Pelo espelho retrovisor: motoboys em trânsito

Augusto Stiel Neto
João Mutaf
Silvia Avlasevicius
Curso de Ciências Sociais da USP
 
projeto que deu origem ao presente trabalho tinha como objetivo estudar os motoboys enquanto categoria relativamente nova na cidade de São Paulo, e sua relação com esse contexto. Sua condição particular de trabalho abre mais uma possibilidade de compreensão das relações sociais na metrópole. Por poderem ser considerados típicos representantes das novas relações de trabalho capitalistas, cuja palavra de ordem é a desregulamentação, eles poderiam servir como paradigma para compreender esta nossa velha conhecida, a crônica desigualdade de renda cujos reflexos se fazem sentir em dois tempos distintos, ou, se preferirem, em uma via de mão dupla: primeiro num sem-número de formas de exclusão, conforme o conhecimento já disponível sobre excedentes de mão-de-obra que o sistema incessantemente vai gerando; a seguir, em formas de inclusão, porque o processo econômico capitalista é assim mesmo: não pára de fazer surgir novas necessidades (que geram novos postos, embora nunca suficientes para todos);como, por exemplo, a de superar o trânsito caótico de megalópoles como São Paulo, para que produtos, papéis, documentos e valores cheguem ao destino «a tempo». O capitalismo tem pressa e a desigualdade limita caminhos, e definindo espaços e atitudes. É aí que entram os motoboys: «incluídos» graças à constante necessidade do real time, do in time, do on line, etc., contra o gigantismo desordenado das grandes cidades. Não há tempo a perder; «tempo é dinheiro!». E assim vai-se movimentando o tecido social da maior e mais rica metrópole do país.

orteados por essa visão da problemática socioeconômica de uma cidade como a capital paulista, focalizamos nosso tema no quadro dos grupos urbanos, procurando lançar um olhar antropológico sobre a categoria dos motoboys e sua relação com a cidade. Seus códigos, símbolos e meios específicos mereciam ser estudados, pois poderiam revelar, pela análise de seu discurso, aspectos da «teia de significados» da cidade. Mais que um trabalhador cujo local de trabalho são as ruas e avenidas de São Paulo, o motociclista profissional estabeleceu determinadas formas de convívio entre si e com a cidade. Seus códigos específicos, gestos, vestimenta, sinais e posturas são os indícios de uma identidade própria? As condições extremamente perigosas para a execução de seu trabalho contribuem para uma solidariedade especial? Será que este novo grupo urbano constitui o que os termos atuais da cidade definem como  «tribo»? Ou vigora entre eles o «cada um por si»? 

estudo dessa categoria de trabalhadores urbanos poderia revelar também, a partir do que fosse constatado a respeito de seu comportamento, aspectos insólitos que nos permitiriam vê-los não apenas como vítimas de relações de trabalho modernas, mas também como elementos ativos, conscientemente ou não, diante das desumanas circunstâncias do mercado. Em outras palavras, vislumbrávamos a possibilidade de que, no seu próprio agir, os motoboys, forçados a tomar atitudes,  talvez fossem eles mesmos os responsáveis por alguns de seus problemas, uma vez que estão submetidos a uma brutal carga de pressão, o que, como se sabe, tem o poder de nos fazer agir não apenas de acordo com os princípios básicos da «racionalidade» característica da sociedade capitalista mas também guiados por impulsos quase sempre inconscientes e reativos à provocação do meio. Cabia investigar.

ão raros os estudos a respeito deste assunto. É mais fácil encontrar referências aos motoboys em jornais, revistas, rádios e TV, que nos trabalhos acadêmicos, pois, como se trata de tema atual e que afeta a todos que usam a cidade, há muitas reportagens sobre eles – às vezes porque vitimados pelo trânsito, às vezes nas páginas policiais. A falta de estudos sobre o tema estimula o preconceito de lado a lado, fato reconhecido pela própria Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, que ministra constantemente cursos de atualização e educação no trânsito, com pouco sucesso. Sentíamos que era necessário lançar um outro olhar para tudo isto. O saber comum pensa a cidade como um aglomerado caótico em detrimento de um olhar «de perto e de dentro» que descortina as relações intrincadas que dão sentido ao microcosmo da metrópole. Também o motociclista profissional carece de estudo semelhante, que desvende suas características íntimas enquanto categoria que interage com a cidade, produto e produtora de significados que enriquecem a megalópole.

