O olho que ouve e o ouvido que vê

Após essa longa excursão pelas teorias da visão, nossa prioridade imediata deve ser a de voltar ao som e à audição. Citei, anteriormente, uma passagem de um trabalho do musicólogo Zuckerkandl, Sound and Symbol (1956), na qual ele contrasta as propriedades da visão e da audição por meio de uma caracterização um tanto grosseira das atitudes das pessoas mudas e cegas. Considerarei o que tais pessoas têm a dizer sobre suas próprias experiências sensórias na próxima parte. No momento, entretanto, pretendo olhar mais de perto o trabalho do Zuckerkandl, por duas razões. Em primeiro lugar, quero destacar os estreitos paralelos entre a maneira como Zuckerkandl fala da experiência musical do som e a maneira como Merleau-Ponty fala da experiência pictórica da luz. Essas experiências, no fim das contas, são praticamente idênticas. Em segundo lugar, embora Zuckerkandl afirme que a visão e a audição são geralmente opostas, ele admite que isso não é universal e, no final de seu estudo, especula que essa oposição não foi dada desde o inicio, no desenvolvimento do indivíduo ou na evolução da cultura humana. Se ele estiver certo em supor que a visão se separa da audição ao longo de uma evolução rumo à sociedade Ocidental moderna, então é certamente inadmissível atribuir a resultante distinção entre essas modalidades sensoriais à  humanidade. 

 

Na maior parte do tempo Zuckerkandl é bastante categórico em relação à diferença entre as maneiras pela quais o mundo é percebido por meio do olho e do ouvido. O olho reforça a barreira que separa dois domínios: o domínio interior da mente ou da consciência e o domínio exterior do mundo. Ele mantém as coisas à distância. Eles ficam ‘lá fora’, inseridos em seus próprios lugares em um arranjo espacial total que pode ser mapeado em termos de intervalos e fronteiras. O espaço da visão é um do qual você, o espectador, está excluído; um espaço onde as coisas são, mas você não é. Assim, a experiência visual do espaço é, essencialmente, disjuntiva. Os domínios do ‘interior’ e ‘exterior’, como escreve Zuckerkandl, ‘se encontram face a face como dois territórios mutuamente excludentes de cada lado de uma linha divisória intransponível.’ Mas na audição, a distinção entre ‘territórios’ se transforma em uma entre as ‘direções’. Na direção interior, o mundo penetra a consciência; ao contrário, no mundo exterior, a consciência penetra o mundo (1956:368-9). No lugar da barreira que o olho ergue em volta do objeto percebido, o ouvido constrói uma ponte que permite um tráfego sensório de mão dupla. Quando você vê coisas que estão longe, elas parecem estar a uma distância, mas quando você ouve sons distantes eles parecem vir de uma distância (p. 291). O espaço da audição, então, não está colocado sobre você, o ouvinte, mas corre em sua direção e para dentro de você.  Não é um espaço de lugares, mas sim de correntes, onde nada pode ser dividido ou mensurado.  Sua experiência auditória é, essencialmente, participativa, de imersão em uma ‘totalidade indivisível e sem fronteiras’ (p.336). E, deste modo, a qualidade ‘lá fora’, que experienciamos na visão, é substituída pela qualidade ‘lá-de-fora-em-minha-direção-e-para-dentro-de-mim’. Ou, em outras palavras, o passo da percepção visual para a auditiva é ‘como a transição do meio estático para o fluido’ (p.277). 

