Encolhe-se do que quer que seja. Parece ser caracterizado por uma certa imobilidade na atmosfera. Onde se deveria perceber o movimento do ar e uma certa abertura, de algum modo torna-se consciente da imobilidade, da intensidade ao invés do vazio, uma vaga sensação de solidez. (Hull 1997:23) 

 

Para o ator e músico cego Tom Sullivan, parecia que ele podia sentir, em seu rosto, ondas de ar que foram empurradas pelo corpo durante o movimento e retornado em um ângulo a partir de algum obstáculo (Sullivan e Gill 1975:68). Ele chamava isso de ‘visão facial’. Não é de se surpreender, então, que não funcione direito quando está ventando (Hill 1985:103). 

 

Existe alguma dúvida, então, sobre se a visão facial climática é uma forma de audição ou de toque. De fato, o fenômeno surge numa forma particularmente aguda do problema da disjunção entre essas modalidades sensórias. Hull afirma que ‘a sensação da pressão é sobre a pele do rosto, em vez de sobre ou entre os ouvidos’(1997:24). Em outro lugar, ele descreve a sensação de estar em um prédio vazio como uma que vai além da simples audição: ‘deve existir uma certa sensibilidade no corpo todo para as vibrações e para a pressão do ar, assim como para ecos inaudíveis’ (p.85). Evidentemente, as mesmas vibrações, à medida que excitam a membrana do ouvido, que são percebidas como som, podem também excitar os receptores distribuídos sobre a pele; mas, então, são percebidos como ‘pressão’. Paul Rodaway (1994:50) considera a visão facial como uma forma de ‘toque global’, que significa o contato geral do corpo com o ambiente percorrendo toda a superfície. A implicação de que ouvimos não somente com os ouvidos mas com o corpo todo é, como veremos em seguida, de grande significado para entender a experiência sensória do surdo. No momento, eu gostaria de concluir minha discussão da experiência da cegueira com três pontos.

 

Primeiro: a clara distinção que pessoas com visão tendem a fazer entre toque e audição pode ser, na realidade, uma conseqüência da visão e da delineação precisa das superfícies tangíveis na interface entre os objetos sólidos e o meio, ao redor, que ele fornece. Deve ser por isso que os múltiplos modos de sentir-ouvir do cego, que não é nem o tato, eco ou movimento, mas uma mistura de tudo isso, seja de difícil apreensão pelas pessoas com visão (Hill 1985:104). Em segundo lugar, a suposição lugar-comum de que a visão é inerentemente espacial e a audição é inerentemente temporal precisa ser refinada. Através do princípio de ecolocalização, a audição pode descortinar um mundo de formas estáveis – e de coisas em seus lugares – assim como o pode a visão. E enquanto é verdade que tal revelação depende do movimento do perceptor em relação ao percebido, o mesmo é igualmente verdadeiro para a visão (Rodway 1994:124-5). Em essência, tanto olhar quanto ouvir são aspectos de um movimento que, sendo gerado tanto no espaço quanto no tempo, é ontologicamente anterior a qualquer oposição que possa ser extraída deles. Em terceiro lugar, parece provável que até mesmo pessoas com visão, ainda que desatentas, sejam significativamente guiadas pela ecolocalização, ou ‘visão facial’ (Ihde 1976:67-70).  Elas, simplesmente, não prestam atenção nisso. Como escreve Rée, para todos nós ‘tomar conhecimento de prédios ou paisagens é, em parte, uma questão de obter conhecimento de seus perfis acústicos – escutando os sons que eles produzem e os ecos que eles retornam’ (1999:53). Estar em casa num lugar, especialmente no escuro, significa conhecer como isso soa e ressoa. Assim, escutar é tanto uma atividade ativa de investigação e de auto-orientação no mundo quanto o é olhar. 