or isso o estudo do motociclista profissional como uma categoria social da metrópole, seus modos, atitudes, simbologia, etc. Sua movimentação pelo espaço urbano aparecia-nos como sinalização de uma determinada postura para com a cidade e suas relações, postura esta que poderia elucidar aspectos maiores da sociedade paulistana, normalmente camuflados,  cujos padrões poderiam revelar atitudes culturais. O aparecimento de uma nova categoria oferece uma oportunidade única para o estudo da criação e desenvolvimento de uma simbologia própria dentro da cultura da cidade. E um tal estudo poderá ir preparando o caminho para a compreensão dos desdobramentos que a atividade dos motoboys certamente acarretará sobre as relações sociais na metrópole.

 

QUADRO DE REFERÊNCIAS.

Quadro Teórico.

estudo na cidade privilegia seus atores sociais tornando-os objetos de interesse do antropólogo na medida em que revelam seu comportamento e sua «ação simbólica», que fornecerá material para o estudo do contexto cultural amplo da cidade e sua «teia» de relações.

presente trabalho pretende orientar-se tomando por base a antropologia interpretativa, mais especificamente o trabalho de Clifford Geertz. Ao defender que os significados se dão dentro das sociedades em seus contextos específicos, Geertz usa a empiria como forma de interpretação dos signos sociais, desvendando assim relações que ficariam encobertas se pinçadas para fora de seus contextos. O tipo de estudos a que nos propomos, caracterizados por um «olhar de perto e de dentro» nas sociedades «complexas», permite a interpretação da simbologia dos grupos que nela interagem, revelando um conjunto de significados e significantes que ordenam o modo como a sociedade encara a si mesma e o mundo que a rodeia (Magnani, 19??).

  <>ncarando a cultura e seu significado como públicos, a antropologia interpretativa pretende compreender o que tal sistema cultural representa  usando as categorias particulares a ele. O exercício intelectual de se observar o «microscópico» e dele retirar material para alimentar o conhecimento das ciências humanas, a nosso ver, estimula o trabalho dentro das sociedades complexas enquanto possibilita o estudo de grupos e facetas da cidade. A interpretação que vai do «todo à parte e da parte ao todo» situa o contexto em que se insere o objeto e, em nosso caso, permite uma melhor compreensão do grupo de motociclistas profissionais  e da cidade, a partir  do modo como estes interagem dentro da noção maior de cultura como um «contexto, algo como eles [os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos] podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade
s motoboys, enquanto grupo e atores sociais, estão inseridos nas relações de trabalho capitalistas e, portanto, imbuídos de história -das relações sociais e de sua evolução enquanto categoria. É importante, portanto, que dentro do quadro teórico de referência do presente trabalho façam parte as correntes antropológicas que lidam com os momentos históricos e sua importância no estudo das sociedades. Para tanto, usaremos também o trabalho de Marshall Sahlins (data) que se preocupa com os eventos, as interações que acontecem entre os atores sociais e sua mútua influência na corrente da constante dinâmica das sociedades e com os aspectos simbólicos da cultura pretensamente utilitarista. 

uitas das referências históricas da cidade quanto às relações de trabalho podem ser compreendidas à luz das categorias  marxistas que acreditamos poder utilizar com proveito na medida em que tomarmos por pressuposto que, mais que fruto de relações de trabalho que determinam relações sociais, os indivíduos atuam efetivamente na sociedade e mais, dentro de âmbitos simbólicos. Não se trata portanto de descartar tais  categorias, mas ,como fez Max Weber, principalmente na «Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo», de reabordá-las, salientando o indivíduo, os grupos e suas motivações simbólicas como também relevantes para o entendimento da cultura e do universo social. Como salienta o próprio Geertz: «a Segunda lei da termodinâmica ou princípio da seleção natural, a noção de motivação inconsciente ou a organização dos meios de produção não explicam tudo, nem mesmo tudo que é humano, mas ainda assim explicam alguma coisa.» Sobre a questão metodológica do estudo de sociedades «complexas» utilizaremos o trabalho de Nestor Perlongher (data) e de Gilberto Velho (data) como fontes de informação e possíveis esclarecimentos.

