Em 1829 era criada em Londres a Metropolitan Police. Tratava-se de uma instituição com jurisdição sobre um território que não era apenas o da cidade de Londres (o coração da cidade – cerca de 1 milha – tinha e tem uma outra polícia), mas um espaço mais amplo, o metropolitano. Depois de décadas de discussão parlamentar, o governo inglês obtinha, finalmente, autorização para criar um corpo uniformizado de homens que responderia directamente ao ministro do interior. Seu principal objectivo ou, pelo menos, o mais referido nos discursos parlamentares, era a prevenção da criminalidade. Pouco tempo depois, homens fardados de azul (para assim se distinguirem dos militares), começavam a patrulhar, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, as ruas da grande Londres. Poucos anos depois, em 1854, o parlamento inglês nomeou uma comissão com o objectivo de avaliar os resultados obtidos por este corpo, tendo em vista um possível alargamento deste modelo institucional a outras cidades inglesas. Um dos resultados desta comissão interessa-nos aqui particularmente. Dizia ela que, em termos criminais, a nova polícia não tinha conseguido resultados tão positivos, mas que, um tanto surpreendentemente, a presença dos polícias em patrulha tinha permitido melhorar bastante o caótico trânsito de carroças nas entupidas ruas londrinas (Winter, 1993: 50-64). De facto, a nova polícia revelava-se uma excelente forma de administrar os problemas das ruas da cidade. Ao longo de todo o século XIX e no princípio do século XX, o modelo da polícia de Londres, os populares Bobbies, seria adoptado em todas as grandes cidades. 
É necessário analisar a estrutura da organização policial para se compreender o porquê desta relação. A territorialização do poder do Estado tem sido um campo de origem de diversos estudos. A produção de mapas ou o desenvolvimento das estatísticas são exemplos de um processo em que o Estado avança no sentido de conhecer para governar o território da nação. A centralização política dos agentes administrativos periféricos foi uma dinâmica histórica global. Este processo é normalmente analisado com a totalidade de um determinado território nacional em mente, conferindo-se especial atenção ao progressivo avanço territorial do Estado central. Mas, voltando à cidade, a questão que se coloca é: como se reflectiu este processo no espaço urbano? 
As cidades, e particularmente as capitais políticas, desde o século XVII vinham sofrendo este processo de centralização política (Hespanha, 1994). O que estava a acontecer à totalidade dos territórios nacionais durante o século XIX, já tinha acontecido antes aos espaços urbanos. Então: engendrou o Estado novos e, especificamente, urbanos dispositivos de controlo? Existiram, de facto, medidas de governo territorial especificamente direccionadas para as cidades. E isso aconteceu porque existiu vontade política para o fazer, mas também porque os efeitos do processo de urbanização obrigavam o Estado a encontrar respostas para problemas que só então, e só nas cidades, se colocavam. A polícia, nos moldes em que se desenvolveu a partir do século XIX, foi um processo exclusivamente urbano de territorialização do poder do Estado.
Olhemos para o caso de Lisboa para compreendermos mais detalhadamente como é que a polícia constituiu uma forma específica de territorialização, percebendo assim sua relação de proximidade com a rua. Em 1867 eram criados os Corpos de Polícia Civil de Lisboa e do Porto. Apesar de na mesma altura ter sido prevista a criação de Guardas Campestres, apenas em 1910 as zonas rurais de Portugal teriam direito a uma força policial rural, a Guarda Nacional Republicana. Até lá, manter-se-iam as polícias de Lisboa e Porto, e seriam progressivamente criadas polícias urbanas nas capitais de Distrito. Como é normalmente assinalado, Portugal sofre de uma macrocefalia em relação a Lisboa. Também em relação à polícia era Lisboa que verdadeiramente interessava, sendo as outras organizações reproduções menores do exemplo Lisboeta. Ao longo do tempo a polícia de Lisboa mudou algumas vezes de nome: Polícia Civil até 1910, Polícia Cívica de Lisboa entre 1910 e 1927 e Polícia de Segurança Pública desde 1927. No entanto, é necessário frisar, a substância da organização permaneceu inalterada, ou melhor, as mudanças registaram-se em processos mais longos no tempo, não dependendo da mudança de designação. A polícia de Lisboa, seguindo o modelo internacional, dependia do governo central, era uma estrutura hierárquica, controlada burocraticamente, com esquadras (em inglês utilizam-se as expressões police station ou precincts) que dividiam o espaço da cidade em zonas, composta por homens fardados que percorriam em patrulha as ruas da cidade.