 

O que considero extraordinário no relato sobre audição de Zuckerkandl é que ele corresponde ponto a ponto, até, quase, os detalhes da retórica, ao que Merleau-Ponty tinha a dizer sobre a visão. Só temos que relembrar a concepção de Merleau-Ponty do espaço visual como ‘envolvente’ e ‘passando pelo’ perceptor, da consciência como ‘saturada’ com luminosidade, do observador como ‘imerso’ no visível, do exterior nos ‘invadindo’ e do nosso ‘encontro com essa invasão’ (1962: 214, 317; 1964ª: 162, 178). Ecoando a noção de Zuckerkandl de correntes interiores e exteriores, Merleau-Ponty fala de uma ‘inspiração e expiração do Ser, ação e paixão tão levemente discerníveis que torna-se impossível distinguir entre o que vê e o que é visto’ (1964ª: 167). Revelador, também, é o fato de que, para transmitir o sentido do que ele quer dizer por visão, Merleau-Ponty recorre ocasionalmente à metáfora auditiva – precisamente o inverso do uso da metáfora visual – para descrever a experiência auditiva com a qual já nos deparamos na noção Saussuriana de som-imagem. ‘Qualidade, luz, cor, profundidade’, escreve ele, ‘estão lá somente porque despertam um eco em nosso corpo e porque nosso corpo os acolhe’ (1964ª: 164). Se para Saussure parece, às vezes, que os sons da fala eram vistos -e não ouvidos-, para Merleau-Ponty pode parecer que ouvimos com os olhos. Em outras palavras, embora nossa experiência possa ser a de ver na luz, é, apesar disso, uma experiência que tem todas as qualidades da audição. 

Esse pensamento ocorreu também a Zuckerkandl. Ele surge no contexto de uma discussão dos prós e contras tanto de tocar como de ouvir música com os olhos fechados. De acordo com um ponto de vista, o olho está tão intimamente envolvido em uma apreensão particular do espaço ocupado por ‘objetos corpóreos em seus lugares’ que inibe ativamente nosso envolvimento no espaço fluido de forças que a música nos oferece. Ele nos segura e nos torna relutantes em nos entregar com todo nosso ser ao som. Mas Zuckerkandl não está completamente convencido. É realmente necessário, pergunta, ficarmos temporariamente cegos para ouvirmos adequadamente? A visão só é capaz de ver coisas em seus lugares? ‘Pode o olho, talvez, ouvir também?’ (1956: 341). Zuckerkandl acredita que pode; ainda que excepcionalmente. E que existem, sim, ‘atividades do olho que vão além da função de ver um objeto em um lugar – e que, além disso, vão numa direção particular-, de modo que parece natural compara-las ao modo de percepção do ouvido’ (p.344, grifos meus). Para exemplificar esse ponto, Zuckerkandl se imagina, como fez Merleau-Ponty antes dele, olhando para o céu azul. O que ele vê não é algo ‘lá fora’ mas ‘um espaço sem fronteiras, no qual eu me perco’. Mas ao passo que Merleau-Ponty utiliza esse exemplo para ilustrar a união do perceptor e do mundo que ele acredita ser fundamental para apreender o espaço da visão, Zuckerkandl o utiliza para esclarecer sua concepção de espaço auditivo! Para ele, a experiência que se tem ao olhar para o céu é precisamente o que significa ouvir. 

 

Parece, então, que o tipo de abertura para o mundo que Merleau-Ponty chama de visão é mais ou menos igual àquele que Zuckerkandl chama de audição. No livro de Zuckerkandl, tudo o que Merleau-Ponty tem a dizer sobre visão pictórica estaria sob a rubrica de ‘ouvir com os olhos’. De fato, ele acredita que é sobretudo no campo da pintura que encontramos uma percepção de forças e relações dinâmicas estritamente semelhantes à audição de tons na música. O espaço da pintura, juntamente com as coisas representadas nela, ‘não é simplesmente diferenciado do observador; antes, ele se abre para o observador, leva-o para dentro de si mesmo, passa por dentro dele’ (Zuckerkandl 1956: 345). Mas, revertendo essa perspectiva, tudo o que Zuckerkandl diz a respeito da audição pode ser visto do ângulo de Merleau-Ponty como “ver com os ouvidos”. Essa expectativa é confirmada em A Fenomenologia da Percepção, obra em que Merleau-Ponty dedica atenção especial à ‘visão dos sons’. Portanto, ‘quando digo que vejo um som, quero dizer que ecôo a vibração do som com todo meu ser sensório’ (1962: 234). Essa equivalência entre visão e audição, no entanto, levanta uma questão intrigante. Quando ouvimos com os olhos ou, de modo inverso, quando vemos com os ouvidos, essa experiência é uma de luz ou de som? 