omo entendemos o motoboy como parte integrante das relações sociais historicamente definidas, recorreremos ao trabalho de Max Weber, (data), Henri Lefebvre, (data), Pierre Bourdieu (data) e Michel Maffesoli (data). Do primeiro utilizaremos além do conceito de cultura já explicitado no trabalho de C. Geertz, o enfoque no aspecto simbólico e na prática do indivíduo como agente da ação social. De Henri Lefebvre usaremos suas concepções sobre o espaço urbano e seus desdobramentos na sociedade. Aceitando o enfoque marxista do autor, acreditamos ser importante para o presente estudo a discussão sobre poder e espaço na cidade. De Pierre Bourdieu pretendemos utilizar o estudo sobre o poder simbólico como auxiliar na concepção interpretativa da qual pretendemos nos valer. De Michel Maffesoli utilizaremos as noções de tribos – os grupos em cuja identificação o indivíduo da sociedade contemporânea encontra sua «lógica da identidade» na emoção compartilhada e no sentimento coletivo onde o ambiente tem a função de criar um ethos e um «corpo coletivo».

ompreender a cidade de São Paulo é essencial para podermos localizar o motoboy em seu contexto, pois se trata da maior e mais rica metrópole do país, paradigma de particulares situações sociais brasileiras como a desigualdade de renda, que gera exclusão e formas de inclusão que movimentam seu tecido social do qual fazem parte os motoboys. Tal desigualdade limita caminhos possíveis a seus atores sociais e define espaços e atitudes que podem assim ser melhor compreendidas. Para tanto pretendemos utilizar trabalhos específicos sobre a cidade de São Paulo, seja no que concerne à história das relações de trabalho seja nas que estudam as relações sociais específicas da cidade. Para tanto, utilizaremos trabalhos de Teres Caldeira (data), Lúcio Kowarick (data), Lucia Machado Bogus (data) e Raquel Rolnik (data), todos relacionados aos problemas da cidade, sua história e as relações sociais ali presentes. 

 respeito da criação, reforço e uso do imaginário social, que pode avigorar a realidade cotidiana dos atores sociais através de um «discurso do real», pretendemos usar o trabalho de Michael Taussig sobre Xamanismo e Colonialismo (data). Apesar de um estudo centrado na relação colonial e seus desdobramentos na Colômbia, acreditamos que a investigação do discurso simbólico pode revelar o livre uso de categorias «mitológicas» que norteiam as ações cotidianas sem que os atores delas suspeitem.

 

Procedimentos Metodológicos.

ara a realização deste estudo percorremos inicialmente a  documentação existente na imprensa sobre os motociclistas profissionais. Muito se tem falado neles e a leitura de artigos de revistas e jornais, bem como vídeos, pode fornecer pistas de como o motoboy entra no imaginário social, qual o seu papel no discurso do cotidiano dentro da mídia.

ada a escassa quantidade de trabalhos acadêmicos específicos sobre o assunto, cercamos o tema com trabalhos sobre as relações de trabalho na cidade. Para tanto usamos trabalhos listados na bibliografia nas áreas de antropologia, sociologia, psicologia e urbanismo, todos voltados para as características das cidades e interesses ao presente estudo.

 

 estratégia usada foi a ida a campo para a realização de entrevistas como motociclistas, com proprietários das empresas de motoboys e com autoridades da área do trânsito para estabelecer um diálogo entre partes envolvidas na rotina da categoria e assim colhermos material para interpretação, que junto à bibliografia pertinente pudesse elucidar relações estabelecidas entre os motoboys enquanto grupo e destes com seu contexto imediato, a cidade.

