A Antropologia dos sentidos: uma segunda críticaPodemos, agora, retomar o fio de minha crítica da antropologia dos sentidos, de onde eu a tinha deixado anteriormente. O defeito comum, presente em todos os trabalhos que avaliei nesse campo até agora, reside na naturalização das propriedades do ver, do ouvir e de outras modalidades sensoriais, levando a uma crença errônea, segundo a qual as diferenças entre culturas no que diz respeito aos modos como as pessoas percebem o mundo ao seu redor podem ser atribuídas à relativa preponderância, em cada uma delas, de um ou mais sentidos sobre os outros. Assim, supõe-se que, onde predomina a visão , as pessoas apreendem o mundo de certo modo e, onde predomina a audição, elas o apreenderão de outro. Essa abordagem é exemplificada no trabalho de David Howes, que formula a questão-chave na antropologia dos sentidos da seguinte maneira: “Como é o mundo para uma cultura que considera a realidade em termos menos visuais, mais auditivos ou olfativos, do que aqueles a que nós estamos acostumados?” (Howes 1991a: 6). Por “nós” ele quer dizer os povos de sociedades ocidentais modernas, ancoradas a uma estética hiper-visual que torna o mundo um espetáculo delineado ante um “olho desapegado e observador” (Romanyshyn 1989: 31). Como um antídoto para esse tipo de visão espetacular, epitomada nas técnicas representacionais de perspectiva linear, Howes nos convida a considerar os desenhos dos índios Shipibo-Conibo, tais como aquele reproduzido na Figura 14.2. Diferentemente do que ocorre no desenho em perspectiva, em que tudo é geometricamente fixado em seu lugar apropriado, esses desenhos, diz ele, chegam a pulsar (Howes 1991a: 5). 

Qual será a explicação para esse contraste? Por que deveria o impacto dos desenhos xamânicos dos Shipibo-Conibo ser tão diferente daquele provocado por desenhos dos projetistas da Renascença? Para Howes, a resposta está na qualidade “pluri-sensorial” da estética Shipibo-Conibo, em oposição à estética “quase que exclusivamente visual” do Ocidente. Ele parece pensar que a visão é um sentido inerentemente objetificante, que ela naturalmente posiciona as coisas a certa distância do observador, mas que esses efeitos distanciadores podem ser contrabalançados ao se adicionar doses generosas de experiência não visual à mistura sensorial. Assim, na cura xamânica, os desenhos luminescentes se misturam a canções e a fragrâncias para trazer a cura, enquanto, ao se olhar a arte renascentista, sons e odores são deixados de fora, levando a uma estultificação dos sentidos não visuais e a uma intensificação do “poder natural do olho de investigar as coisas de longe” (Howes 1991a: 5-6). Esse, entretanto, é um argumento dificilmente convincente. Isso porque, funcionar como um instrumento de especulação desapegada não faz mais parte da natureza do olho do que abrir o vidente a experiências de revelação mais íntimas. Além disso, simplesmente não ocorre que pessoas em sociedades ocidentais exerçam seus poderes de visão em um ambiente abrigado contra estímulos acústicos e olfativos. Certamente, a visão de desenhos move os xamãs Shipibo-Conibo a cantar e os odores de plantas selecionadas constituem uma parte importante do ambiente do ritual de cura (Gebhart-Sayer 1985: 171-2). Ainda assim, quem negaria o poder da fragrância e da canção, bem como o de imagens visuais de importância sagrada, na missa católica? A experiência estética do freqüentador de igreja ocidental é certamente tão “pluri-sensorial” quanto a do participante de uma cerimônia Shipibo-Conibo. Acrescentar mais sons e odores não fará qualquer diferença no modo como ele ou ela vê. 

 

Se a centralidade que a tradição ocidental atribui ao olho não se devesse a nada além de uma falta de atenção à audição, bem como ao tato, ao paladar e ao olfato, isso poderia ser facilmente corrigido. No que diz respeito à audição, apenas teríamos que louvar o som – o que não seria, em si mesmo, algo ruim (Ihde 1976: 9). Mas como Ihde aponta, a situação é complicada pelo fato de que a redução à visão no ocidente foi acompanhada por uma segunda redução, a saber, a redução da visão. Não se pode escapar a essa redução, inerente à retórica do visualismo, simplesmente erigindo um antivisualismo em seu lugar (Ihde 1976: 21, ver Feld 1996: 96). Pois sua fonte não reside em qualquer preferência pelo olho sobre quaisquer outros órgãos sensoriais, mas no que Johannes Fabian (1983: 123) denomina um “estilo cognitivo” particular – o qual provavelmente gera um preconceito em nosso entendimento de todos os tipos de experiência perceptual, sejam elas predominantemente visuais ou não. É nesse estilo, mais do que em qualquer coisa que tenha a ver com a proporção dos sentidos, que encontramos a resposta à nossa questão de como o desenho renascentista difere, em seu impacto, do desenho Shipibo-Conibo. Incorporado às técnicas ocidentais de representação, ele nos leva a equalizar visão e visualização – ou seja, com a formação, na mente, de imagens ou representações do mundo. Incorporado às técnicas de análise antropológica, entretanto, esse mesmo estilo cognitivo é o que nos leva a ver o processo pelo qual as pessoas  “dão sentido” a seu mundo como uma construção cultural da realidade. 