Antes de respondermos a essa pergunta, precisamos reconhecer que o som não é mais um impulso físico, que chega de fora, do que algo puramente mental,  um fenômeno ‘de dentro da cabeça’. De fato, tudo o que dissemos sobre luz se aplica, também, ao som. Como a luz, o som não existe nem no lado interno nem no lado externo de uma interface entre mente e mundo. Pelo contrário, ele é produzido como a qualidade experimental de um engajamento contínuo entre o perceptor e seu ambiente. O som é o lado avesso da audição assim como a luz é o lado avesso da visão; nós ouvimos em um como vemos em outro. Agora: seria insensato sugerir que olhar para o céu produz qualquer outra coisa senão a experiência da luz. Contudo, como ver é equivalente, nesse caso, a ouvir, seria igualmente insensato negar que ver pode, também, e ao mesmo tempo, ser experienciado como som. Poetas, como Zuckerkandl destacou, nunca tiveram dificuldade com a idéia (1956:341). Um exemplo particularmente eloqüente da visão do som, ou de ouvir com o olho, é apresentada pelo poeta David Wright, que fala sobre como ele ‘ouve’ objetos, ou melhor movimentos, que a maioria de nós toma como silenciosos:

Suponho que o vôo da maioria dos pássaros, pelo menos à distância, deve ser silencioso…No entanto aparenta ser audível, cada espécie criando sua própria ‘música para os olhos’, da melancolia  indiferente das  gaivotas ao rápido stacato dos pássaros. (Wright 1990:12)

 

A pungência particular desse exemplo deriva do fato de que o próprio Wright é surdo. Ele não pode ouvir com os ouvidos, portanto, como o fazem outras pessoas. Mas, precisamente por essa razão, sua experiência visual tem uma dimensão auditiva que falta à maioria das pessoas com audição normal  colocadas em situações semelhantes. 

Muita importância tem sido dada ao fenômeno da sinestesia, a aparente capacidade de certos perceptores de registrar uma experiência em uma modalidade sensorial com base em sensações vindas de outra. Um sinestésico pode, por exemplo, afirmar ver certas formas ou cores ao ouvir uma melodia musical, ou ouvir sons particulares ao ver um movimento silencioso. O relato de Wright sobre ouvir o vôo de pássaros distantes pode muito bem ser tomado como um caso disso. Porém, imbuída na própria definição de sinestesia está uma dupla distinção entre sensação e percepção de um lado, e entre modalidades sensoriais discretas de outro. Seguindo tanto Gibson quanto Merleau-Ponty, sugiro que olhos e ouvidos não devem ser entendidos como teclados separados para o registro de sensações, mas, sim, como órgãos do corpo como um todo em cujo movimento, dentro do ambiente, consiste a atividade de percepção. ‘Meu corpo’, como coloca Merleau-Ponty, ‘não é uma coleção de órgãos adjacentes, mas um sistema sinérgico, cujas funções todas são exercidas e conectadas na ação geral de ser no mundo’ (1962: 234). Visão e audição, até onde podem ser de fato distinguidas, são meramente facetas dessa ação, e a qualidade da experiência, seja ela de luz ou som, é intrínseca ao movimento corporal vinculado, em vez de possuído ‘depois do fato’ pela mente. Então, se eu ouço o vôo dos pássaros é porque, seguindo seu caminho pelo céu, o movimento do meu próprio corpo – dos meus olhos, da minha mão, de fato de toda a minha postura – ressoa com o deles. Desse ponto de vista, o ‘problema’ da sinestesia simplesmente desaparece. 

