Para se entender o atual significado e crescente importância do lazer na sociedade contemporânea, é preciso situá-lo num determinado contexto que oferece, simultaneamente,  o quadro de referência histórica e pistas para sua conceituação. Tal contexto é o dos primeiros tempos da Revolução Industrial, quando a disciplina, o ritmo e intensidade do trabalho só conheciam um limite: o da exaustão física e psíquica daqueles contingentes de trabalhadores  arrancados de seu tradicional modo de vida,  no qual a interrupção do trabalho – seja agrícola, artesanal, de coleta –  era ditada  pelos ciclos da natureza  e legitimada por um calendário religioso que marcava o tempo através das festas e rituais. O nascente capitalismo, porém, inaugura uma nova ordem socio-econômica onde a produção já não era determinada pelas necessidades de consumo do grupo doméstico, mas  tinha como eixo o mercado, que aliás fornecia um dos fatores envolvidos no processo produtivo: a força de trabalho. O problema da conservação desta última dizia respeito unicamente a seu vendedor que, de posse da remuneração, devia arcar com os custos – alimentação, alojamento, saúde, descanso.

Melhores e mais humanas condições de vida e trabalho foram, pois, desde os inícios do sistema capitalista, conquistas da classe trabalhadora. O que não deixa de constituir um paradoxo: o tempo livre, necessário e funcional desde a lógica do capital – como fator indispensável para a manutenção e reprodução da força de trabalho –  é resultado da luta do movimento operário pela diminuição da jornada de trabalho, descanso semanal remunerado, férias, etc.

Para muitas tendências do movimento operário organizado, o tempo livre era de suma importância pois representava não apenas a necessária reposição da energia gasta, mas ocasião de desenvolvimento de uma cultura própria e independente dos valores burgueses. Representações teatrais, competições desportivas, sessões de canto e música, leituras, passeios,  além de debates e cursos de formação – tais eram as formas através das quais os militantes  preenchiam seu tempo livre.

A questão do lazer, portanto, surge dentro do universo do trabalho e em oposição a ele: a dicotomia é, na verdade, entre tempo de trabalho versus tempo livre ou liberado, e por lazer entende-se geralmente o conjunto de ocupações que o preenchem.

Se este é o quadro de referência que permite entender, em suas origens, o papel do lazer, atualmente é possível verificar algumas mudanças na forma como é encarado. Em primeiro lugar, o lazer já não é pensado apenas em sua referência ao mundo do trabalho e, principalmente, não é visto como um apêndice a ele. Uma rápida enumeração das instituições, equipamentos, produtos e atividades em torno do lazer – academias, clubes, rede de hotéis, sistemas de excursões, vestuário,  os cadernos de turismo dos grandes jornais – mostra que as formas de ocupar o tempo livre são consideradas per se  e constituem  rentável empreendimento.

Esta desvinculação entre lazer e o universo do trabalho tem a ver, nos países desenvolvidos, com o que um autor contemporâneo (LALIVE D’ÉPINAY, 1992) chama de mudança de ethos: a realização pessoal não passa mais necessariamente pelo trabalho – ao menos não pelo trabalho remunerado:  «Para muitas pessoas, o trabalho continua sendo uma necessidade, mas não como uma forma de auto-realização (…) os direitos dos  seres humanos não são apenas viver e trabalhar, mas viver e desenvolver-se, o que requer segurança não apenasmaterial mas emocional». (op. cit., p.439)

O autor, evidentemente, está falando de sociedades onde os problemas de base foram resolvidos em função da política do bem-estar e onde a população economicamente ativa entra cada vez mais tarde no mercado de trabalho e sai cada vez mais cedo. Neste caso, aumenta o tempo livre e o trabalho remunerado é apenas uma das formas de atividade – nem sempre gratificante – ao lado de outras, como o trabalho doméstico, assistencial, comunitário.