 

Desde o início, as funções policiais foram extremamente amplas. Citando o regulamento do corpo policial, vemos como ao polícia era pedido que executasse acções bastante diversas: 

 

“Aos Guardas compete: 1º Rondar constantemente de dia e de noite, durante as horas de serviço que lhes tocarem, as ruas, praças e travessas do giro que lhes for designado (…), evitando pendências e escândalos, e sobretudo protegendo eficazmente a segurança das pessoas e da propriedade, e os mais direitos do cidadão; 2º Vigiar muito particularmente as reuniões públicas, observando as formalidades legais; 3º Impedir o porte e uso de armas proibidas; 4º Reprimir a mendicidade pelas ruas e praças públicas, e não consentir ajuntamentos que possam perturbar ou embaraçar o trânsito; 5º Impedir que as mulheres públicas façam má vizinhança ou causem escândalo; 6º Evitar que nos passeios, mercados, teatros, á saída e entrada dos templos e nos demais sítios (…), haja atropelamentos ou se dificulte o trânsito público; 7º Não consentir que carruagens, cavaleiros, vendedores ambulantes, aguadeiros e quaisquer pessoas que conduzam objectos volumosos ou de peso, transitem pelos sítios que lhe são vedados ou atropelem as pessoas que andam a pé; 8º Admoestar os condutores de animais de carga ou de transporte para os não maltratarem (…). Devem proceder contra aqueles que obrigam os animais a conduzir cargas visivelmente superiores ás suas forças; 9º Vigiar os vadios e pessoas de mau procedimento; 10º Acudir aos incêndios e adoptar as providências convenientes; 11º Prestar [auxílio] ás autoridades judiciais, administrativas e militares; 12º Prestar as informações que lhes forem pedidas; 13º Dar parte diária de todos os acontecimentos extraordinários e criminosos; 14º Solicitar do chefe ou requisitar directamente, o auxílio da força armada; 15ª Autenticar as transgressões de posturas e regulamentos municipais; 16º Vigiar os indivíduos que se tornem suspeitos a fim de prevenir os crimes que porventura premeditem; 17º Acompanhar ao posto policial mais próximo as crianças abandonadas ou perdidas; 18º Prestar os primeiros socorros aos feridos, alienados ou embriagados que encontrarem; 19º Fechar as portas das escadas que encontrarem abertas depois da hora de recolher.