 

Sendo surdo

Voltando-nos agora à experiência dos surdos, há dois aspectos do que Wright, habilmente, denomina de “surdidade”  os quais eu gostaria de focar. Primeiramente, gostaria de retornar ao fato de que ouvimos com todo o corpo, a fim de  trazer o alcance da experiência auditiva até pessoas que, como o próprio Wright, não fazem qualquer uso dos ouvidos. Em segundo lugar, refiro-me à língua de sinais dos surdos, a fim de mostrar que o contraste entre audição e visão como modalidades sensoriais da comunicação verbal é bem menos fundamental do que comumente se supõe. Sobre o primeiro ponto, e julgando a partir do relato autobiográfico de Wright, parece que a surdez não é jamais absoluta da forma que a cegueira pode ser (Wright 1990: 9, ver Ihde 1976: 45, Rée 1999: 36-7). Isso porque o que experienciamos como som é causado por vibrações em meios e superfícies circundantes, aos quais os ouvidos não respondem sozinhos. Estando de pé sobre uma superfície ressonante como um assoalho de madeira, podemos “ouvir” passos se aproximando através dos pés. Mas não podemos fazê-lo se a superfície é, digamos, de pedra ou concreto. Na fala, ouvimos o som da nossa própria voz, em parte, através de uma condução interna de vibrações nos ossos da cabeça. Na medida em que essas vibrações passam ao largo do ouvido, elas ainda podem ser sentidas por um falante surdo. Além disso, pessoas surdas podem julgar a qualidade de sua voz colocando um dedo em seu pescoço, na região da laringe, e podem, igualmente, “ouvir” o som de um instrumento musical, rádio ou aparelho de som tocando a caixa de som ou amplificador (Rée 1999: 36). 

 

Nestes exemplos de “audição-tato”, contudo, o que é ouvido não é nada parecido com o som completo, como ele seria experimentado por um ouvinte cujos ouvidos funcionassem normalmente. Muito depende das propriedades ressonantes particulares das superfícies com as quais entramos em contato, principalmente por meio das mãos e dos pés. Como regra, entretanto, o som “nos alcança como uma confusão turva de ruído (Wright 1990: 9)». Timbre e altura são indeterminados, mas há uma esmagadora concentração em freqüências do lado mais baixo do espectro. Os sons que podem ser “ouvidos” nessas freqüências tendem a ser abruptos e percussivos, como explosões ou o ruído de maquinaria pesada. Já que eles não podem ser postos no campo acústico finamente diferenciado entre sons de fundo e sons de primeiro plano como, se revela pelos ouvidos, é difícil forçá-los a funcionar em fontes e locais específicos. Eles tendem, antes, a aparecer e desaparecer, subitamente e sem aviso. Ademais, o ruído externo de baixa-freqüência captado através da vibração corporal é facilmente confundido com aquele gerado internamente no curso de processos metabólicos e respiratórios normais – do tipo que o médico pode “ouvir” por meio de um estetoscópio (Rodaway 1994: 100-1, Rée 1999: 53-4). 

 