 

Também para Zuckerkandl, quando Dante fala do Inferno como ‘um lugar mudo de toda luz’ ou quando Goethe declara que a luz ‘trombeteia’, ambos estão se referindo não à sinestesia, mas à ‘real percepção através dos olhos, que, não obstante, tem as características da audição’ (1956: 341). Sob todas as condições normais, afirma Zuckerkandl, esse tipo de percepção é obscurecida pela visão comum dos objetos e re-surge somente durante raros momentos de êxtase, quando a fronteira entre o perceptor e o mundo parece dissolver-se. Mas para o bebê recém nascido, abrindo os olhos diante do mundo pela primeira vez, ou para uma pessoa antes cega, cuja visão foi recuperada graças a um procedimento médico, a experiência deve ser deslumbrante. Como escreveu William James, com reconhecimento a Condillac: ‘A primeira vez que vemos luz…nós a somos ao invés de a vermos’ (James 1892: 14). Luz – ou ‘Eu posso ver’, que é uma outra maneira de dizer a mesma coisa – é, nessa situação, essencialmente, uma experiência de ser. Ihde nota que as primeiras impressões de um cego, ao recuperar a visão, são muitas vezes parecidas com aquelas da audição: o paciente ‘está impressionado com aquilo que podemos chamar de ‘fluxo e fluência’ (Ihde 1976: 63). Para o bebê, é claro, ainda não há coisas a serem vistas, pois a separação entre o ser e o mundo e o conseqüente processo de objetificação mal começaram. Mas muito antes de abrir os olhos o bebê já pode ouvir bem. Para todo recém-nascido, diz Schafer (1985: 96), a audição precede a visão. Deste modo, enquanto Berger (1972: 7) pode estar correto ao dizer que na vida de uma criança, ‘a visão vem antes das palavras’, ainda ocorreque a criança ouve os sons da fala, e acima de tudo a voz de sua mãe, bem antes de poder ver. É, portanto, inteiramente compreensível que a primeira percepção visual seja experienciada como ouvir com os olhos. 

 

 

A conclusão a ser tirada disso, como reconhece Zuckerkandl, é que o funcionamento ‘normal’ do olho – ‘a percepção de objetos em lugares’ – não é dada de início, mas é resultado de um desenvolvimento no campo da visão, ‘cujos primeiros estágios não são tão rigidamente diferenciados da audição quando os estágios posteriores’ (1956: 342). A partir dessa conclusão, Zuckerkandl se lança em um argumento que, ele próprio admite, é totalmente especulativo, mas que não deixa de ter um profundo significado para a antropologia dos sentidos. Se a visão se separa gradualmente da audição na historia de vida do individuo, pode isso ocorrer, também, seguindo as mesmas linhas e passando pelos mesmos estágios, na evolução da cultura? Pode a congruência entre visão e audição, tão rapidamente ultrapassada no desenvolvimento individual, ter, uma vez, caracterizado uma época inteira? E poderia ela persistir, talvez, nas ‘habilidades mágicas dos…primitivos…baseadas em uma visão do espaço como uma força, uma comunicação dinâmica entre dentro e fora?’ Se sim, então ‘teremos na música o eco miraculoso de um mundo que um dia esteve aberto à visão’ – um mundo que, de outro modo, só sobrevive nas artes visuais, especialmente na pintura (1956: 343-5). Embora os argumentos ontogênicos e evolucionistas que fazem parte desse raciocínio e, especialmente, a identificação da percepção ‘primitiva’ com a das crianças, não sejam mais aceitos hoje em dia, os comentários de Zuckerkandl sugerem algo muito importante, a saber: que a distinção entre visão e audição, como comumente compreendida na tradição Ocidental, não é natural ou universal à humanidade, mas, sim, o resultado de um desenvolvimento histórico específico. Na comparação entre sociedades Ocidentais e não-Ocidentais, portanto, a distinção não pode fazer parte da explicação das diferenças na experiência sensória, mas é parte do que tem que ser explicado. 