 

ais entrevistas basearam-se em um roteiro pré-estabelecido de questões e forneceram uma base inicial, dando condições para que, a partir daí, o discurso do entrevistado fluísse o mais naturalmente possível, revelando sob a perspectiva de cada um suas concepções e vocabulários próprios para poder então, nas palavras de C. Geertz: 

«descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos dos nossos sujeitos, o «dito» no discurso social, e construir um sistema de análise em cujo os termos o que é genérico a essas estruturas, o que pertence a elas porque são o que são, se destacam contra outros determinantes do comportamento humano«.

uanto à estratégia proposta, a ida a campo para colheita de entrevistas, foi efetivamente seguida, embora, durante o percurso, surgissem algumas dificuldades. A maior delas e que realmente poderia interferir nos resultados da pesquisa foi que o objeto estudado, o motoboy, é por definição, dinâmico e tem como característica a pressa. E estando eles sempre apressados, não nos davam oportunidade de aprofundar no diálogo e às vezes, nem chegavam ao final da entrevista, visto que a sua habilidade profissional é avaliada, muitas vezes, pela rapidez com que fazem as entregas. 

 agilidade que torna a atividade do motoboy tão essencial para a metrópole, acabou por se tornar um obstáculo para sua perfeita observação. 

utro fator que apareceu como dificuldade na realização das entrevistas foi a desconfiança com que nós, os entrevistadores, éramos recebidos. Os motoboys, se intimidavam com nossa presença, mostravam-se ressabiados com as nossas perguntas, davam desculpas de que tinham pressa e não poderiam parar de trabalhar para nos atender. É certo que nós, os entrevistadores, estávamos interferindo no bom andamento do trabalho deles que, como já foi dito, tem a presa como fator determinante. Mas vale a pena ressaltar que a maioria dos motoboys trabalham em situação irregular, sem documentação própria de prestadores de serviços, sem comprovação legal alguma, consideram-se «autônomos», porém não no sentido de estarem regularizados perante órgãos competentes, apenas trabalham informalmente e, por isso, temiam que nós, os entrevistadores, fossemos algum tipo de fiscal da prefeitura ou estado. 

encida esta barreira, somente a pressa do entrevistado causou algum tipo de dificuldade na realização das entrevistas. 

 

uanto ao rumo proposto e o rumo efetivamente seguido houve uma pequena variação, o rumo do projeto apontava o estudo de uma «tribo», com características, modos e hábitos próprios, mas inesperadamente, a ida a campo mostrou, que embora aparentemente sejam julgados como «tribo» pela sociedade, os motoboys se revelaram independentes, com pouquíssimas relações interpessoais, dificultando a averiguação das relações de caráter antropológico erroneamente pré-concebidas e, notadamente, inexistente entre eles. 

entro das limitações de tempo para a realização deste trabalho, conseguimos realizar as entrevistas propostas no projeto e até algo mais, descobrimos algumas relações dos motoboys com a cidade de caráter singular. 

udemos observar  já fazendo parte do cenário da cidade em algumas esquinas, uma cadeira sob uma árvore ou sob toldos de estabelecimentos comerciais e, em frente, um estacionamento improvisado de motos onde  descobrimos funcionarem «empresas» de entregas rápidas que empregam, às vezes, mais de dez funcionários. É nesta cadeira, às vezes, utilizando um telefone público, que um «agenciador» recebe chamadas  e organiza o trabalho de vários motoboys, fazendo a ponte entre o cliente e o entregador.

ssas «empresas» aparecem em pontos comerciais privilegiados da cidade, como na esquina da Rua Manoel da Nóbrega com Avenida Paulista ou na esquina das ruas Brasília e Joaquim Floriano, no Bairro Itaim Bibi.

ercebemos, também, um sutil, porém significante, «código de trânsito particular» para os motociclistas profissionais que, embora não explicitado, apareceu convencionado entre eles e serve para facilitar o cotidiano desses profissionais no trânsito caótico da cidade, , dificultando, porém, muitas vezes, a ação dos demais motoristas. ATambém observamos a existência de um sutil código de ética e solidariedade entre eles no trânsito, fato esse de que nem os próprios motoboys tinham se apercebido. Tais descobertas serão mais bem explicitadas no relatório que se segue. 

