendo um livro sobre surdos? Fazendo “pesquisa” – principalmente depois de saber quanta desconfiança essa palavra desperta nos surdos? … Na verdade, eu até que tinha uma historinha pronta, caso fosse interpelado: havia combinado encontrar dois amigos surdos (Alex e Roberto, da universidade) e/ou um intérprete (Ricardo). Mas se o  suposto “interrogatório”  prosseguisse, e fosse perguntado sobre meu interesse particular em estar ali, não teria uma resposta convincente.  Sentia-me fora de lugar, e ignorado: eles estavam na casa deles, no clube deles, entre eles. Esta era uma festa de surdos,  para surdos, mas organizada pelos surdos, diferentemente do caso das festas da Derdic, Santa Teresinha, Adefav, Hellen Keller, etc. Aqui não havia ouvintes! Alguns portavam aparelhos, mas a forma dominante  de comunicação era através da língua de sinais. De vez em quando passava, bem próximo, um barulhento avião – a Associação fica perto do aeroporto de Congonhas –  o qual, evidentemente,  só a mim incomodava.

Algumas das pessoas apresentavam certos traços fisionômicos que estou começando a notar quando em contato com um grupo maior de surdos, mas sem  ainda poder relacionar com alguma causa específica: seria alguma síndrome em particular? A maioria era de jovens de classe média baixa, alguns de classe baixa. O jovem “falador” e sua namorada    estavam bem vestidos, eram muito expressivos, principalmente o rapaz; na sua frente estava posicionado outro casal, ele, atento e participativo, mas a menina era mais retraída. Contei três pessoas com traços nitidamente orientais (uma mulher, dois homens) e depois chegou uma moça, também de origem oriental, no meio de uma bando de moças.

Diferentemente das festas juninas, não havia música, talvez porque não havia ouvintes… nem aquele clima de animação geral. O clima era de encontro de pessoas que se conhecem, todos à vontade, em seu pedaço. Percebi ser necessário ter um mínimo de conhecimento da língua de sinais, ao menos para o básico –  “sou ouvinte, tenho alguns amigos surdos, fulano e beltrano…”; “por favor”; “desculpe”; “onde é o banheiro”; “quanto custa tal coisa” etc.   E é preciso ter sempre uma historinha à mão, para poder freqüentar e circular em ambientes como este, tipicamente de pedaço –  ainda que divulgado numa página da Internet.

Fiquei duas horas de frente para uma parede, vendo de soslaio o movimento de entrada e saída das pessoas e observando-as em suas dinâmicas de encontro e comunicação. Fiquei constrangido para levantar e circular e até mesmo para ler os cartazes e avisos. É verdade que logo na chegada, após sentar-me na fatídica cadeira, caiu um cartaz da parede e dispus-me a recolocá-lo, no que fui ajudado por um dos presentes, devidamente paramentado com um enorme chapéu de vaqueiro. Como faltava um pedaço de fita adesiva, ele foi buscar; pregamos o cartaz e no final foi possível  trocar um olhar…. Também consegui ler um aviso que estava logo em frente: “Não jogue lixo no chão, jogue no lugar certo”.

Depois disso nenhum dos surdos me dirigiu um olhar sequer, mesmo quando passavam: certamente eu estava fora de lugar, era, logo à primeira vista e de longe,  um estranho; eles, ao contrário, estavam em seu ambiente, à vontade, entre iguais. Não havia possibilidade de contato, a não ser por meio de algum tipo de interpelação, diferentemente de outras situações de pesquisa onde ao menos perguntas de valor “fático” seriam possíveis – onde é o banheiro? Quanto custa o sanduíche? O que vai acontecer agora?

A experiência valeu, paradoxalmente, pela absoluta falta de comunicação, pela estranheza mais completa. Se a etnografia sempre permite experimentar a vivência do outro, quem sabe é dessa forma que um surdo se sente quando está no meio de ouvintes que nem ao menos se dão conta de sua particularidade.

Comentando minhas impressões dias depois, com Lia, que chegou a essa mesma festa por volta da meia noite, soube que a  festa durou mesmo até  a madrugada e houve  um incidente em que uma menina foi atropelada por uma moto, fato que mobilizou os surdos da festa. O que mostra, mais uma vez, que o etnógrafo deve ser o primeiro a chegar e o ultimo a sair, para não perder nada… Mas aos pouco vamos construindo um corpus consistente de festas, a partir do qual será possível identificar sua estrutura mais geral e descrever suas diferentes dinâmicas.

Trecho de relato de campo da pesquisa “Os espaços da diferença: etnografia no circuito dos surdos na cidade de São Paulo”.