Fraya Frehse
Da noite do dia 10 até a noite do dia 12 de junho, Lisboa foi ponto de encontro de virtualmente todas as cidades do mundo. Ocorreu ali nesse período a First International Conference of Young Urban Researchers, organizada por pesquisadores do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia (CIES) do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) sob a coordenação da antropóloga Graça Índias Cordeiro. 

 

Concebido no intuito de, conforme anuncia a página principal do sítio eletrônico da Conference , “criar um espaço de reflexão interdisciplinar” e de “debate internacional” sobre as cidades a partir da difusão de pesquisas recentes, de autoria de “jovens investigadores em estudos urbanos” – em especial pós-graduandos, mas também profissionais envolvidos em atividades de intervenção e de docência -, o evento congregou estudos sobre as mais diversas urbes do mundo. São cidades maiores ou menores em termos demográficos, mais ou menos importantes em termos econômicos e políticos em seus países, de história mais ou menos antiga, no presente e no passado. Uma brochura que, contendo os resumos dos 168 trabalhos aprovados para apresentação, foi distribuída entre os participantes da reunião científica, é uma evidência cabal e sintética de que Lisboa virou “sede” não apenas de investigações sobre si mesma, sobre a sua região metropolitana e outras cidades portuguesas como o Porto, Vila Nova de Gaia, Almada, Seixal, Braga e a açoriana e insular Ponta Delgada. “Abrigou” naqueles dias também cidades ibéricas como Madri, Barcelona, Valência, Salamanca, Palma, Bilbao, Guadalajara e a inventada Ciudad Valdeluz; as francesas Paris, Bordéus e Toulouse; as italianas Palermo, Gênova, Turim e a região do Vêneto; a alemã Berlim e a polonesa Gdansk, em meio a outras urbes desse país, afora o noroeste europeu – belga, holandês e finlandês. A Europa Central fez-se presente através da croata Zagreb, da região do Kosovo, da grega Tessalonica. Curiosamente, uma vez apenas apareceu Londres, a primeira grande metrópole industrial moderna… Fez par com Manchester, quando o assunto foi a Inglaterra. E, como não só de cidades européias é feito o mundo atual, houve espaço ainda para outros continentes. As complexas fronteiras entre a Europa e o Oriente Médio asseguraram o seu espaço no debate através de estudos sobre as turcas Istambul e Ancara. O Oriente Médio como tal se fez tematizar através das iranianas Teerã, Isfahã e Yazd. As Américas ali estiveram representadas principalmente por meio das capitais brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Cuiabá, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Belém, Fortaleza, Recife, Salvador. Porém, houve quem trouxesse reflexões sobre Buenos Aires, sobre Santiago, Calama e, mais perto do Equador, sobre Manila e a Cidade do México, enquanto os Estados Unidos se deixaram problematizar por meio de Los Angeles, Boston, do estado de Nova Jersey e da região da Nova Inglaterra. E não faltaram cidades africanas como Maputo, por exemplo. A Ásia, enfim, “compareceu” por meio das indianas Nova Delhi e Bangalore, da tailandesa Bangcoc, além das chinesas Kunshan e Hong Kong. 