Reflectindo dinâmicas que, de uma forma geral, ocorriam em todo o mundo do trabalho, também dentro da organização policial ocorreram processos de especialização. Este movimento foi o resultado tanto da própria prática policial como de políticas programadas. Uma reforma da polícia, em 1893-1894, estabeleceu três grandes áreas: investigação criminal, administrativa e segurança pública. A investigação criminal, como o próprio nome indica, estava encarregue de investigar os crimes cometidos, colectando provas e identificando os suspeitos. Este serviço era dirigido por um magistrado judicial, facto que constituiu uma fonte de inúmeras quezílias entre as chefias policiais. Ao apoiar-se em técnicas científicas, este ramo de polícia vai ao longo dos anos autonomizar-se de forma vincada da restante organização policial. A secção administrativa tinha um mandato relacionado com questões de segurança sanitária e alimentar. Era um tipo de serviço fortemente burocrático, com a produção de relatórios e registo de expediente. Finalmente, a segurança pública era a secção territorial por excelência. Abarcava o grosso dos recursos humanos disponíveis, tendo nas esquadras e nos polícias fardados a base da sua estrutura. Ao longo das quatro décadas seguintes, estas três áreas digladiaram-se dentro da polícia de Lisboa. Este processo interno resultou, devido a jogos de poderes e à própria natureza das funções de cada uma das divisões, em fusões (a segurança pública com a administrativa) e em dissenções institucionais (o caso mais evidente foi a investigação criminal). 
Era, então, a Segurança Pública que o comum habitante da cidade percepcionava como sendo a polícia. Era ela que lidava com a pequena criminalidade e com a violência quotidiana interpessoal que tantas apreensões causavam nas elites. Mas era também ela que fazia sobressair a dimensão de serviço público do trabalho policial que tem sido indicada em diversos estudos (Punch, 1973). Aspectos como o transporte de doentes para os hospitais ou a vigilância sobre incêndios em habitações eram serviços policiais que surgiram mais por pedidos das próprias comunidades do que por uma política estatal expressa. Estas dinâmicas na construção do mandato policial, que o sociólogo americano Michael Lipsky designou de Street-Level Bureaucracy, sustentavam-se na tensão entre aquilo que as elites políticas desejavam e o que as populações urbanas passaram a exigir do Estado. Esta característica decorria de uma forma específica de territorialização da polícia de segurança pública: esquadras e patrulhas. Num modelo que designámos de escalas de proximidade, a polícia colocava-se, quotidianamente, face a face com o citadino. E, se isso permitia ao Estado impor de forma mais constante a lei, obrigava-o, também, a responder aos problemas da cidade. Passemos então a analisar o processo histórico destas escalas de proximidade da organização policial.
Policiamento comunitário é uma designação que tem preenchido milhares de páginas nos estudos policiais desde os anos 1970. A aproximação entre a polícia e a comunidade policiada tem sido apresentada como o modelo policial do futuro. Mas, tenhamos isto em atenção, este era também o modelo no passado. Em 1867, os 250 polícias de Lisboa foram distribuídos em 12 esquadras. Estas esquadras dividiam o território da cidade em zonas mais pequenas que, em geral, correspondiam aos bairros da cidade. No entanto, aquilo que entendemos hoje, ser uma esquadra – a casa da polícia – não foi um modelo criado num determinado momento, mas, antes, um processo histórico que nos conduziu ao actual modelo. Podemos, assim, falar da construção da esquadra enquanto lugar. Em 1867 as expressões esquadra ou estação policial não remetiam automaticamente para um lugar físico, para um edifício onde se prestavam serviços públicos. Assim, por exemplo, o primeiro mapa das esquadras de Lisboa não continha o sítio onde determinada esquadra se iria estabelecer, mas as ruas que pertenciam a determinada esquadra. A noção de esquadra remetia sobretudo para uma zona da cidade. Com o tempo as esquadras, cada vez mais com uma noção de edifício público, foram ganhando importância no seio da estrutura policial. Algumas passaram a albergar presos, embora a maioria fosse concentrada num só local. Os habitantes da cidade passaram a deslocar-se à esquadra do seu bairro para requerer os serviços da polícia (fazer uma queixa, pedir o transporte de um doente, pedir um atestado de pobreza que lhes permitia aceder a determinados subsídios etc.). A sua importância cresceu também nas questões relacionadas com o funcionamento interno da polícia. Ao longo dos anos os procedimentos policiais passaram a exigir a circulação de cada vez mais papel. A esquadra constituiu-se então como lugar onde as acções de escrita da burocracia tinham lugar. 

Na hierarquia interna, o posto de chefe de esquadra era de vital importância. Os chefes de esquadra respondiam directamente ao Comissário Geral. Eram eles que instruíam os polícias e controlavam sua disciplina. Ao assumirem o comando de uma determinada esquadra eles tinham o poder de definir políticas locais (no sentido do bairro) de policiamento. Isto é, se eles eram um elo na cadeia hierárquica, e por isso tinham de obedecer ordens que recebiam de cima, estavam, contudo, numa posição em que podiam engendrar práticas policiais que melhor se adaptassem à zona da cidade em questão. 

O número de esquadras foi aumentando progressivamente. Em 1930 se situava em volta das trinta, acompanhando, portanto, o crescimento da cidade. Fisicamente, as esquadras passaram a estar mais visíveis ao cidadão. Nos primeiros anos elas eram casas de habitação alugadas, pequenas e insalubres, mudando freqüentemente de local. Depois as chefias policiais preocuparam-se em melhorar suas condições, tornando-as mais visíveis aos habitantes da cidade. A ocupação de antigos conventos religiosos permitiu melhorar as condições físicas das esquadras policiais (só no regulamento de 1894 ficou estabelecido que a porta da frente deveria, no cimo, possuir uma placa a dizer Polícia.). Um aspecto, que pode passar por pormenor, mas que atesta de forma significativa a construção social da esquadra de polícia: apenas em 1894 as esquadras passaram a estar abertas 24 horas por dia. Antes dessa data, abriam às oito horas da manhã e fechavam às quatro horas da tarde. 