Além dessa “audição-tato”, entretanto, Wright relata outro tipo de experiência de som, registrado, não através do toque, mas, através da visão. Apenas onde nada se move, como num dia perfeitamente calmo, o mundo parece estar envolvido em total silêncio. Diante do mais leve movimento, o silêncio é estilhaçado. Jáme referi a uma tal experiência como um exemplo de “visão do som”, na observação de Wright de que “pássaros, ao voar, cantam com as asas” (1990: 3: 11-12). Contudo, ele admite que esse “ruído visionário”, diferente das sensações palpáveis da audição-tato, é na verdade uma coisa da imaginação. Ele não existe, realmente. Devo dizer que não estou convencido pela distinção entre som real e som imaginário contida aqui. Pois, até os sons que pessoas com visão normal rotineiramente descrevem como reais não são menos fenômenos da experiência vivida, e é perfeitamente claro, a partir da descrição feita por Wright da audição-visão, que os sons que ele vê são, para ele, tão vívidos quanto são, para outras pessoas, os sons que elas ouvem. O próprio Wright se pergunta se o seu olho para som deve algo às memórias infantis, já que a surdez o atingiu aos sete anos de idade. Ele se lembra de que, naquele momento, ele não percebia ser surdo; e apenas gradualmente ficou a par da condição devido à sua inabilidade para captar os sons de movimentos inobserváveis, como o tique-taque de um relógio (1990: 22, ver Rée 1999: 37). No caso de movimentos visíveis, o fato de que seus ouvidos haviam deixado de funcionar não fazia uma diferença perceptível, ao menos no começo, ao que ele ouvia. Isto certamente fornece uma prova contundente para a visão de que mesmo para os ouvintes, a audição é guiada, criticamente, pelas “antenas” da visão. E se encaixa na observação de Hull de que quando as pessoas ficam cegas sua audição não melhora; pelo contrário, piora. 
Já quando as pessoas estão falando entre si, os movimentos de sua fala podem ser visíveis na face, e, especialmente, nos lábios. Essa é a base para a prática da leitura labial. É normal, também, que a fala seja acompanhada e amplificada em sua força expressiva por gestos visíveis das mãos. Nas comunidades de surdos, sistemas gestuais vêm sendo elaborados a ponto de constituírem línguas em si mesmas, totalmente equivalentes às faladas. Estas são convencionalmente conhecidas como línguas de sinais (Armstrong, Stokoe e Wilcox 1995). Nem a fala e nem os sinais têm a intimidade do contato visual, já que há, em ambos os casos, uma diferenciação funcional na totalidade do sistema corporal de percepção e ação, entre os órgãos dos sentidos e os do movimento. Na fala, a divisão está entre os ouvidos e a voz; nos sinais ela está entre os olhos e as mãos. Mas, como fala e sinais são formalmente equivalentes, a esse respeito, as possibilidades de estabelecer um envolvimento mútuo e direto entre o eu e o outro por meio dos sinais devem ser tão grandes quanto o são por meio da fala. Este é o ponto no qual devemos relembrar o que McLuhan, Ong e seus seguidores têm a dizer sobre as propriedades do pensamento e da expressão na modalidade oral-aural. Pois, deixando de lado a tendência dos surdos sinalizadores à familiaridade com a palavra escrita, não parece haver uma boa razão para duvidar que essas propriedades deveriam ser atribuídas também à modalidade manual-visual. 

 

Lembremo-nos de que, para Ong, pessoas numa cultura predominantemente oral ouvem palavras não como coisas, como se estivessem olhando para elas, mas como som. Para os surdos sinalizadores, de forma similar, os gestos são movimentos a serem assistidos, não objetos a serem olhados (Armstrong, Stokoe e Wilcox 1995: 83-4). Não há como pará-los para uma inspeção. Como sons da fala, gestos sinalizados existem apenas de passagem. O fato de que são vistos e não ouvidos não os faz menos fugazes, não mais como coisas, do que sons falados. Além disso, os movimentos das mãos nos gestos respondem a movimentos visualmente perceptíveis no entorno do sinalizador, assim como, no contexto oral, os sons da fala repercutem as propriedades do ambiente acústico, produzindo  o “iconismo gestual” que é um traço tão pronunciado da língua de sinais dos surdos – a contrapartida precisa do iconismo fonológico na fala de culturas supostamente “auditivas” como os Umeda (Gell 1995: 247-8). Tendo em conta todos esses paralelos, podemos apenas chegar à mesma conclusão que Jonathan Rée, em seu estudo da história da educação para surdos. “A idéia de que há um golfo metafísico dividindo a comunicação entre gestos visíveis da comunicação e palavras audíveis”, escreve ele, “é uma fantasia sem fundamento, uma alucinação, mais que uma teoria” (Rée 1999: 323-4). 
McLuhan e Ong, claro, estavam preocupados, acima de tudo, em contrastar as propriedades da fala e da escrita. Seu erro, como deve ter ficado claro agora, foi imaginar que estas propriedades contrastantes podiam ser deduzidas das diferenças entre a audição e a visão. O traço crítico da escrita, pelo qual ela é distinguida tanto dos sinais como da fala, é que ela é inscrita sobre uma superfície durável. Será, então, sua inscrição, e não apenas sua visibilidade, que transpõe as palavras em coisas? Não exatamente, pois a percepção de inscrições como objetos depende de um conjunto de condições ainda mais limitado. O traço de um gesto, como a pincelada de um calígrafo, pode ser apreendido como um movimento, exatamente da mesma maneira que o próprio gesto. Nisso, o olho do leitor segue o rastro assim como seguiria a trajetória da mão que o fez. A palavra escrita é percebida como uma palavra apenas quando ela é lida não como o traço de um gesto visível, mas como a representação de um gesto vocal. De modo que, espreitando por trás do argumento de que a escrita nos leva a ver as palavras como “objetos quiescentes” (Ong 1982: 91) reside um pressuposto, ainda disseminado até entre lingüistas, de que as únicas línguas propriamente ditas são as faladas, e que, portanto, a escrita existe com o único propósito de representar os sons da fala. Este pressuposto fonocêntrico trai um preconceito profundamente enraizado e obstinadamente persistente segundo o qual a sinalização manual é uma forma imperfeita de comunicação que dificilmente se qualifica como “língua”. E é precisamente essa desqualificação do gesto perante a língua propriamente dita que deu origem à idéia de que a língua só pode ser tornada visível por meio da representação da fala na escrita.