 

DESCRIÇÃO E ANÁLISE

O cenário, os atores.

campo de estudos de nosso trabalho é a cidade de São Paulo na medida em que nos propusemos a estudar o motoboy enquanto categoria profissional e sua interação com a metrópole. Na verdade, o «escritório» do motociclista profissional é o trânsito da cidade, como um entrevistado tão bem relatou. É ali, portanto, que se processa o dia a dia da profissão e onde se dão também as relações de interação com os outros atores sociais.

trânsito em si é matéria para um estudo específico dada sua riqueza de processos e a característica peculiar de ser uma relação social entre espaços individuais dentro de uma «arena» pública. Vários estudos foram feitos sobre o trânsito, principalmente na área de psicologia social, mas para a área de interesse deste projeto optamos por usar uma tese de mestrado do Departamento de Sociologia da USP sobre as «percepções» dos diversos atores que participam do trânsito na cidade. 

la foi de muita utilidade para situar os motoboys no contexto mais amplo de seu local de trabalho e das relações sociais ali produzidas ou reproduzidas.

motociclista profissional – o motoboy – entretanto, é uma categoria particular dentro do universo dos usuários de motos na cidade. 

s motociclistas são aqueles que usam uma motocicleta para transitar pela cidade , como um veículo comum, mas não se utilizam dela para fins profissionais. 

motoqueiro é aquele que tem a motocicleta como um hobby, que a usa de fim-de-semana ou nos horários de folga, como diversão, sem a preocupação de chegar rápido ou de evitar tráfego «cortando» faixas ou subindo em calçadas.

mbas as categorias são diferenciadas dos motoboys. Estes possuem a moto que é seu instrumento de trabalho. São poucos os registrados e que dirigem uma moto da empresa. Por força das características de seu trabalho, especificadas mais detalhadamente adiante, andam quase sempre acima do limite de velocidade, «voando» por entre os corredores de automóveis, desrespeitando as leis e os outros motoristas. Tal comportamento não constitui regra, mas ficou no imaginário da população e acabou por caracterizar toda a categoria à sua revelia, o que ficará claro nas entrevistas que realizamos. Tal imaginário encontrará no espelho projetado pelos motoboys uma forma de solidariedade e identidade que o reforçará, em um jogo circular que é muito característico das relações sociais na cidade grande, onde vários atores diferenciados percorrem e dividem o mesmo espaço, numa tensão permanente de concorrência potencialmente perigosa, como atestam as aterradoras estatísticas das fatalidades na profissão.

ntre motoboys, motoqueiros e motocicletas, portanto, a convivência não é pacífica. Tanto não é que, cientes do preconceito que sofrem por força do imaginário descrito acima, a categoria agora passou a designar-se «profissionais do motofrete», que caracteriza a profissão de forma clara e inequívoca, além de fornecer-lhe um significado específico dentro de uma terminologia formal profissional que afasta o termo «motoboy», que muitas vezes é recusado por eles mesmos pois carregado de significados e significantes que eles rejeitam ou querem evitar.

 convivência conflituosa entre os usuários de motos é ainda pior entre os diferentes atores do trânsito. Quando indagados sobre que categoria que mais «atrapalhava» o trânsito, os motoboys foram quase unânimes em designar «todas». Ou seja, o trânsito gera um tipo característico de situação em que o «outro» é visto como empecilho e um problema. No caso dos motoboys isso fica mais evidente pelo preconceito de que todos foram unânimes em se queixar. Barrados em bancos por não terem atestado médico sobre  um pino que colocaram na perna por força de um acidente acontecido há anos, parados em blitz policiais constantes,  sempre multados por constantes infrações e tratados como marginais pela imensa maioria da população, os motoboys justificam seu comportamento muitas vezes violento como forma de defesa pelo tratamento que recebem. Isso sinaliza para uma hipótese interessante: nas relações sociais citadinas: algumas categorias poderiam dar vazão à violência latente, presente na tensão permanente da disputa territorial na cidade, como uma forma de defesa justificada frente a constantes e reiteradas demonstrações de preconceito. 