 

 

No cerne dessa abordagem está a teoria representacionalista do conhecimento, de acordo com a qual as pessoas partem do material bruto da sensação corporal para construir uma imagem interna de como é o mundo “lá fora”, com base em modelos ou esquemas recebidos por sua educação em uma tradição particular. A teoria depende de uma distinção fundamental entre dimensões físicas e culturais de percepção, segundo a qual as primeiras têm a ver com o registro de sensações pelo corpo e pelo cérebro, enquanto as últimas têm a ver com a construção de representações na mente. E apesar de protestos vigorosos no sentido contrário (Howes 1991b: 169-70), a antropologia dos sentidos permanece totalmente comprometida com essa versão do dualismo mente/corpo cartesiano. Acontece que ela não se preocupa, no fim das contas, com as variedades de experiência sensorial geradas no curso do envolvimento corporal prático das pessoas com o mundo ao seu redor, mas com o modo como essa experiência é ordenada e ganha significado dentro dos conceitos e das categorias de sua cultura. Além disso, a mesma lógica que opõe a representação mental à sensação corporal, tratando esta última como um fato físico, e não cultural, também reifica os sentidos como aspectos de uma natureza humana universal. Em seus movimentos e respostas, tais como olhar, ouvir e tocar, o corpo pode fornecer recursos simbólicos para projetos de cognição cultural, mas não é desses próprios processos corporais que a cultura surge. Em suma, para adotar uma distinção útil de Csordas (1990: 40 nota 2), considera-se que o corpo, com seus vários sentidos, abrange o terreno cognitivo da cultura em vez do existencial. 

 

Essa posição é exemplificada por Constance Classen em seu livro Worlds of Sense (1993). Sua preocupação, aqui, é, muito explicitamente,  com a importância expressiva, e não a prática, da experiência sensorial – ou seja: com os modos como essa experiência pode ser selecionada, metaforicamente, para “representar” conceitos centrais e valores de uma cultura. Esses valores e conceitos se adicionam àquilo que ela denomina o modelo sensorial. Assim, a cultura ocidental, por exemplo, se prendeu à experiência da visão, fazendo com que ela significasse o valor do conhecimento objetivo. Em outra cultura, com um modelo sensorial diferente, valores centrais poderiam ser expressos por meio de metáforas da audição ou do tato. Isso é o que Classen quer dizer com “modelagem” cultural, ou “condicionamento” da percepção. “Modelos sensoriais”, como ela insiste, “são modelos culturais, e valores sensoriais são valores culturais”. Mas o fato de que aqui a visão, ou lá o tato ou a audição, terem sido escolhidos como veículos de elaboração simbólica não quer dizer que as pessoas verão, ouvirão ou tocarão de maneira diferente. Se o modo de engajamento com o ambiente de maior importância prática para as pessoas é olhar, ouvir ou tocar, ou qualquer amálgama delas, é irrelevante. O que importa, no que diz respeito à “exploração intercultural das ordens sensoriais”, é que os significados e entendimentos do mundo adquiridos por meio da atividade perceptual são expressos simbolicamente por meio de metáforas extraídas desse ou de outro domínio de experiência sensorial (1993: 135-7, ver também Classen, 1997). 