Com a criação das modernas forças policiais, a autoridade do Estado adquiriu uma visibilidade quotidiana que em momento algum da história tinha sido conseguida. Chegamos então à unidade mínima da organização policial – a rua. Para nós, que nascemos no século XX, tornou-se um hábito cruzarmo-nos com um polícia apeado ou num carro de polícia. No século XIX, este facto constituiu uma enorme inovação na acção do Estado. Ao instituir a patrulha como serviço policial básico, o Estado ganhava presença quotidiana perante os cidadãos, mas, como reverso da medalha, ao fazê-lo nestas condições específicas, perdia o controlo absoluto sobre estes homens investidos com a sua autoridade. Como acentua Michael Lipsky, uma das principais características das Street Level Bureaucracies é a ampla discricionariedade de que gozam os seus agentes. A rua era, também, um campo de escolhas para o indivíduo policial. Agir ou não agir? Como agir? Apesar de inseridos numa organização, que se preocupou em níveis crescentes com a formação e o controlo do trabalho policial , os polícias tinham um amplo poder individual para decidirem eles próprios. A imagem socialmente construída do polícia como juiz de rua tinha uma reprodução real nas práticas policiais (cf. Revista Polícia Portuguesa nº 6 Março / Abril de 1938).

Até há bem pouco tempo a polícia de Lisboa era um receptáculo de indivíduos que migravam do campo para a cidade (Vaz, 2004). A polícia representava um emprego que, apesar dos baixos salários, era relativamente seguro. Desta forma, os indivíduos fixaram-se por longos anos na polícia, tomando-a como um emprego para a vida. Se a isto somarmos o facto de se favorecer, dentro da organização policial, uma certa estabilidade nos lugares ocupados por cada polícia, podemos concluir que era relativamente comum o mesmo polícia policiar durante anos o mesmo conjunto de ruas. À streetcorner society (White, 1969) o Estado respondeu com o streetcorner politician (Muir, 1977). Como resultado do poder discricionário detido pelo polícia, a imagem pública oscilou entre extremos. Entre o polícia que “quando não namora medita, e quando não medita namora” , e o hábil Antunes:

“Um solitário bípede representando uma instituição, [que] corre, busca, vigia, oculta-se, espiona, captura, repreende, admoesta, ameaça, condena; ele é a ordem, é a força, é a lei, a justiça, o direito. Interroga, inquire, investiga: pergunta a este porque motivo está parado, àquele qual a razão secreta que o determina a passear, corre atrás de um que se lhe torna suspeito por tomar um cabriolé à hora, regressa perseguindo regressa perseguindo outro que subiu à imperial de um ónibus; manda Pulquéria para o Aljube [estabelecimento prisional em Lisboa]; aprisiona Pedro no Governo Civil [local onde se situava o Comissariado Geral da Polícia e onde ficavam os presos]; sepulta Paulo na esquadra policial, e vai continuando sempre a correr e a suar atrás do resto da sociedade que Antunes odeia porque ela anda à solta. Uma vez por mês Antunes descansa dois minutos – um minuto para ler a portaria de louvor que lhe é dirigida, outro minuto para cortar os calos – e recomeça com novo brio.” (488-489). 

Estamos então perante um tipo de organização que privilegiava a proximidade com os citadinos, através de uma organização por escalas que chegava até ao que era considerado o território mínimo, a rua. Era idéia dominante entre chefias policiais que apenas uma presença visível e constante permitiria uma actuação de facto eficaz. A territorialidade como um dos eixos estruturantes da polícia concretizava-se numa ocupação do espaço em que escalas da organização iam sendo responsabilizadas por unidades territoriais progressivamente menores. A rua e o polícia em patrulha eram a unidade mínima ou, se preferirmos, a unidade base na organização da acção policial.