a arena permanente do trânsito, onde «cobra come cobra», dentro da própria categoria existem diferenças que serão explicitadas ao longo do presente trabalho e que indicam o estabelecimento de regras de comportamento dentro da profissão que vão muito além da mítica «solidariedade» entre os motoboys. Na consolidação de uma categoria profissional, a construção de modos específicos de atitudes frente à profissão caminha junto com os sinais de identidade grupal, como as gírias, sinais e «cacoetes» específicos que hierarquizam e conformam as «tribos» urbanas. O que este trabalho demonstrará é que a formação de tal identidade ainda sofre problemas devido às características da profissão, principalmente durante os últimos oito anos. A grande concorrência advinda das oportunidades que a categoria abriu na sociedade acabou por desestruturar qualquer tipo de solidariedade mais organizada, como se queixou «Alemão», diretor de um dos sindicatos que representam a categoria e tenta unir os motoboys em torno de um projeto comum. Numa profissão com índices de acidentes e morte elevadíssimos, índice de regulamentação baixíssimo e direitos à assistência praticamente inexistentes, surpreende que a categoria não seja mais unida e sempre se queixe da solidão das ruas e da frieza do ambiente que só é quebrado quando, em caso de acidente, algum companheiro pára  para ajudar, muitas vezes tarde demais.

esmo dentro da categoria, existem diferenças. Há motoboys com mais tempo de profissão, que possuem uma carteira de clientes fixos que sempre os procuram e pagam o preço que estes cobrarem pelo frete, pois existe confiança mútua construída ao longo de anos de trabalho. Possuem moto própria e ganham o suficiente para sustentar sua família. Existem motoboys que trabalham com carteira assinada para alguma empresa grande. Podem ter moto própria ou usarem a da firma, mas a situação estável é vista por muitos como um ideal a ser alcançado. É uma espécie de «elite» da categoria, que apesar de não ganhar tão bem quanto os anteriores, estão mais longe dos fantasmas da informalidade e da insegurança que povoam o mercado de trabalho hoje em dia. Existem também os que trabalham para firmas de motoboys, o que talvez constitua a maioria. Podem ter carteira assinada ou não, dependendo do tamanho e do caráter da empresa, o que varia enormemente. Muitos donos de firmas como essas são ex-motoboys que aproveitaram o crescimento vertiginoso da profissão e abriram seu próprio negócio. Tais empresas vivem às turras com os sindicatos da categoria pois são constantemente acusadas de violarem direitos e abandonarem seus funcionários em caso de acidente, doença ou invalidez. É um negócio ainda em formação. Muitos motoboys montam empresas completamente informais, tanto legal como espacialmente. A demanda gerou uma corrida que agora parece acalmar por força da economia em compasso de espera e da grande concorrência. Os mais novos são vistos com desconfiança e desprezo, primeiro por serem novos concorrentes e, segundo, por se portarem de forma a denegrir a categoria. Discutiremos adiante as implicações e características de tais atitudes entre os motociclistas profissionais.

que ficou claro como fator comum a todos e que, de certa forma, os une enquanto uma categoria abstrata, é a relação com o desemprego. Todos fugiram deste fantasma e encontraram na motocicleta o instrumento necessário para uma oportunidade de inserção. O período de consolidação democrática brasileira dos anos 80 e 90, coincidiu com um período economicamente desfavorável ao país: sucessivos planos econômicos não deram conta de conter uma inflação crônica que corroia o poder aquisitivo da classe média que havia experimentado um período de gradual ascensão na década anterior. Não só a classe média, mas a também a classe baixa, viu-se cada vez mais sem esperanças: todas as conquistas trabalhistas impostas pelo regime varguista começaram a diluir-se com o advento de políticas liberais inspiradas por uma conjuntura internacional que possibilitava ao capitalismo uma ação irrefreada – graças ao fim da bipolaridade mundial – jogando milhares de trabalhadores na economia informal, povoando a cidade de camelôs que para muitos paulistanos eram um incômodo, uma triste visão de pobreza, sujeira e desorganização no que antes era a São Paulo do progresso, do imigrante europeu, das gravatas e luvas dos cinemas no centro. O motoboy que hoje passa a centímetros de nossos automóveis, sobre motos sujas e amassadas, pode ser também a visão incômoda de um tipo de trabalhador vital para o funcionamento de um sistema que sempre operou na ilusão cínica de que certas coisas acontecem como por mágica, de forma absolutamente ascética, pois operada por uma classe de pessoas absolutamente invisível – invisíveis em seus direitos de cidadão.

