“Aos Guardas compete: 1º Rondar constantemente de dia e de noite, durante as horas de serviço que lhes tocarem, as ruas, praças e travessas do giro que lhes for designado (…), evitando pendências e escândalos, e sobretudo protegendo eficazmente a segurança das pessoas e da propriedade, e os mais direitos do cidadão; 2º Vigiar muito particularmente as reuniões públicas, observando as formalidades legais; 3º Impedir o porte e uso de armas proibidas; 4º Reprimir a mendicidade pelas ruas e praças públicas, e não consentir ajuntamentos que possam perturbar ou embaraçar o trânsito; 5º Impedir que as mulheres públicas façam má vizinhança ou causem escândalo; 6º Evitar que nos passeios, mercados, teatros, á saída e entrada dos templos e nos demais sítios (…), haja atropelamentos ou se dificulte o trânsito público; 7º Não consentir que carruagens, cavaleiros, vendedores ambulantes, aguadeiros e quaisquer pessoas que conduzam objectos volumosos ou de peso, transitem pelos sítios que lhe são vedados ou atropelem as pessoas que andam a pé; 8º Admoestar os condutores de animais de carga ou de transporte para os não maltratarem (…). Devem proceder contra aqueles que obrigam os animais a conduzir cargas visivelmente superiores ás suas forças; 9º Vigiar os vadios e pessoas de mau procedimento; 10º Acudir aos incêndios e adoptar as providências convenientes; 11º Prestar [auxílio] ás autoridades judiciais, administrativas e militares; 12º Prestar as informações que lhes forem pedidas; 13º Dar parte diária de todos os acontecimentos extraordinários e criminosos; 14º Solicitar do chefe ou requisitar directamente, o auxílio da força armada; 15ª Autenticar as transgressões de posturas e regulamentos municipais; 16º Vigiar os indivíduos que se tornem suspeitos a fim de prevenir os crimes que porventura premeditem; 17º Acompanhar ao posto policial mais próximo as crianças abandonadas ou perdidas; 18º Prestar os primeiros socorros aos feridos, alienados ou embriagados que encontrarem; 19º Fechar as portas das escadas que encontrarem abertas depois da hora de recolher.
Na hierarquia interna, o posto de chefe de esquadra era de vital importância. Os chefes de esquadra respondiam directamente ao Comissário Geral. Eram eles que instruíam os polícias e controlavam sua disciplina. Ao assumirem o comando de uma determinada esquadra eles tinham o poder de definir políticas locais (no sentido do bairro) de policiamento. Isto é, se eles eram um elo na cadeia hierárquica, e por isso tinham de obedecer ordens que recebiam de cima, estavam, contudo, numa posição em que podiam engendrar práticas policiais que melhor se adaptassem à zona da cidade em questão.
O número de esquadras foi aumentando progressivamente. Em 1930 se situava em volta das trinta, acompanhando, portanto, o crescimento da cidade. Fisicamente, as esquadras passaram a estar mais visíveis ao cidadão. Nos primeiros anos elas eram casas de habitação alugadas, pequenas e insalubres, mudando freqüentemente de local. Depois as chefias policiais preocuparam-se em melhorar suas condições, tornando-as mais visíveis aos habitantes da cidade. A ocupação de antigos conventos religiosos permitiu melhorar as condições físicas das esquadras policiais (só no regulamento de 1894 ficou estabelecido que a porta da frente deveria, no cimo, possuir uma placa a dizer Polícia.). Um aspecto, que pode passar por pormenor, mas que atesta de forma significativa a construção social da esquadra de polícia: apenas em 1894 as esquadras passaram a estar abertas 24 horas por dia. Antes dessa data, abriam às oito horas da manhã e fechavam às quatro horas da tarde.