Compreender a relação da polícia com a rua passa então, em primeiro lugar, por identificar o seu duplo sentido. Por um lado, a rua é o objecto da acção policial. Como referia o Comissário Geral da Polícia Cívica de Lisboa em 1914, uma das principais missões da polícia era “desembaraçar o leito das ruas”. Num segundo sentido, a rua deve ser entendida como parte da própria organização policial. Assim, a íntima relação entre polícia e rua era substanciada na principal prática policial – a patrulha – constituindo-se então esta relação numa estratégia de proximidade administrativa, que permitia prevenir e actuar em situações de emergência.
Se aos engenheiros e aos médicos cabia encontrar soluções e construir espaços que promovessem a boa circulação, aos polícias competia, em interacção com os citadinos, tornar efectiva uma circulação eficaz. Os polícias tinham de promover uma relação pacífica entre os diversos actores em circulação. A urbanização fez com que mais gente vivesse em cidades tendo estas, consequentemente, aumentado em tamanho. Mas tratou-se também de um aumento dos movimentos de circulação. Mais gente, mais móvel. Assim, os meios de transporte aumentaram em número e em diversidade. Assistiu-se à difusão dos transportes públicos: primeiros os omnibus, depois os tranways e os eléctricos e, finalmente, os autocarros. As carroças, e demais veículos movidos por cavalos, foram progressivamente substituídas pelos automóveis. No meio desta grande variedade de veículos, os pedestres, a quem a nova cidade não concedia privilégios. Ainda habituados a um espaço público urbano onde circulavam livremente, muitos peões pagaram com a vida as consequências de uma cidade em rápida mudança. Se pensarmos, por exemplo, em ruas sem marcas no pavimento ou sinais de trânsito, que no caso de Lisboa só surgiram de forma massiva após a 2ª guerra mundial, percebemos o quão fulcral era a acção policial neste domínio.
A mudança para uma função circulatória das ruas obrigou a polícia a lidar com os outros usos tradicionais da rua. Actividades como o comércio ambulante ou um leque alargado de sociabilidades viram-se progressivamente confinadas a regras que, ou ordenavam a sua utilização do espaço público, ou as remetiam para espaços privados e semipúblicos. Os moços de fretes, os contratadores de bilhetes de teatro e outras pessoas que tinham a rua como ambiente de trabalho, viram-se alvo de intensa regulamentação estatal e controlo policial. Com o avançar das décadas algumas destas actividades viram-se definitivamente condenadas ao desaparecimento ou a mudarem  sua forma de estar na rua. Os moços de fretes passaram a circular em camiões, os vendedores de jornais e os contratadores de bilhetes instalaram-se em quiosques colocados pelo município. Festas e comemorações como, por exemplo o Carnaval, foram alvo de um intenso controlo que eventualmente ditou o seu desaparecimento das ruas da cidade.

Conclusão

A rua é ainda um objecto incerto para todas as ciências sociais. De facto, parece não existir uma perspectiva teórica e metodológica consensual, capaz de englobar e sistematizar a multiplicidade de sentidos que a rua assume consoante o contexto em que o trabalho se insere. Quando abordamos a rua como objecto de estudo uma das principais dificuldades é encontrar um fio condutor onde possamos sistematizar a rua como território, evitando assim os problemas associados aos múltiplos sentidos que “rua” pode tomar.

A mudança ocorrida na rua e no seu estatuto enquanto espaço público é de certa forma paradoxal. A uma afirmação da rua enquanto espaço de todos, corresponde, simultaneamente, um processo que a declara como espaço de ninguém em particular. Duas idéias convêm aqui reter como a súmula desta mudança no conceito de rua. Por um lado, o lado do Estado, a crescente acção administrativa tinha de obedecer ao respeito pela liberdade individual. A acção do aparelho de Estado contemporâneo não pode ser dissociada do ideal liberal das garantias individuais e da protecção e respeito da propriedade, que o Estado devia respeitar e promover. Por outro, este processo ocorreu num espectro social abrangente de uma cultura da mobilidade como traço distintivo de modernidade urbana. É na confluência destas duas idéias que se definirá a acção do Estado no que respeita ao traço e aos usos da rua.

A mudança na funcionalidade oficial das ruas – de uma ampla variedade de actividades para uma quase exclusiva função circulatória – acontece a partir do século XIX. Neste processo o Estado assume um papel fundamental. Mas o Estado não era, e não é, um bloco uno e sólido. Ao invés, incorpora diferentes serviços que actuam segundo abordagens também elas diversas. O poder dos engenheiros e dos médicos sustentou-se num saber técnico consolidado ao longo as décadas. Pelo contrário, o poder dos polícias sustentou-se num tipo de organização específico que aproximava o Estado das rotinas quotidianas dos habitantes da cidade. Mas mais do que um poder impositivo, o poder policial, neste contexto de transformação dos usos da rua, deve ser entendido como um poder negociado – uma negociação quotidiana da ordem. Se tanto engenheiros como médicos actuavam numa vertente de planificação, em que a execução não contemplava, normalmente, uma interacção directa com os habitantes da cidade. Os polícias, pelo contrário, baseavam a sua actuação na interacção quotidiana com os citadinos, quer nas ruas, quando da patrulha, quer, de forma crescente, nas esquadras quando solicitados pelos próprios cidadãos.