 

A intercambiabilidade da percepção visual e auditiva

Conversando com Georges Charbonnier, o pintor André Marchand descreve sua percepção do mundo visível como uma na qual ele está submerso, e que se abre para ele, como tal, do interior: 

 

Por exemplo, em uma floresta, senti muitas vezes que não era eu quem a estava observando. Em alguns dias, senti que eram as árvores que estavam olhando para mim, que falavam comigo. De minha parte, eu estava lá… ouvindo. (Charbonnier, 1959:143) 

 

 

Essa experiência, com certeza, é familiar para qualquer um que já vagou pela floresta. Há dois aspectos disso para os quais quero chamar a atenção. Primeiramente, isso fornece um suporte convincente à idéia da reciprocidade da visão, à qual já iludi em conexão com os ordálios da cegueira. Incapaz de ver, a pessoa cega se torna convencida de sua própria invisibilidade, como se sua própria existência fosse posta em questão. Por outro lado, “estar lá”, ter uma presença no mundo e, assim, estar apto a ver, é existir à vista dos outros. Desse modo, sentimos que as árvores a nossa volta têm olhos e estão olhando para nós porque se não estivessem, onde estaríamos? Em segundo lugar, perceba o quão prontamente Marchand escorrega da linguagem da visão para a da audição. As árvores olham, mas elas podem muito bem estar falando; nós observamos, mas podemos muito bem estar ouvindo. É para esta intercambialidade da percepção visual e auditiva que  desejo me voltar agora. 

 