Até há bem pouco tempo a polícia de Lisboa era um receptáculo de indivíduos que migravam do campo para a cidade (Vaz, 2004). A polícia representava um emprego que, apesar dos baixos salários, era relativamente seguro. Desta forma, os indivíduos fixaram-se por longos anos na polícia, tomando-a como um emprego para a vida. Se a isto somarmos o facto de se favorecer, dentro da organização policial, uma certa estabilidade nos lugares ocupados por cada polícia, podemos concluir que era relativamente comum o mesmo polícia policiar durante anos o mesmo conjunto de ruas. À streetcorner society (White, 1969) o Estado respondeu com o streetcorner politician (Muir, 1977). Como resultado do poder discricionário detido pelo polícia, a imagem pública oscilou entre extremos. Entre o polícia que “quando não namora medita, e quando não medita namora” , e o hábil Antunes:
“Um solitário bípede representando uma instituição, [que] corre, busca, vigia, oculta-se, espiona, captura, repreende, admoesta, ameaça, condena; ele é a ordem, é a força, é a lei, a justiça, o direito. Interroga, inquire, investiga: pergunta a este porque motivo está parado, àquele qual a razão secreta que o determina a passear, corre atrás de um que se lhe torna suspeito por tomar um cabriolé à hora, regressa perseguindo regressa perseguindo outro que subiu à imperial de um ónibus; manda Pulquéria para o Aljube [estabelecimento prisional em Lisboa]; aprisiona Pedro no Governo Civil [local onde se situava o Comissariado Geral da Polícia e onde ficavam os presos]; sepulta Paulo na esquadra policial, e vai continuando sempre a correr e a suar atrás do resto da sociedade que Antunes odeia porque ela anda à solta. Uma vez por mês Antunes descansa dois minutos – um minuto para ler a portaria de louvor que lhe é dirigida, outro minuto para cortar os calos – e recomeça com novo brio.” (488-489).
Estamos então perante um tipo de organização que privilegiava a proximidade com os citadinos, através de uma organização por escalas que chegava até ao que era considerado o território mínimo, a rua. Era idéia dominante entre chefias policiais que apenas uma presença visível e constante permitiria uma actuação de facto eficaz. A territorialidade como um dos eixos estruturantes da polícia concretizava-se numa ocupação do espaço em que escalas da organização iam sendo responsabilizadas por unidades territoriais progressivamente menores. A rua e o polícia em patrulha eram a unidade mínima ou, se preferirmos, a unidade base na organização da acção policial.
Conclusão
A rua é ainda um objecto incerto para todas as ciências sociais. De facto, parece não existir uma perspectiva teórica e metodológica consensual, capaz de englobar e sistematizar a multiplicidade de sentidos que a rua assume consoante o contexto em que o trabalho se insere. Quando abordamos a rua como objecto de estudo uma das principais dificuldades é encontrar um fio condutor onde possamos sistematizar a rua como território, evitando assim os problemas associados aos múltiplos sentidos que “rua” pode tomar.
A mudança ocorrida na rua e no seu estatuto enquanto espaço público é de certa forma paradoxal. A uma afirmação da rua enquanto espaço de todos, corresponde, simultaneamente, um processo que a declara como espaço de ninguém em particular. Duas idéias convêm aqui reter como a súmula desta mudança no conceito de rua. Por um lado, o lado do Estado, a crescente acção administrativa tinha de obedecer ao respeito pela liberdade individual. A acção do aparelho de Estado contemporâneo não pode ser dissociada do ideal liberal das garantias individuais e da protecção e respeito da propriedade, que o Estado devia respeitar e promover. Por outro, este processo ocorreu num espectro social abrangente de uma cultura da mobilidade como traço distintivo de modernidade urbana. É na confluência destas duas idéias que se definirá a acção do Estado no que respeita ao traço e aos usos da rua.
A mudança na funcionalidade oficial das ruas – de uma ampla variedade de actividades para uma quase exclusiva função circulatória – acontece a partir do século XIX. Neste processo o Estado assume um papel fundamental. Mas o Estado não era, e não é, um bloco uno e sólido. Ao invés, incorpora diferentes serviços que actuam segundo abordagens também elas diversas. O poder dos engenheiros e dos médicos sustentou-se num saber técnico consolidado ao longo as décadas. Pelo contrário, o poder dos polícias sustentou-se num tipo de organização específico que aproximava o Estado das rotinas quotidianas dos habitantes da cidade. Mas mais do que um poder impositivo, o poder policial, neste contexto de transformação dos usos da rua, deve ser entendido como um poder negociado – uma negociação quotidiana da ordem. Se tanto engenheiros como médicos actuavam numa vertente de planificação, em que a execução não contemplava, normalmente, uma interacção directa com os habitantes da cidade. Os polícias, pelo contrário, baseavam a sua actuação na interacção quotidiana com os citadinos, quer nas ruas, quando da patrulha, quer, de forma crescente, nas esquadras quando solicitados pelos próprios cidadãos.