Em relação à polícia tento explorar a hipótese de o mandato policial não ser exclusivamente uma determinação política e organizacional. Tratando-se antes de um jogo de poder e negociação, onde estes dois planos têm uma importância fulcral, mas em que as condições económicas, sociais e geográficas são também factores determinantes. Neste contexto, argumentei que o significado de “segurança pública” remetia mais para a regulação de comportamentos sociais no espaço público urbano, do que obrigatoriamente para comportamentos criminais. 

O desafio parece residir, agora, no descortinar das cartografias de cada cidade. Isto é: se parece correcto afirmar que as ruas se padronizaram num modelo de circulação, isso não significa que todas as ruas da cidade tenham seguido este modelo. Entre o rebuliço do centro da cidade e os calmos bairros habitacionais, persistiram, de forma inteiramente legal ou informalmente consentida pelas autoridades, usos da rua que não se encaixaram na função circulatória da rua.
Notas

  O projecto se intitulava “A Cidade e a Rua: uma aproximação etnográfica à vida urbana” e foi coordenado pela Prof. Doutora Graça Índias Cordeiro, com financiamento da Fundação Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior [CIES/FCT POCI/ANT/57506/2004] 
  Lei de 31 de Dezembro de 1864, Diário de Lisboa nº 10, 13 de Janeiro de 1865. Esta lei, da responsabilidade do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, estava incluída num extenso programa legislativo relativo aos diferentes meios de comunicação. O ministro, João Crisóstomo de Abreu e Sousa, era “o paradigma da figura do engenheiro civil que emerge na segunda metade do século XIX, que percepciona e dá a ver a sua profissão numa dimensão de intervenção activa na sociedade: o engenheiro tem um papel social, na medida em que a sua acção é insubstituível no desenvolvimento das estruturas materiais associadas ao progresso e ao bem-estar, e “objectualiza-se” como promotor da modernidade” (Diogo, Matos, 2004). 
  Em Lisboa, assim como no resto do país, ainda existem hoje diversas ruas com a designação de “Direita”. Para o caso do Brasil, Orlando Ribeiro dá-nos os exemplos da, hoje, Rua do Chile em Salvador e da Rua 7 de Setembro no Rio de Janeiro. 
  A principal associação de automobilistas, o Automóvel Clube de Portugal, foi por longos períodos presidida por engenheiros. Esta associação fez ao longo dos anos inúmeras campanhas de pressão política para que aumentassem as condições de supremacia dos automobilistas nas ruas de Lisboa. 
  As prostitutas legalmente registadas passavam a ser designadas por “toleradas”. 
  Sobre a polícia inglesa ver Emsley (1996) e Steedman (1984); na restante Europa, o exemplo alemão foi abordado em Spencer (1992), o francês em Berliere (1999). O caso norte-americano encontra-se magnificamente sintetizado, num dos clássicos dos estudos policiais, em Monkkonen (1981). Para o Brasil consultei os trabalhos de Marcos Luiz Bretas (1995; 1997). 
   Regulamento Geral e Disciplinar do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, art. 27º – Abril de 1894.
  Não posso, por razões de espaço mas também porque não se enquadra nos objectivos deste artigo, aprofundar a análise destas dinâmicas internas da organização policial. Remeto para a minha tese de mestrado, onde este assunto se encontra desenvolvido. Cf. Gonçalves (2007). 
  Sobre a definição de tipos de policiamento consoante as zonas da cidade, analisando o exemplo do controlo da mendicidade em Lisboa cf. Gonçalves, 2007. 
  Na minha tese de mestrado analiso dois tipos de controlo do trabalho policial: a tecnologia e a burocracia. (Cf. Gonçalves, 2007) 
  É muito difícil documentar empiricamente esta situação, apesar de ter sido uma imagem muito difundida pelas chefias policiais. Na minha pesquisa consultei as ordens de serviço diárias e posso afirmar que em determinados períodos esta situação ocorreu de facto. Christopher Thale (2004, 2007) chegou, com uma comprovação empírica sólida, a uma conclusão semelhante para o caso da polícia de Nova Iorque. 
  QUEIROZ, Eça de, ORTIGÃO, Ramalho, As Farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes, Estoril: Principia, 2004 [1872], pág. 365 
  Obviamente os regimes autoritários que tanto Portugal como o Brasil viveram não respeitaram estes direitos. Mas estes são ideais que, ao longo dos últimos dois séculos, se consolidaram socialmente, conseguindo vencer os regimes políticos autoritários

 

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