 

A experiência sensória das pessoas cegas e surdas

 

É chegada a hora de retomar os dois experimentos de pensamento com os quais comecei. Para relembrar, no primeiro você escuta, vendado, o som de um trem avançando em sua direção; e no segundo você o olha passando com os seus ouvidos tapados. No primeiro caso, você supõe, o som entra e sacode você; no outro, é como se o trem se movesse em um mundo separado do qual você habita. Esses experimentos, de fato, nos dizem muito sobre o modo como imaginamos o funcionamento da visão e da audição. Mas revelam-se um guia ineficiente para o que realmente está acontecendo, ao menos nos casos das pessoas as quais os olhos e ouvidos estão funcionando normalmente. Ver com os ouvidos tapados é qualitativamente diferente de ver sem ouvidos tapados, pela simples razão de que uma boa parte da informação regulando os movimentos dos órgãos da visão, incluindo os olhos, a cabeça e o corpo inteiro, é captada pela audição. Sem essa informação a visão é desorientada, e é precisamente por isso que, no segundo experimento, a sua atenção visual aparenta estar tão separada do movimento do trem. Inversamente, ouvir vendado é qualitativamente diferente de ouvir com os olhos abertos, pois, apesar dos ouvidos (diferentemente dos olhos) serem imóveis em relação à cabeça, a audição é afetada pelos movimentos da cabeça e do corpo que são guiados, parcialmente,  pela informação captada nas operações da visão. De novo, é a falta de tal informação, e a resultante perda do controle auditivo, a responsável pela violência com que o som do trem não-visto aparenta tomar de assalto os seus sentidos. 

 

Se nossos experimentos nos enganam quando se trata da visão e da audição normais, poderiam eles, todavia, nos dizer algo sobre a experiência das pessoas que são surdas ou cegas? A pessoa surda é, necessariamente, um observador impassível das coisas do mundo do qual ele ou ela sente-se um tanto alienado? E são os cegos, inversamente, participantes de um mundo no qual tudo é movimento e vir a ser, ainda que, inevitavelmente, à mercê dessas correntes? Tais pontos de vista são comumente encontrados e já citei como exemplo desse efeito a passagem de Zuckerkandl. Eles não são, no entanto, sustentados pelos testemunhos das próprias pessoas cegas e surdas. Essas pessoas não sentem que a sua experiência do mundo é menos completa, ou possui menos integridade, que de qualquer outra. A esse respeito é bem diferente da experiência de pessoas que normalmente enxergam e ouvem, mas, de repente, encontram-se temporariamente cegas ou surdas. É este o caso, então, daquelas para as quais a cegueira e a surdez são uma condição permanente compensando a ausência de um sentido pelo aumento do poder daqueles restantes? Mais uma vez, a resposta parece ser ‘não’. De fato, David Wright, falando como alguém que é totalmente surdo, argumenta que a teoria da compensação é um engano irritante (Wright 1990:12,111). É um erro por duas razões: primeiro, a percepção aural, na realidade, deteriora quando não é orientada pela visão e vice-versa; e em segundo lugar, a teoria confunde uma sensibilidade elevada a movimentos específicos – aural ou gestual – que são cruciais para a interpretação do que acontece com um aumento geral do sentido como um todo. Pessoas cegas e surdas, como quaisquer outras, sentem o mundo com todo seu corpo  e, como todas as outras também, elas têm que lidar com os recursos a elas disponíveis. Mas os seus recursos são mais limitados e para isso não há compensação alguma. A vida da pessoa cega, como sustenta John Hull, ‘é experenciada como intacta, apesar do campo de ação ter-se tornado menor de diversos modos’. Não é como um bolo redondo do qual uma fatia substancial tenha sido cortada. É mais como um bolo menor (Hull 1997:xii). 