Em relação à polícia tento explorar a hipótese de o mandato policial não ser exclusivamente uma determinação política e organizacional. Tratando-se antes de um jogo de poder e negociação, onde estes dois planos têm uma importância fulcral, mas em que as condições económicas, sociais e geográficas são também factores determinantes. Neste contexto, argumentei que o significado de “segurança pública” remetia mais para a regulação de comportamentos sociais no espaço público urbano, do que obrigatoriamente para comportamentos criminais.
O desafio parece residir, agora, no descortinar das cartografias de cada cidade. Isto é: se parece correcto afirmar que as ruas se padronizaram num modelo de circulação, isso não significa que todas as ruas da cidade tenham seguido este modelo. Entre o rebuliço do centro da cidade e os calmos bairros habitacionais, persistiram, de forma inteiramente legal ou informalmente consentida pelas autoridades, usos da rua que não se encaixaram na função circulatória da rua.
Notas
Lei de 31 de Dezembro de 1864, Diário de Lisboa nº 10, 13 de Janeiro de 1865. Esta lei, da responsabilidade do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, estava incluída num extenso programa legislativo relativo aos diferentes meios de comunicação. O ministro, João Crisóstomo de Abreu e Sousa, era “o paradigma da figura do engenheiro civil que emerge na segunda metade do século XIX, que percepciona e dá a ver a sua profissão numa dimensão de intervenção activa na sociedade: o engenheiro tem um papel social, na medida em que a sua acção é insubstituível no desenvolvimento das estruturas materiais associadas ao progresso e ao bem-estar, e “objectualiza-se” como promotor da modernidade” (Diogo, Matos, 2004).
Em Lisboa, assim como no resto do país, ainda existem hoje diversas ruas com a designação de “Direita”. Para o caso do Brasil, Orlando Ribeiro dá-nos os exemplos da, hoje, Rua do Chile em Salvador e da Rua 7 de Setembro no Rio de Janeiro.
A principal associação de automobilistas, o Automóvel Clube de Portugal, foi por longos períodos presidida por engenheiros. Esta associação fez ao longo dos anos inúmeras campanhas de pressão política para que aumentassem as condições de supremacia dos automobilistas nas ruas de Lisboa.
As prostitutas legalmente registadas passavam a ser designadas por “toleradas”.
Sobre a polícia inglesa ver Emsley (1996) e Steedman (1984); na restante Europa, o exemplo alemão foi abordado em Spencer (1992), o francês em Berliere (1999). O caso norte-americano encontra-se magnificamente sintetizado, num dos clássicos dos estudos policiais, em Monkkonen (1981). Para o Brasil consultei os trabalhos de Marcos Luiz Bretas (1995; 1997).
Regulamento Geral e Disciplinar do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, art. 27º – Abril de 1894.
Na minha tese de mestrado analiso dois tipos de controlo do trabalho policial: a tecnologia e a burocracia. (Cf. Gonçalves, 2007)
É muito difícil documentar empiricamente esta situação, apesar de ter sido uma imagem muito difundida pelas chefias policiais. Na minha pesquisa consultei as ordens de serviço diárias e posso afirmar que em determinados períodos esta situação ocorreu de facto. Christopher Thale (2004, 2007) chegou, com uma comprovação empírica sólida, a uma conclusão semelhante para o caso da polícia de Nova Iorque.
QUEIROZ, Eça de, ORTIGÃO, Ramalho, As Farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes, Estoril: Principia, 2004 [1872], pág. 365
Obviamente os regimes autoritários que tanto Portugal como o Brasil viveram não respeitaram estes direitos. Mas estes são ideais que, ao longo dos últimos dois séculos, se consolidaram socialmente, conseguindo vencer os regimes políticos autoritários
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