Essa mesma objetificação das experiências corporais de olhar, ouvir e tocar, bem como suas conversões em recursos metafóricos para a expressão de valores culturais extra-somáticos, também está evidente em Howes. Howes reconhece, a seu favor, que seres humanos não são simplesmente dotados pela natureza com poderes prontos de percepção, mas que esses poderes são, em vez disso, cultivados, como qualquer habilidade, por meio da prática e do treino em um ambiente. Por esse motivo, eles podem variar de um indivíduo para outro, mesmo no interior de uma única sociedade. O musicista, por exemplo, pode desenvolver um sentido apurado de audição e, o chef, um sentido igualmente sutil de paladar, ainda que ambos possam pertencer – como de fato ocorre no ocidente – a uma sociedade propensa a descrever o conhecimento e o julgamento de cada um deles por meio de metáforas da visão. Poderíamos até mesmo esperar que essas variações de habilidade sensorial se manifestassem neurofisiologicamente no desenvolvimento diferenciado do córtex cerebral, de modo que, se mapeássemos a superfície do corpo humano em uma escala que varia proporcionalmente ao espaço que cada região ocupa no córtex, a figura resultante – conhecida como “homúnculo sensorial” (ver Figura 14.3) – seria bem diferente, digamos, no caso do musicista e no do chef, refletindo seus “perfis sensoriais” contrastantes. Para Howes,(p.284), no entanto, essas variações individuais na habilidade prática e perceptual são simplesmente irrelevantes. Ele quer mostrar como o ‘mapa dos sentidos’ difere, não entre indivíduos, mas entre culturas e sociedades inteiras (Howes 1991b: 168-9).

Figura 14.3 O homúnculo sensorial, uma ilustração de como a superfície do corpo é representada no córtex somatosensório. Áreas maiores do córtex são dedicadas às partes mais sensíveis do corpo, tais como dedos e lábios.

 

 O efeito dessa proposta é sustentar uma noção de culturas como sendo sistemas de representações coletivas, além das condições e contextos da vida prática dentro da qual as pessoas desenvolvem e incorporam suas próprias habilidades de ação e percepção. Howes se posiciona em relação a isso como segue: 

Diferenças entre indivíduos (de idade, sexo, ocupação ou temperamento) só têm sentido contra o pano de fundo da cultura à qual eles pertencem. É o sentido no qual sociedades inteiras podem ser classificadas como tendo um paladar mais apurado do que outras…ou que pensam de maneira mais aural ou visual…que é de interesse primordial para a ‘antropologia dos sentidos.’ (1991b: 168, grifos originais)

Em uma sociedade aural, por exemplo, as pessoas expressariam suas idéias acerca de conhecimento ou entendimento por meio de metáforas do campo da experiência acústica. Nós, por outro lado, em nossa sociedade visual, dizemos ‘Eu vejo onde você quer chegar’, enquanto eles podem dizer ‘Eu ouço onde você quer chegar’ . Mas isso não tem implicações quanto ao desenvolvimento relativo de seus poderes de audição ou visão. Portanto, Howes está, decisivamente, confuso em supor que o que ele considera como um ‘mapa cultural dos sentidos’ seja, meramente, uma versão melhorada do ‘homúnculo sensório’ (1991b: 168-9). Pois, enquanto o nível da análise se desloca do indivíduo para a sociedade, o campo que é ‘mapeado’ não é mais um espaço corpóreo, mas, sim, conceitual. Em vez de traçar um conjunto de conexões metonímicas entre os órgãos sensoriais e as regiões do cérebro, o ‘mapa cultural’ estabelece um sistema de correspondência metafórica entre o campo material da experiência sensória e o campo ideal das representações mentais. Para entender a lógica disso só é preciso substituir o ‘plano do sentido’ pelo ‘plano do som’ na representação de linguagem de Saussure.

Como a antiga antropologia do corpo (ver Jackson 1989:123), a antropologia dos sentidos – como apresentada nos trabalhos de especialistas como Howes e Classen – parece determinada a deixar a experiência vivida e sensória para trás na busca do que ela representa, a saber, as ‘idéias’ e ‘crenças’ incorpóreas de uma cultura. Longe de nos ajudar a entender como o corpo inteiro percebe, e como significado é criado dentro do contexto de suas atividades de ver, ouvir e assim por diante, essa abordagem reduz o corpo a um lócus de sentidos objetificados e enumeráveis, cujo único papel é carregar a bagagem semântica projetada sobre eles por um sujeito coletivo e supersensório – notadamente, a sociedade – e cujo balanço, ou razão, pode ser calculado de acordo com a proporção da bagagem sustentada por cada um. Agora, criticando essa abordagem, não é minha intenção menosprezar a importância de examinar os modos pelos quais metáforas sensórias são mobilizadas no discurso. O fato de que dizemos ‘Eu vejo onde você quer chegar’ é certamente significante. Mas, ao recorrer a essa figura de linguagem, não estou expressando uma coisa, um conceito de entendimento, em termos de outro, uma objetificação específica da sensação corpórea de visão. Pelo contrário, estou convidando você a comparar a experiência de união que surge do engajamento mútuo no diálogo verbal para a experiência, à qual eu e você estamos familiarizados, da união entre perceptor e percebido na atividade de olhar ou ver. Mas e se você não fosse familiarizado com essa experiência? E se você fosse cego?

