«Pare, olhe, escute!» – um prefácio

Tim Ingold – University of Aberdeen

Tradução de Ligia Maria Venturini Romão (FFLCH/USP), Marcos Balieiro (PPGF/USP) , Luisa Valentini (PPGAS/USP), 
Eliseu Frank (ICB/USP),   Ana Leticia de Fiore (C.Sociais, FFLCH/USP)  Rui Harayama (C.Sociais, FFLCH/USP)

 

 

Dos vinte e três capítulos que fazem parte do meu livro, The Perception of the Environment, a maior parte foi escrita na década de 90. ‘Pare, olhe e escute!’ foi o último a ser escrito e foi, de longe, o mais extenso e o mais difícil de escrever. Tentando lidar com a questão geral de como as pessoas percebem o mundo à sua volta, fiquei tão animado quanto frustrado pela literatura sobre o que era, na época, o campo emergente da «antropologia dos sentidos». Por um lado, ela prometia um âmbito de investigação rico e fascinante, desvendando áreas da experiência humana negligenciadas previamente ou, até, intocadas. Por outro lado, no entanto, o que ela parecia oferecer, por trás de sua retórica de uma «revolução sensória» no conhecimento, era apenas mais do mesmo, sucumbindo, inocentemente, a um relativismo cultural cansado e amplamente desacreditado. Assim como a antropologia mais antiga (que opunha nós ocidentais aos ‘outros’ não ocidentais) havia retratado esses outros em mundos culturais diferentes, a antropologia dos sentidos parecia retratá-los, do mesmo modo, em mundos sensórios diferentes. Além de substituir «cultura» por «sentidos» e «modelos culturais» por «modelos sensórios», nada havia mudado.
Em meu livro, procurei repudiar o axioma fundador desse tipo de relativismo – de que a percepção consiste, notadamente, na modelagem cultural de experiências recebidas pelo corpo – e substituí-lo por uma compreensão da percepção como engajamento ativo e exploratório da pessoa inteira, corpo e mente indissolúveis, num ambiente ricamente estruturado. Parecia-me que esse engajamento era precisamente aquilo que estava faltando a uma antropologia dos sentidos que não tinha nada a dizer sobre como as pessoas, na prática, vêem, ouvem e tateiam em suas próprias vidas, e que tinha tudo a dizer sobre como suas experiências da audição, da visão e do tato alimentam a imaginação e penetram suas expressões discursivas e literárias. Na completa objetificação dos sentidos, como coisas sobre as quais que alguém poderia empreender um estudo antropológico, parecia que os olhos, ouvidos e pele não eram mais considerados como órgãos de um corpo que, conforme trilha seu caminho no mundo, olha, escuta e tateia atentamente para onde está indo. Pelo contrário, eles se tornaram instrumentos de reprise, capturando momentos de experiência e retransmitindo-os a uma consciência reflexiva para subseqüente revisão e interpretação. 
Essa mudança de foco, de como as pessoas percebem o mundo real no qual habitam, para como elas habitam os mundos virtuais de sentido, já foi bem estabelecida no estudo daquilo que ficou conhecido como «cultura visual» e fez parte de um movimento mais amplo de pensamento que impulsionou a expansão inflacionária dos assim chamados estudos culturais. Para os estudiosos do visual, ver, aparentemente, não diz respeito à observação, a olhar a própria volta ou a atentar para o que está acontecendo. Tampouco diz respeito à experiência de iluminação que torna essas atividades possíveis. Antes, diz respeito, estreita e exclusivamente, ao exame cuidadoso de imagens. Onde não há imagens para ver, não há visão. É como se os olhos não se abrissem para o mundo em si mesmo, mas para um simulacro do mundo cujos objetos testemunham a experiência da visão e nos devolvem essa experiência em nosso olhar. Desorientado nesse mundo de imagens, no qual tudo que se pode ver é em si mesmo um reflexo da visão, o observador parece cego ao próprio mundo. 
Uma das principais reivindicações da antropologia dos sentidos é, claro, de ter destronado a visão da posição soberana supostamente ocupada por ela no panteão intelectual do mundo ocidental e destacar as contribuições de outras modalidades sensórias, não visuais, acima de tudo para a formação sensória dos povos não-ocidentais. É, portanto, irônico que no ‘redescobrimento’ dessas modalidades – audição, tato, olfato, e assim por diante – antropólogos dos sentidos tenham efetuado exatamente a mesma manobra que seus aliados intelectuais no estudo da cultura visual. Aos mundos de imagens criados por esses últimos, eles simplesmente adicionaram mundos de sons, tatos e cheiros. Um sintoma desse artifício é a multiplicação de ‘paisagens’ de todos os tipos possíveis. Se os olhos devolvem para nós o mundo em sua imagem visual, concebido como paisagem, então do mesmo modo os ouvidos revelam uma paisagem sonora, a pele uma paisagem tátil, o nariz uma paisagem olfativa, e assim por diante. É claro que, na realidade, o ambiente que as pessoas habitam não é dividido por caminhos sensórios pelos quais elas podem acessa-lo. É o mesmo mundo, não importa o caminho que escolham. Mas essas múltiplas ‘paisagens’ não se referem ao mundo prática e produtivamente habitado. Elas se referem aos mundos virtuais criados pela captura das experiências encorporadas e perceptuais da habitação e pela sua devolução, em formas artificialmente purificadas, para interpretação e consumo. 
Nos anos que se passaram após 2000, quando ‘Pare, olhe e escute!’ foi publicado pela primeira vez, a ‘virada sensória’ no conhecimento foi de vento em popa, em grande parte graças aos incansáveis esforços de seu principal representante, David Howes. Acompanhá-la tornou-se uma moda acadêmica. Numerosas publicações surgiram, incluindo monografias, livros didáticos e compilações de ensaios. Existe até uma revista especializada, The Senses and Society, voltada exclusivamente para esse campo. No entanto, a lacuna entre prática perceptual e imaginação sensória está maior do que nunca. Foi essa lacuna que fez com que ‘Pare, olhe e escute!’ fosse tão difícil de escrever. Esforcei-me para fechá-la mostrando como o que tem sido pensado e escrito em termos dos sentidos está, necessariamente, incrustado nas práticas da vida real como ver, ouvir e tocar. Até hoje, essa tentativa tem encontrado ouvidos moucos. Quando isso não acontece, ela tem se deparado com pura hostilidade.