Comecei com um exemplo musicológico, que nos leva de volta à questão de Zuckerkandl sobre ser preferível ouvir a música com os olhos abertos ou fechados. Em sua autobiografia, o compositor Igor Stravinsky argumenta, apaixonadamente, pelo primeiro. “Sempre tive horror,” escreve ele, “a ouvir música com meus olhos fechados, sem nada para eles fazerem. A visão dos gestos e movimentos de várias partes do corpo produzindo a música é fundamentalmente necessária se ela é para ser apreendida em sua totalidade” (Stravinsky 1936: 72). Observar os movimentos do percussionista, do violinista ou do trombonista dá forma e direção à nossa audição, que de outra forma estaria vazia e sem alvo. Não ouvimos tão bem com os olhos fechados, de acordo com Stravinsky (e como Hull também descobriu, com o avanço de sua cegueira), já que perdemos este direcionamento visual da percepção auditiva. Apartado do movimento corporal de sua produção, o som musical parece abstrato e incorpóreo. Tem sido constantemente pontuado que a audição é um sentido passivo, que tudo o que se pode fazer é sucumbir às emanações imperativas do mundo exterior. Jonas, por exemplo, sustenta que “na audição, aquele que percebe está à mercê da ação do ambiente” (1966: 139), enquanto para Adorno, a audição parece “dormente e inerte” (1981: 100). É precisamente este tipo de audição passiva, como “mera suscetibilidade apática” (Rée 1999: 53), que Stravinsky atribui àqueles que ouvem música com os olhos fechados. Tais pessoas, como ele, causticamente, pontua, longe de ouvirem a música em si, preferem “abandonar-se aos devaneios induzidos pela música de ninar de seus sons” (1936:73). Elas permitem que o som jorre sobre elas – ou “flutue através da experiência”, como Ihde (1976: 78) colocou – inconscientes do fato de que este está sendo produzido por músicos com instrumentos. Ao abrirmos os olhos, no entanto, deixamos de ser meros consumidores do som e nos juntamos, silenciosamente, ao processo de sua produção. A audição é despertada de sua letargia e se torna ativa e envolvida. 

 

Isso nos leva à uma conclusão de suprema importância. Se a audição é um modo de engajamento participativo com o ambiente, não é porque se opõe, nesse aspecto, à visão, mas porque “ouvimos” tanto com os olhos quanto com os ouvidos. Em outras palavras, é precisamente a incorporação da visão ao processo de percepção auditiva que transforma ouvir passivamente em escutar ativamente. Mas o oposto também se aplica: é a incorporação da audição ao processo de percepção visual que converte o assistir passivamente em olhar ou observar ativamente. Foi por isso que Marchand sentiu que ao olhar para as árvores – que estavam também olhando para ele –estava do mesmo modo, silenciosamente, ouvindo-as. Ele estava “olhando” com os ouvidos tanto quanto com os olhos. A experiência de Marchand seria inteiramente familiar ao povo Koyukon, que vive da caça, da armadilha e da pesca nas florestas da Alasca. Eles “vivem em um mundo que observa”; de acordo com seu etnógrafo, Richard Nelson, “em uma floresta de olhos” (1983: 14). Mas é, também, uma floresta de ouvidos. As árvores principais da floresta, nomeadamente picea e bétula, assim como tantos de seus animais nativos, são investidos de espíritos que, como pessoas, podem ouvir tanto quanto ver. É por isso que, para os Koyukon, é sempre importante ser cuidadoso com o que se diz, para não causar nenhuma ofensa. Eles vêem porque você vê; eles ouvem porque você ouve. Mas, indiferentemente, seja do lado das pessoas ou dos espíritos, é o elemento de atenção auditiva que converte visão em vigilância. 
Também entre os esquimós Yup’ik havia uma consciência similar de que as pessoas estão constantemente sob o escrutínio vigilante dos espíritos. O próprio cosmos (ella) – senciente, conhecedor e responsivo – foi concebido como um imenso olho, mas um que podia ouvir tanto quanto ver. E podia também cheirar. De modo que, para o seu próprio bem e o de todos, enlutados e mulheres menstruadas eram sujeitos a restrições, para que “permanecessem inodoros, inaudíveis, imóveis, e invisíveis para o olho de ella (Fienup-Riordan 1994: 248). O conhecimento de que o olho de ella estava observando e de que as atividades humanas eram visíveis ao mundo espiritual, controlava cada aspecto da vida cotidiana dos Yup’ik. Testemunhar um espírito diretamente era vê-lo como um rosto que, como o próprio cosmos, era circular e centrado nos olhos. De todo modo, o rosto não era uma máscara cobrindo a persona do espírito, através da qual sua voz pudesse ser ouvida. Ao contrário, o rosto seria revelado por meio de um processo de desmascarar semelhante à retirada de um capuz – o desmembrar de uma aparência exterior como dada para a visão ordinária, cotidiana, para descobrir o ser interior. Encontrar outra pessoa face a face não era, portanto, ser colocado contra ela, como em uma imagem vis-à-vis, mas ser envolvido na intimidade intensa e intersubjetiva do contato olho no olho. Desmascarados, os olhos do espírito literalmente captariam o relance do observador em sua vista. Mas isto implica que, como um aspecto do ser, o rosto está tanto no “interior” quanto a voz. Se a voz é o som do ser, então o rosto é sua imagem24. E, por isso, também, ouvir outra pessoa, tanto humanos como espíritos, é equivalente a olhar para eles. Como um homem Yup´ik explicou: “Alguém que fala não irá repreendê-lo por olhar demais para ele. Mas olhar o tempo todo enquanto alguém ensina, é o modo como alguém deve continuar ouvindo” (Joe Beaver, em Fienup-Riordan 1994: 316), A isso, Fienup-Riordan acrescenta que “observar o rosto de uma pessoa… era particularmente revelador”. 