Para Howes e Classen, se você consegue ver ou não, ou como suas capacidades sensórias são acionadas nas atividades de percepção, não é relevante no que diz respeito à caracterização sensória de uma sociedade inteira. São meramente questões de idiossincrasia individual. Pesquisa de campo entre os ‘aurais’, em uma sociedade que escolheu articular seus valores centrais por meio de metáforas auditivas, não nos dirá nada acerca da experiência dos cegos. Mas, como mostra Hull, meditando sobre a resposta de um cego à expressão ‘Eu vejo onde você quer chegar’, as coisas não são tão simples assim. Ele deve evitar o uso da expressão? Isso, observa Hull, seria absurdo.  Optar por não participar das convenções verbais de sua sociedade seria compensar uma desabilidade com outra. No entanto, ele não pode evitar o fato de que a expressão, que convida a uma comparação entre seu entendimento e uma forma de experiência perceptual que ele não compartilha com seus interlocutores, não tem o mesmo efeito para ele quanto tem para aqueles. Há, diz ele ‘um deslocamento sutil no caráter total de comunicação entre pessoas cegas e videntes’ (Hull 1997; 26).

A lição a ser aprendida aqui é que convenções verbais de uma sociedade não aparecem prontas, nem são simplesmente sobrepostas à experiência de seus membros para que eles ‘façam sentido’ delas. Pelo contrário, elas estão sendo continuamente inventadas e reinventadas no curso dos esforços das pessoas para se fazerem entender. – isto é, ‘fazerem sentido’ de si mesmas para os outros. Eles fazem isso por meio de comparações entre suas próprias práticas e experiências sensórias e aquelas que podem ser atribuídas aos seus próximos. Eu suponho que você esteja familiarizado, como eu, com o som do trovão e a visão do relâmpago. Eu quero que você compreenda o que eu senti quando estava do lado da estrada de ferro e o trem passou. ‘Ele passou como um trovão’, digo, ‘em um segundo’. Mas, recorrendo a essa metáfora, é minha experiência que eu quero transmitir a você, não um protótipo conceitual qualquer de um ‘trem passando’, para o qual as sensações auditivas e visuais do trovão e do relâmpago venham a fornecer veículos apropriados de expressão simbólica. Em vez de abandonar as experiências vividas de indivíduos pela consciência coletiva sensória da sociedade, é, certamente, a esse entrelace criativo de experiência no discurso e às maneiras como as construções discursivas resultantes, por sua vez, afetam as percepções das pessoas do mundo que as cerca, que uma antropologia dos sentidos deveria primeiramente direcionar sua atenção. ‘Fazer sentido’, em suma, não consiste na sujeição da natureza humana às condições sociais (Classen, 1993: 5), mas no envolvimento de pessoas inteiras, umas com as outras e com seu ambiente, no processo contínuo da vida social.

 

Epílogo
Martin Jay termina o seu monumental estudo das atitudes para com a  visão na história recente do pensamento Ocidental, sobretudo na tradição escolástica francófona, com as seguintes palavras:

A viagem começou pelo reconhecimento…quão inevitável.. é a modalidade do visível não, meramente, como experiência de percepção, mas como um tropo cultural. Assim, parecia frutífero seguir o desdobramento de um discurso descuidado sobre a visualidade, em vez de tentar documentar as transformações reais nas práticas sensórias. (Jay 1993a:587) 

Se existe uma conclusão principal a ser extraída de minha crítica à antropologia dos sentidos, é que qualquer tentativa em separar o discurso acerca da visão de sua prática real de olhar, observar e ver é insustentável. O mesmo, de fato, serve para qualquer outra modalidade sensorial. Pois, o que é o discurso, senão uma narrativa entrelaçada de experiência resultante da atividade prática e da percepção? Os significados que ele produz, como mostrei, não são somados no ‘topo’ da experiência vivida e corporal, mas reside nos modos pelos quais as tramas dessas experiências são tecidas juntas. Historiadores da filosofia estão enganando a si mesmos, certamente, ao imaginarem que o que tem sido pensado e escrito em termos dos sentidos pode ser nitidamente separado do que tem sido vivido e sentido através deles. Como diz Rée, ‘o desenvolvimento histórico da filosofia nunca fará muito sentido se ela for tratada como uma luta entre grandes livros, com todos os gostos, fragrâncias, barulhos, temperaturas locais e cores da experiência comum deixados de fora’ (1999:383). 