 

Assim, em seu livro Sensual Relations, David Howes declara que a pior coisa que os antropólogos podem fazer é basear suas análises nos modelos de ‘sistemas perceptuais’ propostos por psicólogos como James Gibson ou filósofos como Maurice Merleau-Ponty. É óbvio quem Howes tem em mira! Para ele, qualquer um que esteja interessado na visão e em como ela funciona, incluíndo eu mesmo, é, automaticamente, acusado de ‘imperialismo epistemológico’. Essa acusação é, certamente, risível. A visão é, obviamente, importante para a maioria dos seres humanos mundo afora, e acusar qualquer um que deseje escrever sobre ela de ter sucumbido ao visualismo é tão absurdo quanto banir pesquisas sobre a fabricação de ferramentas pelo homem pela razão de que isso significa conspirar para o projeto modernista de dominação mundial tecnológica!

Ninguém é tão ingênuo a ponto de se crer totalmente livre de ser tendencioso. No entanto, quaisquer vieses que surjam em estudos de maneiras como as pessoas usam seus olhos, ouvidos e pele para perceber, ou a maneira como usam ferramentas para atuar, são insignificantes diante do imperialismo inerente a um projeto comparativo que limita as maneiras de pensar e conhecer das ‘culturas indígenas’ a epistemologias sensórias fechadas que são expostas à jurisdição dominante do onisciente e onipotente antropólogo ocidental. Esse é o projeto que Howes propõe em nome da antropologia dos sentidos. As filosofias que ele denuncia de modo tão estridente são, precisamente, aquelas que têm o potencial de nos levar para além de um relativismo cultural tão abjeto, em direção ao reconhecimento de que se as pessoas diferem nas maneiras como percebem o mundo, é, precisamente, por causa daquilo que elas têm em comum, a saber, sua base existencial no único mundo que elas – e nós – habitamos. Para trazer de volta à terra a antropologia dos sentidos, nossa prioridade deve ser restituir aos mundos virtuais do sentido as praticidades de nossa maneira sensória de perceber o mundo. >

Traduzido, sob autorização do autor, do original em inglês «Stop, Look, Listen!», capítulo da obra The Perception of the Environment. Essays in Livelihood, Dwelling and Skill. Routledge, NY, 2000 (pp.243-287).
D. Howes, Sensual Relations: Engaging the Senses in Culture and Social Theory, Ann Arbor: University of Michigan Press, 2003; M. Bull and L. Back (eds), The Auditory Culture Reader, Oxford: Berg, 2003; V. Erlmann (ed.), Hearing Cultures: Essays on Sound, Listening and Modernity, Oxford: Berg, 2004; D. Howes (ed.), Empire of the Senses: The Sensual Culture Reader, Oxford: Berg, 2005; C. Classen (ed.), The Book of Touch, Oxford: Berg, 2005; J. Drobnick (ed.), The Smell Culture Reader, Oxford: Berg, 2006; M. Paterson, The Senses of Touch: Haptics, Affects and Technologies, Oxford: Berg, 2007; E. Edwards and K. Bhaumik (eds) Visual Sense: A Cultural Reader, Oxford: Berg, 2008; D. Howes (ed.) The Sixth Sense Reader, Oxford: Berg, 2009.
D. Howes, Sensual Relations: Engaging the Senses in Culture and Social Theory, Ann Arbor: University of Michigan Press, 2003, pp. 49-50. Em relação ao imperialismo epistemológico, ver ibid. pp. 239-40, fn. 8