 

Algum tipo de distinção é, não obstante, delineada aqui, entre dois tipos – ou níveis – de visão: de um lado, a visão ordinária de coisas pré-existentes, que resulta de mover-se por um ambiente e detectar padrões na luz ambiente refletidos em suas superfícies externas; de outro lado, a vista reveladora experimentada naqueles momentos nos quais o mundo se abre para o perceptor, como se ele ou ela fossem pegos no momento de seu nascimento. Esta distinção é, com efeito, equivalente àquela que introduzi anteriormente, comparando as teorias de percepção visual de Gibson e Merleau-Ponty entre a visão como um modo de participação e um modo de ser. Em nenhum dos casos a visão pode ser radicalmente separada da audição. No primeiro, como mostrei, é a co-opção de ouvir pela visão que transforma a visão meramente contemplativa em olhar e observar ativamente. No segundo, nossos questionamentos sobre as convergências entre o que Merleau-Ponty e Zuckerkandl têm a dizer, respectivamente, sobre a apreensão pictórica da luz e a apreensão musical do som, revelou que elas eram, em princípio, tudo menos indistinguíveis. Para ilustrar o contraste entre esses dois níveis de visão e as diferentes relações com a audição envolvendo cada um, volto-me, brevemente, para outro exemplo. 

 

Contei, anteriormente, como conheço o cuco pelo seu som e que apenas por meio de ser visto é que ele se torna percebido como uma coisa que produz um som. Entre os Ojibwa, caçadores e apresadores indígenas do norte canadense, é dito que existe um pássaro cujo som, conforme se espalha pelo do céu, é um estrondo de trovão. Poucos o viram e àqueles que o fizeram são atribuídos poderes excepcionais de visão reveladora (Hallowell 1960: 32;). Qual é a diferença, então, entre ver um cuco e ver um pássaro-trovão? Observadores de pássaros certamente seriam os primeiros a reconhecer a importância da audição para uma visão ativa e exploratória. Ao buscar escutar o canto dos pássaros e outros sons – o bater das asas, o farfalhar das folhas – a vista do observador se situa na fonte de onde vêm esses sons. Desse modo, os órgãos da audição constituem um sistema auditivo de guia que serve para orientar a visão em direção a seu alvo. O enigma do chamado, cu-co, emanando de algum lugar nas árvores, é resolvido tão logo avistamos o pássaro que o está produzindo. Ao nomear o pássaro pelo som de seu chamado, nós o reconhecemos como apenas outro indivíduo de uma espécie, uma coisa viva, cuja presença e atividade, além disso, não são afetadas pelo olhar atento e neutralizador do observador. 