Se nem todos os autores dos trabalhos inscritos puderam, por razões variadas, comparecer e participar concretamente do evento, o cosmopolitismo foi de fato a tônica daqueles dias. E isso, não somente porque foram tantas as cidades “atraídas” ao carinhosamente apelidado “FICYURB”, uma iniciativa que pode ser considerada pioneira no cenário acadêmico internacional, ao fornecer a pesquisadores urbanos iniciantes uma oportunidade ímpar de interlocução internacional com profissionais já bem mais experientes, e provindos das mais diversas áreas de pesquisa referidas à temática urbana. A competente organização da reunião científica contribuiu de maneira significativa para esse caráter cosmopolita do evento por meio dos tipos de atividade que propôs aos participantes em cada um dos dias. 
Na noite do dia 10, ainda antes da abertura oficial do evento, estipulada para a manhã do dia subseqüente, ocorreram, no Centro Cultural Malaposta, situado na região metropolitana de Lisboa, a exibição e o debate de dois interessantes documentários sobre a vida social e cultural da capital portuguesa do presente: “Lisboetas” (2004), de Sérgio Tréfaut, e “Gosto de ti como és” (2005), de Sílvia Firmino. Dada a quantidade de semelhanças, mas também de diferenças entre os contextos narrados e retratados e as cidades das quais provinham os participantes da Conference, a atividade teve o efeito instantâneo de instigar os espectadores a comparações elucidativas entre variados contextos urbanos. Lisboa assumia assim, no plano discursivo, o papel que os organizadores do FICYURB tinham lhe assegurado fisicamente, ao viabilizarem acadêmica, institucional e financeiramente a realização do evento ali: o papel de contraponto empírico referencial para um aprofundamento verdadeiramente cosmopolita acerca da reflexão interdisciplinar e internacional sobre as potencialidades e dilemas sociais, culturais, políticos e econômicos da vida nas cidades do mundo atual. 
Também no que se refere às atividades estritamente acadêmicas do programa, o cosmopolitismo as impregnou do começo ao fim. As conferências de abertura e de encerramento ficaram sob a responsabilidade de cientistas sociais provindos de continentes diferentes, um antropólogo e uma socióloga, que, tendo como principais cenários empíricos de referência respectivamente São Paulo e Rabat, demonstraram, cada um à sua maneira, como a antropologia e a sociologia podem contribuir para o enfrentamento da complexidade urbana do presente. Em “No meio da trama: a antropologia urbana e os desafios da cidade contemporânea”, proferida na manhã do dia 11, José Guilherme Magnani (Universidade de São Paulo) lançou mão de exemplos empíricos esclarecedores para ilustrar o seu argumento de que a etnografia é não apenas uma técnica, mas simultaneamente uma “atitude de estranhamento da realidade urbana” e uma “forma de interpretar essa mesma realidade”. Uma vez que não somente explicitou a um público tão diversificado – de cientistas sociais, arquitetos, urbanistas, historiadores – o que é etnografia, mas atestou de maneira muito vívida a importância metodológica e teórica do olhar etnográfico, o antropólogo forneceu um parâmetro conceitual que acabou por orientar de modo profícuo boa parte das discussões havidas nos panels em que os temas eram práticas sociais e culturais no espaço urbano. Já Françoise Navez-Bouchanine enfrentou, na conferência de encerramento, no início da noite do dia 12, uma questão bem diversa que perpassa o debate sobre as cidades da atualidade: “Savoirs sociaux et politiques urbaines. Quelles évolutions?”. Utilizando complexos organogramas que problematizavam justamente as relações entre o conhecimento produzido na academia e as políticas urbanas efetivamente implantadas na Europa atual, a contribuição da socióloga acabou por contemplar uma segunda vertente de panels que figuravam na programação e cujas temáticas centrais eram movimentos sociais e políticas urbanas. 