 

Tomando por certo que a experiência da pessoa cega ou surda não é nenhum segmento particular, ou ‘fatia’, de uma experiência total da visualidade e da auralidade sem defeitos, mas uma totalidade de um modo bem diferente, acredito (com Ihde 1976:44) que ainda podemos aprender muito sobre como a percepção visual e auditiva funcionam – mesmo para pessoas com visão e audição normais – a partir da comparação dessas diferentes experiências. A comparação é, com certeza, complicada, pelo fato de que há variações individuais no grau de cegueira e de surdez. No que se segue, devo assumir o não funcionamento total dos olhos e dos ouvidos respectivamente. Começo pela cegueira, valendo-me do soberbo – e extremamente comovedor – relato de John Hull sobre suas próprias experiências de tornar-se cego e de ajustamento a essa condição como adulto. O relato é revelador sob dois aspectos. Primeiro, ele realça as características da percepção visual da qual, normalmente, dependemos, mas tendemos a dá-la por certa, trazendo à tona os problemas que resultam de sua ausência. Em segundo lugar, revela propriedades inesperadas da percepção aural que são importantes para os cegos, mas que podem funcionar igualmente entre as pessoas com visão, embora não sendo reconhecidas pelo que são. A propósito do primeiro, devo focar o contato olhos-nos-olhos; a propósito do segundo, devo considerar o fenômeno da ecolocalização. Como um prelúdio a ambos, no entanto, algumas observações gerais devem ser feitas sobre como as pessoas cegas e com visão, respectivamente, percebem o espaço ao seu redor. 

 

Sendo cego

Há muito no relato de Hull que corrobora as idéias de Hans Jonas, revisto na seção anterior. A percepção da pessoa cega, dependente do tato e da audição, é fundamentalmente suspensa no decorrer do tempo. O espaço visual é apresentado à pessoa com visão de uma só vez, mas o espaço tátil deve ser construído pelo cego, pedaço por pedaço, através de uma exploração repetitiva e demorada com os dedos. Assim, a pessoa cega pode levar dias para “descobrir o que uma pessoa com visão apreende em uma fração de segundos” (Hull 1997:183). O espaço acústico é similarmente temporal. Ao contrário dos objetos do tato, no entanto, que sempre podem ser tocados novamente, os múltiplos habitantes do espaço acústico possuem uma natureza efêmera, transitando dentro e fora da existência juntamente com os sons que produzem. Este não é um mundo do ser – «o mundo quieto, imóvel no qual as coisas simplesmente são» – mas um mundo do tornar-se, no qual existe apenas ação e no qual todo o som marca um locus de ação (pp.6 72-3). Neste mundo, ‘sons vêm e vão de um modo que a visão não o faz’ (pp.145-6). Assim fazem os agentes, especialmente as pessoas, que produzem os sons. Como uma pessoa com visão, posso ver quando alguém mais está na sala antes dele ou dela começar a conversar ou se aproximar para apertar minha mão. Mas para a pessoa cega a voz ou o aperto de mão vêm de lugar nenhum. Tem-se a sensação de ser agarrado, ou abordado, incapacitado tanto de resistir quanto de escolher seu assaltante (p.87). Outras pessoas, com suas vozes e gestos táteis, aparecem de repente e desaparecem de maneira igualmente abrupta. ‘A natureza intermitente do mundo acústico’, escreve Hull, ‘é uma de suas características mais impressionantes’ (p.73). O mundo visto nunca pode escapar aos olhos, ele está sempre lá, e pode-se retornar a ele repetidas vezes. Mas o mundo do som foge tão rápido quanto chega à existência. E o som que passou pode nunca mais ser recuperado (p.145). 