 

O pássaro-trovão, por contraste, não é uma coisa de nenhum tipo. Como o som do trovão, ele é um fenômeno da experiência. Ainda que seja pelo trovão que o pássaro faz sua presença ser ouvida, o som não é produzido pelo pássaro-trovão como o cuco produz seu chamado. Pois o trovão é o pássaro em sua encarnação sônica. Assim sendo, ver não é resolver o mistério cósmico do som, como se alguém pudesse recuar um passo de seu envolvimento no mundo e dizer “Ah, então é de lá que ele está vindo!”. Este alguém é levado ainda mais adiante nele. O pássaro se apresenta à visão como uma experiência de luz exatamente da mesma maneira que se apresenta à audição como uma experiência de som. Se o som, aqui, é intrínseco à visão, não é porque ele guia a visão até seu objeto mas porque ouvir é ver. Como uma forma específica da experiência da luz, o pássaro-trovão não se coloca para o perceptor como um objeto de visão, mas invade sua consciência, de onde é o gerador da própria capacidade dele ou dela de ver. Muito disso pode ser dito da experiência da luz solar ou lunar, e, de fato, o sol e a lua são apreendidos pelos Ojibwa, juntamente com o pássaro-trovão; como seres do mesmo tipo. Eles são, em suma, não tanto coisas visíveis como manifestações da luz. 

 

 Enquanto nas sociedades Ocidentais tal visão reveladora é território do pintor, em muitas sociedades não-ocidentais está intimamente associada às atividades do xamã. A metamorfose do som em luz e vice versa – isto é, ouvir com os olhos e ver com os ouvidos – são características peculiares da prática xamânica. Um exemplo fascinante deste fenômeno foi documentado entre os índios Shipibo-Conibo, do Peru oriental, por Angelika Gebhart-Sayer (1985). Em um ritual de cura, o xamã, apropriadamente em transe, tornou-se consciente de uma aura de luz radiante que parecia flutuar em sua direção, cobrindo as superfícies nas quais descia em desenhos reticulares, geométricos. Onde eles tocam seus lábios, estes desenhos luminescentes são convertidos em canções melodiosas. O xamã canta em conjunto com esses espíritos presentes e os outros aldeões (que ouvem apenas a voz do xamã) se unem a ele, seguindo seu exemplo. Conforme as vozes combinadas emanam pelo ar, elas se tornam uma vez mais (ainda que apenas na visão do xamã) desenhos que penetram o corpo do paciente e se estabelecem lá, tornando-se mais nítidos conforme a cura prossegue (Gebhart-Sayer 1895: 162-4). As canções do xamã, como Gebhart-Sayer coloca, “podem ser ouvidas de uma forma visual… e os desenhos geométricos podem ser vistos acusticamente” (p. 170). 
Os  próprios desenhos são extraordinariamente intrincados e já gravados em tecidos de algodão atados como “livros” – levando à especulação de que os índios desta região poderiam possuir uma forma de escrita hierográfica. Nenhum destes livros sobreviveu até os dias de hoje, mas os aldeões entre os quais Gebhart-Sayer desenvolveu seu trabalho de campo lembraram que um velho de uma vila próxima, o genro de um xamã, manteve um livro de exercícios escolares cujas páginas estavam preenchidas com minuciosos padrões em vermelho e preto. Uma mulher lembrou que, quando criança, conseguira apanhar o livro e copiar quatro dos desenhos antes de ser pega e castigada por sua avó. Ela afirmou nunca tê-los esquecido, e foi capaz de redesenhá-los de memória (Gebhart-Sayer 1985: 155). Um de seus desenhos está reproduzido na Figura 14.2. Não é difícil ver porque observadores europeus foram inclinados a comparar tais grafismos à escrita. Parece, diante disso, que o xamã Shipibo-Conibo apreende o som da canção da mesma maneiraque pessoas do Oeste letrado supostamente apreendem os sons da fala – isto é, como se olhassem para eles. Os desenhos geométricos que residem na visão do xamã possuem uma semelhança inusitada com o “som-imagem” saussureano. E se a palavra escrita é a transcrição de uma imagem da mente para o papel, o mesmo não poderia ser dito dos desenhos gráficos dos “livros” dos xamãs? 