 

Se as conferências tiveram o papel de lançar balizas metodológicas e teóricas que se fizeram presentes também, em modalidades diversas, nas 39 sessões de apresentação realizadas durante a manhã e a tarde dos dias 11 e 12, o cosmopolitismo subjacente ao evento como um todo assumiu, através dos panels, a sua mais explícita forma de expressão. Respectivamente com duração de uma hora e meia, ocorreram seis sessões em torno da temática “ “Politics, power and negotiating processes”; três sessões em torno de “Social movements: cultural practices and contexts”; sete a respeito de “Politics, practices and urban identities”; cinco sobre “Built spaces, conflict and social inequalities in the enlarged city”; outras cinco acerca de “Urban territories’ planning, design and uses of urban space”; novamente cinco em relação à temática “Movement, flows and uses of public space”; duas a respeito de “Work, territories and organizations – restructuration and life styles”; mais cinco referidas a “Dispersion/concentration: urban socialization in the splintered city”; enfim, uma ligada a “World-city/cities in the world? Competition and hierarchy, differentiation and fragmentation”. Justamente o fato de as temáticas de cada sessão serem bem específicas, frutos de uma seleção prévia precisa dos organizadores, fez da maioria das mesas foros de discussão privilegiados a respeito do quanto variam e se assemelham historicamente os processos de urbanização nos quatro cantos do mundo desde o advento da modernidade. Espectadores e expositores foram levados de maneira instantânea a alargar os seus horizontes de compreensão a respeito de suas próprias cidades de referência, ao serem confrontados com a evidência de que, em contextos urbanos absolutamente distintos do planeta, tudo poderia ser tão parecido e, ao mesmo tempo, tão diferente. 
Ficaram explícitas inquietações comuns, por um lado, em relação às políticas públicas de promoção urbanística e social da concepção de circulação nas mais diversas cidades do mundo (sobretudo ocidental), a partir em particular do século XIX; por outro lado, preocupações em relação aos efeitos socioespaciais da consolidação do espaço urbano como capital passível de valorização sempre, nos atuais tempos de globalização. Os porta-vozes de tais reflexões eram, boa parte das vezes, estudantes e profissionais das ciências sociais, principalmente sociólogos e antropólogos, mas também historiadores; porém, é digna de nota a presença, ainda, de profissionais da arquitetura e do urbanismo. 
Se, de maneira geral, as abordagens apresentadas nem sempre conseguiram se furtar a ideologizações de cunho político que exerceram um efeito empobrecedor sobre o conhecimento a ser transmitido e debatido, há que se ressaltar que mesmo essas perspectivas tiveram um papel importante, na Conference. Colaboraram lado a lado com as diversas outras para fazer do evento uma materialização concreta da absoluta pertinência do jargão de que a cidade é, acima de tudo, um “objeto interdisciplinar”. Compreendê-la em toda a sua complexidade não se faz sem dialogar teórica e metodologicamente com os muitos profissionais que sobre ela se debruçam. 
Objeto interdisciplinar, mas também objeto internacional. Se tantas foram as cidades que encontraram abrigo em Lisboa naqueles dias, isso se deveu também ao fato de que as línguas oficiais do congresso foram várias: além do português e do inglês, o castelhano e o francês. Não obstante, houve espaço para outras línguas ainda, virtualmente todas: os organizadores reiteraram em diversas ocasiões que os participantes estavam convidados a se expressar na(s) língua(s) de sua preferência; tudo para garantir a comunicação – também aqui, sinal evidente de cosmopolitismo. 

É pena apenas que o tempo para tanta pluralidade tenha sido restrito. Não somente porque dois dias e uma noite passam por demais rapidamente. Com duração respectiva de uma hora e meia, cada uma das sessões, coordenadas por um dos organizadores do evento ou por acadêmicos convidados, acabava sendo efetivamente muito curta para que as discussões suscitadas pelas apresentações se aprofundassem. Sobretudo quando eram seis os expositores, o que em boa parte das vezes foi o caso. 

De toda forma, tal desencontro permanece menor frente à multiplicidade de encontros que o evento como um todo proporcionou àqueles que dele participaram. De resto, o seu objetivo era, conforme anuncia o sítio eletrônico, constituir um “espaço de disseminação das recentes investigações provenientes das mais variadas áreas das ciências sociais sobre contextos urbanos”, além de “promover a constituição de redes interdisciplinares” (grifos meus). Pelo que pude perceber, como participante e expositora, o que não faltou, em Lisboa entre 10 e 12 de junho, foram oportunidades para a realização desses dois objetivos. E isso, talvez sobretudo porque o FICYURB transformou aquela cidade – relativamente pequena para padrões brasileiros, somando três milhões de habitantes apenas se nela se engloba a sua região metropolitana – em uma imensa metrópole, em termos intelectuais e acadêmicos. Mais do que intensas, foram tocantes as iniciativas de que o ISCTE lançou mão naqueles dias para fazer de Lisboa um cenário ímpar para a estimulante convivência entre teorias, métodos, interpretações absolutamente diversificadas sobre o mundo urbano forjado historicamente com a modernidade. 

E quando tudo terminou, foi a vez de sair às ruas e envolver-se de corpo e alma – por que não etnografar? – nas chamadas “marchas populares”, celebrações que mobilizam intensamente Lisboa na véspera do dia da morte de “Santo António”, o nosso “Santo Antônio”, 13 de junho. As datas de realização do FICYURB foram escolhidas pela organização tendo em vista que a reunião científica se encerrasse imediatamente antes de terem início essas festividades urbanas de forte cunho popular. Foi possível assim aos participantes deixarmos a metrópole cosmopolita e, no instante seguinte, depararmos com a cidade pequena, virtualmente a aldeia, que essa mesma metrópole também abriga. 

Estranhamento, diversão, muitas descobertas. Mas essa já é uma outra história – urbana.

Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora associada do Núcleo de Antropologia Urbana da mesma Universidade