 

Pode, então, a pessoa cega fruir, alguma vez, uma experiência comparável à da pessoa com visão, de ser posta em um lugar com uma paisagem que pode ser apreendida em sua totalidade, com suas superfícies, contornos e texturas infinitamente variadas, habitado por animais e plantas e coberto de objetos tanto naturais quanto artificiais? Existe somente uma circunstância na qual isso é possível, na experiência de Hull: quando está chovendo. Pois os sons das gotas de chuva, que são percebidos como vindos de nenhum ponto em particular, mas de todos os lados de uma só vez, revelam em todos os detalhes as superfícies nas quais elas caem. ‘A Chuva’, escreve Hull, ‘possui um modo de revelar os contornos de tudo; joga uma manta colorida sobre as coisas invisíveis anteriormente, em vez de um mundo intermitente e, conseqüentemente, fragmentado; a precipitação constante da chuva cria uma continuidade da experiência acústica… Essa é uma experiência de grande beleza’ (1997:26-7). Existe, de fato, um certo paralelo entre o êxtase de escutar o que Hull descreve e o que, para os que vêem, descrevi como o deslumbramento da visão, quando o mundo é revelado para o vidente como se a neblina na qual fora envolvido fosse levantada e ele, ou ela, o estivesse contemplando pela primeira vez. A chuva faz para o cego aquilo que a luz do sol faz para os com visão, banhando o mundo em som como o sol banha em luz. Imerso no audível, para emprestar e adaptar as palavras de Merleau-Ponty, o ouvinte abre-se ao mundo: ‘Meu corpo e a chuva se entrelaçam, e tornam-se um universo áudio-tátil tri-dimensional, no limite do qual e dentro do qual  repousa minha consciência’ (Hull 1997:120). 

 

Ora, em minha discussão prévia da máxima ‘visão objetifica, som personifica’, notei que ela tem uma ligação estreita, na tradição Ocidental, com uma certa construção da pessoa, segundo a qual a essência interior, identificada com a voz, deve estar escondida atrás – mas que contudo soa através – de uma máscara externa identificada com o rosto. A voz pode ser ouvida, o rosto visto – a menos que uma esteja na companhia de outra que, por acaso, seja cega. Ainda, é comumente expresso o ponto de vista segundo o qual para os cegos sua incapacidade de ver os rostos dos outros pode ser uma vantagem positiva. Pois não estão, como o resto de nós, suscetíveis às impressões exteriores. Foi assim que David Hume, no século dezoito, dirigiu-se a um conhecido cego, o  poeta de Edinburgh Thomas Blacklock: ‘Sua paixão.. será sempre melhor sustentada que as nossas, que possuímos a visão: somos ingênuos por deixar-nos cativar pela beleza exterior; nada além da beleza da mente pode afeta-lo’. (apud Rée 1999:40). Nos tempos de hoje, o escritor francês cego Jacques Lusseyran toma o mesmo ponto de vista: o cego habita o mundo ‘livre do engodo das aparências físicas, no qual o que e o como algo é dito revela o seu verdadeiro propósito’ (apud Hill 1985:109). Mas em Hill a questão das experiências não é tão simples. Para ele, o rosto não é uma máscara, mas está intimamente ligado com a vida e a identidade do eu como o está com a voz. E de todos os componentes do rosto, os mais reveladores, e o alvo da nossa maior atenção e fascinação, são os olhos. 

 