 

Os «motoboys» e a cidade.

idade de São Paulo, um dia de semana comum. O trânsito nas primeiras horas da manhã já dá sinais de que este vai ser um dia complicado. Em meio aos automóveis, ônibus e caminhões, os motociclistas profissionais já se insinuam ousadamente, gingando para esquerda e direita, com o dedo na buzina acordando os sonolentos motoristas como o antigo apito da fábrica de tecidos de Noel Rosa. 

arregando documentos, valores, correspondências, o motoboy hoje é parte integrante da paisagem urbana e peça necessária da engrenagem econômica que move a cidade. Segundo «Alemão», diretor de um dos sindicatos da categoria dos «motofretes» – que é como os motoboys são oficialmente reconhecidos -, São Paulo não vive mais sem os motoboys. «Seguindo o mesmo padrão de muitas metrópoles ao redor do mundo, São Paulo está sob um processo de terceirização. Na última década [década de 80], a cidade perdeu sua posição de maior pólo industrial do país para outras áreas do estado e para a região metropolitana como um todo, tornando-se basicamente um centro financeiro, comercial e coordenador de atividades produtivas e serviços especializados»   . 

a São Paulo terceirizada de fim de milênio com pretensões e tendências à «cidade mundial», as novas formas de arranjo da economia exigem novos serviços. Os antigos office-boys não dependem mais da condução ou dos sapatos para cumprirem a tarefa diária. Mais rápidos e ágeis e podendo trabalhar por encomenda – o que significa menos gastos das empresas com seu quadro de funcionários – os motoboys tornaram-se uma opção interessante para quem não tem qualificação profissional específica, mas é ambicioso o suficiente para não se contentar com um salário mínimo por mês . Desde meados dos anos oitenta, empresas que usavam serviços de entrega começaram a perceber a vantagem da motocicleta no trânsito de São Paulo e a avaliar a possibilidade de transformá-la em um veículo utilitário sem que esta perdesse sua característica de versatilidade e agilidade. Segundo a tese de mestrado «Percepção e avaliação da conduta de motoristas e pedestres no trânsito: um estudo sobre espaço público e civilidade na metrópole paulista.» de Alessandra Olivato , em 2000 havia 374.588 motociclistas na cidade de São Paulo, dos quais cerca de 160 mil eram motoboys. Em 1996, motos eram 2,8% do total de veículos; já em 2000, esse percentual chegou a 8,3% dos veículos. 

 

os primeiros motoboys que transportavam de tudo em tubos de PVC adaptados às motos até os famosos baús colocados na «garupa» das eternas Hondas CG 125, a profissão explodiu durante a última década do século XX, chegando à beira de tornar-se problema de saúde pública. Em 1999, acredita-se, morreram 250 motoboys  nas ruas da capital, ou um para cada dia útil. Vários foram os fatores e parece que a profissão passa agora por um período de «entressafra» não só pela situação econômica do país, que de recessão em recessão vai esfriando a economia, mas porque a concorrência acarretada pelas oportunidades abertas na nova profissão baixaram preços e salários, o que tornou o serviço desinteressante, principalmente para quem inicia agora, sem carteira de clientes conhecida ou experiência no ramo. O que importa é que os mais velhos na profissão são os que conseguem sobreviver nesse período de intempéries e têm uma visão diferenciada dos riscos envolvidos em andar por corredores estreitos, espremidos entre carros e ônibus que muitas vezes não os vêm. Muitos deles já tiveram sua cota de acidentes quase fatais e viram companheiros morrerem ou ficarem inutilizados em hospitais por meses ou para o resto da vida. Quando entrevistamos «Alemão», ele tinha em sua mesa um parafuso estranho, muito comprido e de um metal particularmente intenso. Usado como um item a mais em sua mesa já repleta de fotografias