De fato, a presunção do filósofo que se propõe a escrever uma história da visão sem considerar como as pessoas realmente vêem se assemelha àquela do físico que se propõe a construir uma óptica que não faz referência ao olho. Ambos, basicamente, reproduzem a dicotomia entre mente e natureza dentro da qual todo o conhecimento toma forma de representações da realidade. É por meio de sua assimilação nesse quadro que a visão tornou-se caracterizada, pelos admiradores  como pelos detratores, como tendo a propensão natural de converter o que quer que ela encontre em coisas ´objetivas´, capturadas, friamente, à distância (Levin 1988:98). E tendo desempenhado esse papel, como heroína ou como vilã do drama da modernidade, qualquer tendência voltada a imaginar o mundo como um domínio exterior de objetos a serem apreendidos pelos sentidos e analisados pela mente, é, automaticamente, interpretada como ‘visualismo’ (Fabian 1983:106-7). É como se a visão tivesse sido forçada a usar o manto de um estilo cognitivo particular e todas as virtudes e vícios que vão junto. Naturalmente, os críticos do visualismo se concentraram nos vícios (Jenks 1995). David Levin, por exemplo, insiste em que a visão é ‘a mais reificante dentre todas as nossas modalidades perceptivas’ (1988:65)27, cuja hegemonia na sociedade moderna pode ser ligada ao desejo de poder, à exploração tecnocientífica e à vigilância política. E ainda que ele admita que a visão pode ter o seu lado mais aberto, preocupado ou gentil, isso só se encontra nas margens, no ‘jogo das sombras e dos reflexos’ que nos revelam que ‘nós somos, apesar de tudo, fenômenos da luz’ (pp. 429,431). 

Para fazer a acusação contra o bastão da visão, no entanto, como aponta Stephen Houlgate, pode-se mostrar que ver na prática real, ao invés de como imaginado pelos filósofos, abriga dentro de si uma tendência à reificação (Houlgate 1993:98-9). Pode-se, em outras palavras, romper estas barreiras artificiais que separam a vida do discurso, permitindo que as realidades da experiência irrompam sobre o turfe santificado do debate intelectual. Os antropólogos fazem isso o tempo todo; de fato, a tensão criativa entre especulação teórica e experiência vivida é a força motriz da investigação antropológica. Historiadores da filosofia, por outro lado, são relutantes em misturar os dois, temendo que qualquer movimento nessa direção possa ameaçar sua própria integridade, essencialmente, o projeto literário. É por isso que os filósofos críticos do visualismo nunca sonhariam em apresentar o tipo de questão com a qual o  psicólogo linha-dura Gibson, por exemplo, começa seu estudo da percepção visual: “Como nós vemos o ambiente à nossa volta?” (Gibson 1979:1). Para eles, a resposta já está pressuposta: ver é reduzir o ambiente a objetos que são capturados e apropriados como representações na mente. A ironia é que essa resposta, a qual os críticos do visualismo são inclinados a tomar por certa, tem a sua fonte na própria epistemologia cartesiana que eles procuram destronar. O que eles oferecem, então, não é uma consideração da prática visual, mas uma crítica da modernidade travestida de crítica à hegemonia da visão. 

 

A partir dos argumentos e evidências apresentados nesse capítulo, espero ter mostrado que a questão contra a visão é amplamente contestada. De fato, nunca deveria ter sido trazida, em primeiro lugar. É tão insensato culpar a visão pelas mazelas da modernidade quanto o é culpar o ator pelos crimes cometidos, no palco, pelo personagem cujo papel ele tem o azar de representar. Com Houlgate (1993: 106,111), acredito que a responsabilidade pela redução do mundo a um domínio de objetos manipuláveis não tem a ver com a hegemonia da visão, mas com uma ‘certa concepção estreita do pensamento’. E foi essa concepção, também, que levou à redução da visão – isto é, à sua construção como uma modalidade sensória especializada na apropriação e manipulação de um mundo objetificado. Por meio dessa redução, como mostrei, a visão se tornou oposta à audição. Mas não há nada natural ou pré-ordenado nessa oposição: com a mesma freqüência com que é reafirmada nos livros acadêmicos, é, comumente, camuflada pela nossa própria experiência. Minha alegação é que, pela exploração do terreno comum entre visão e audição, em vez do abandono de um pelo outro por meio de um ‘voltar-se à audição’ (Levin 1993:3-4), poderemos ser guiados não somente a uma melhor apreciação da riqueza e profundidade da experiência visual, mas, também, a um entendimento mais generoso, aberto e participativo do pensamento.