 Se existe uma diferença crucial entre o rosto e a voz, não é tanto que um é visto e o outro é ouvido, mas que você pode ouvir sua própria voz ao passo que não pode ver seu próprio rosto. ‘Vivo na expressão facial do outro’, escreve Merleau-Ponty, ‘como o sinto vivendo na minha’ (1946b:146). Disso se origina o que John Berger chama ‘a natureza recíproca da visão’ – uma reciprocidade que é ainda mais fundamental, na visão de Berger, do que a do diálogo falado. Pois no contato olho-a-olho, escreve ele, ‘o olho do outro combina com o nosso próprio olho para fazer crível que somos partes do mundo visível’ (Berger 1972:9). Assim, sua visibilidade, sua identidade, de fato a sua própria existência como uma pessoa, é confirmada na visão dos outros. Em circunstâncias normais, ver outra pessoa é saber que você pode ser visto por ela, ver um lugar é saber que você pode, em princípio, ser visto lá por alguém . Mas, quando a outra pessoa é cega, a reciprocidade da visão se rompe. Suponha que eu tenha visão e que você seja cego: enquanto eu posso ver seu rosto, também posso saber que você não está olhando para mim. Para você, parece que eu não estou ali. Mas não ser capaz de ver os rostos dos outros o leva a imaginar que os outros, do mesmo modo, não podem ve-lo. Hull  descreve, vividamente, o medo contínuo de não ter rosto, a perda da consciência associada com a invisibilidade percebida. ‘Porque não posso ver, não posso ser visto… Isso não faria diferença se meu rosto todo desaparecesse. Sendo invisível aos outros, torno-me invisível a mim mesmo’. Requer verdadeira força de vontade, se você for cego, lembrar-se de que você ainda pode ser visto (Hull 1997:51-2). 

 

Longe de levar a uma profunda intersubjetividade, a uma maior sensação de pertencimento, conectividade e participação, como o estereótipo recebido implica, a cegueira resulta – ao menos na experiência de Hull – em uma esmagadora sensação de distância e reserva. ‘Pessoas’, como ele coloca, ‘tornaram-se meros sons’ e ‘sons são abstratos’ (1997:21,48). Para ele, bem diferente da sabedoria convencional, a visão personifica, ao passo que o som objetifica. Hull escreve como alguém que tem estado completamente cego há apenas alguns anos e sabe muito bem como é ser capaz de ver os rostos dos outros. O que ele diz com certeza deve ressoar com a experiência de cada pessoa com visão. Por que, então, contra todas as evidências de nossos sentidos, aderimos à ilusão de que a visão é inimiga da socialidade, que ela individualiza, isola e abstrai? Será porque tomamos, como um cenário prototípico da visão, a situação de olhar para um objeto inerte, opaco, em vez de olhar dentro dos olhos de um sujeito ativo e vívido – cujos olhos também estão olhando dentro dos nossos? Se sim, isso não proporciona mais provas daquilo que se tornou aparente a partir da minha primeira crítica à antropologia dos sentidos, ou seja: que não é a visão que objetifica o mundo, mas é, antes, a domesticação da visão para um projeto de objetificação que a reduziu a um instrumento de observação desinteressada? Nossa própria familiaridade com a natureza recíproca, intersubjetiva, da visão, parece, conspirou na ocultação disso de nós. Torna-se um terreno implícito contra o que é projetado; uma imagem explícita da visão, como a vista das coisas. 

 

Pessoas cegas, é claro, não podem ver coisas tanto quanto não podem ver rostos. Mas podem ouvi-los. Participantes cegos de um estudo conduzido por Miriam Hill relataram ouvir caixas postais, sinais, aberturas, portas, correios, postes e árvores, assim como ‘sons que rebatem de prédios’ (Hill 1985:102). A habilidade de perceber os sons desse modo, além do alcance do toque, parece estar baseada no princípio da ecolocalização. Assim, como para as pessoas com visão, retomando o argumento de Gibson, a presença e as formas dos objetos do ambiente são reveladas através da modulação do arranjo de luz refletida, atingindo os olhos de um observador em movimento. Então, para os cegos, eles seriam revelados através da modulação do arranjo de sons refletidos. Ademais, não são somente os olhos que estão em funcionamento nesse processo. ‘O que a pessoa cega experiencia na presença de um objeto’, como explica Lusseyran, ‘é pressão’ (apud Hill 1985:107). Hull relata, precisamente, a mesma experiência descrevendo a pressão como às vezes tão intensa que, instintivamente, quer levar sua mão ao rosto para se proteger.