 

Figura 14.2 Um dos desenhos do livro sagrado de um xamã Shipibo-Conibo, desenhado de memória por uma mulher do vilarejo de Caimito em 1981. Reproduzido de A. Gebhart-Sayer, The Geometric Designs of the Shipibo-Conibo in Ritual Context, Journal of Latin American Lore, 11: 2, 1985, p.158.

 

É verdade que, em um sentido, o índio xamã “vê” canções, e que, em outro, pessoas criadas na tradição ocidental de literatura impressa “vêem” palavras faladas. Mas os sentidos de ver exemplificados nesses dois casos não poderiam ser mais diferentes. Esta diferença corresponde, de maneira bastante precisa, ao modo pelo qual pensadores ocidentais convencionaram distinguir visão de audição. Para retomar a formulação de Zuckerkandl, esta é a diferença da experiência de um mundo “lá fora”, da de um mundo vindo “lá de fora em minha direção e por dentro de mim” (Zuckerkandl 1956: 368). Para o ocidental, ver palavras é apreendê-las como coisas, objetos exteriores a serem compreendidos pelo modo como as imagens ou representações são formadas por elas na mente. A visão do xamã, por contraste, não é um ver coisas, mas uma experiência de luz, que é sentida como fluindo em direção a ele e dentro dele. Conforme faz isso, transforma-se em som. É na interface na qual a luz que flui para dentro é convertida no som que flui para fora que os desenhos são gerados em sua percepção. No ritual de cura, esta conversão tem lugar nos lábios do xamã. Deste modo, quando um desenho é inscrito sobre uma superfície, como o tecido de algodão ou papel, a superfície é transformada em uma interface do mesmo tipo que os lábios. Isso instantaneamente faz sentido às afirmações nativas de que a superfície, com seus desenhos, fala diretamente a pessoa que a “lê” (Gebhart-Sayer 1985: 154). 

 

Se isso é, de fato, ler, então é mais semelhante à leitura labial do que a da palavra escrita. Nos traços gráficos da página do livro do xamã a voz é transposta visivelmente, exatamente como é, para o leitor de lábios surdo, nos movimentos do lábios e do rosto de quem fala. Do mesmo modo que o olho do observador segue os traços, seus lábios se movem para produzir os sons correspondentes. Esta interpretação é corroborada por Peter Gow, em um estudo sobre a leitura e a escrita de outro povo nativo da Amazônia peruana, os Piro. Este estudo é focado na história de um homem, Sangama, que tem a reputação de ser “o primeiro Piro capaz de ler”. De acordo com a história, contada na década de 1940 pelo seu primo mais novo, Zumaeta, Sangama costumava apanhar livros impressos e jornais e lê-los, “seus olhos seguindo as letras e sua boca se movendo” (Gow 1990: 91). O que ele via, no entanto, não eram palavras no papel. Ele via o próprio papel como os lábios pintados de vermelho de uma mulher, falando para ele. E ele estava convencido que era isso que seus chefes europeus viam quando liam seus jornais: “Quando o branco, nosso patrão, vê um papel, ele o segura o dia inteiro, e ela [o papel] fala com ele… o branco faz isso todo dia (em Gow 1990: 92-3). Se os europeus foram predispostos a tratar os desenhos dos índios como uma espécie de escrita, o que poderia ser mais natural do que o índio, Sangama, tratar os textos impressos dos livros e jornais europeus como uma espécie de desenho? A afirmação de Sangama de ser capaz de ler, como Gow demonstra, estava baseada em sua compreensão da prática xamânica. De acordo com esta compreensão, ele se aproximou dos tipos gráficos na página não como “representações” ou “símbolos” de sons vocais, mas como a própria voz, emitindo brilho como um padrão de luz. É por essas linhas, também, provavelmente, que devemos interpretar a observação de Seeger de que entre os Suyá, outro povo amazônico, desenhos visuais como os padrões de tecelagem são vistos acusticamente. Ao aprender um desenho como esse, eles dizem: “Ele está em meu ouvido” (Seeger 1975: 214).