O que acontece, entretanto, em países como o Brasil, marcado por profundos contrastes e desigualdades? Poderia parecer fora de propósito discutir tempo livre e lazer quando contingentes expressivos da população, em estado de miséria absoluta, não têm acesso sequer ao trabalho, numa situação até mais perversa que aquela descrita quando dos primórdios da revolução industrial. Mas exatamente por se tratar de uma situação de contraste é que, além dos dois lados extremos do quadro, existe uma significativa região intermediária. Se, para alguns, as reflexões na linha de D’Épinay já fazem sentido,  e para outros a questão do lazer é um luxo, existem muitos outros, também, para os quais a prática do lazer ainda é um direito a ser conquistado, consolidado.

Trata-se, com efeito,  daquela parcela da população inserida no mercado de trabalho mas  que, tendo legalmente assegurados seus direitos a  férias, descanso semanal remunerado etc.,  nem sempre tem acesso às condições reais e objetivas que permitam  o usufruto do lazer: São, em geral,  moradores dos bairros de periferia, distantes, carentes de muitos serviços urbanos básicos  e desprovidos  de espaços, equipamentos e  instalações adequadas ao exercício de seu lazer. E no entanto é amplo e variado o espectro de suas formas tradicionais de uso de tempo livre, nos finais de semana: circos, bailes, festas de batizado, aniversário e casamento, torneios de futebol de várzea, quermesses, rituais e comemorações religiosas (católicos e dos cultos afro-brasileiros), excursões de «farofeiros», passeios etc. (MAGNANI, 1998). Antes, porém,  de analisar as condições objetivas de exercício dessas e outras modalidades de lazer característicos dessa população, no espaço urbano, cabem algumas observações sobre sua dinâmica.

São, evidentemente, modalidades  simples e tradicionais que não têm o brilho e a sofisticação das  últimas novidades da indústria do lazer, mas estão profundamente vinculadas ao modo de vida e  tradições dessa população. E analisando mais de perto as regras  que presidem o uso do tempo livre por intermédio dessas formas de lazer, verifica-se que sua dinâmica vai muito além da mera necessidade de reposição das forças dispendidas durante a jornada de trabalho:  representa, antes, uma  oportunidade de, através de antigas e novas formas de entretenimento e encontro, – estabelecer, revigorar e exercitar aquelas regras de reconhecimento e lealdade que  garantem a rede básica de sociabilidade. O que não é de pouca importância para uma população cujo cotidiano não se caracteriza exatamente pelo gozo pleno dos direitos de cidadania.

Assim, tomando-se como ponto de partida o espaço onde tais atividades são realizadas, é possível distinguir um sistema de oposições cujos primeiros termos são «em casa» versus «fora de casa». Na primeira categoria, «em casa»,  estão aquelas formas de lazer associadas a ritos   que celebram as mudanças significativas no ciclo vital e têm com o referência a família, ou seja, festas de batizado, aniversário, casamento etc.

O segundo termo da oposição, «fora de casa», subdivide-se, por sua vez, em «na vizinhança»  e «fora da vizinhança». O primeiro engloba  locais de encontro e lazer – os bares, lanchonetes, salões de baile, salões paroquiais e terreiros de candomblé ou umbanda, campos de futebol de várzea, o circo etc.  – que se situam nos limites da vizinhança. Estão, portanto, sujeitos a uma determinada forma de controle, do tipo exercido por gente que se conhece, de alguma maneira – seja por morar perto, por utilizar os mesmos equipamentos como ponto de ônibus, telefone público, armazém, farmácia, centro de saúde – quando disponíveis.

Os moradores referem-se a esse espaço – que configura um território delimitado por marcos físicos, sobre o qual se estende uma rede de relações – com a denominação de «pedaço»,  local freqüentado por pessoas que se reconhecem enquanto membros de uma rede social com base territorial:

«O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade».(MAGNANI, op. cit. p. 116)

É aí que se tece a trama do cotidiano: a vida do dia-a-dia, a prática da devoção, a troca de informações e pequenos serviços, os inevitáveis conflitos, a participação em atividades vicinais. E é o espaço privilegiado para a prática do lazer nos fins de semana nos bairros populares. Desta forma, o «pedaço» é ao mesmo tempo resultado (ainda que não exclusivo) de práticas de lazer, e condição para a sua prática.

Isto porque pertencer a essa rede implica o cumprimento de determinadas regras de lealdade que funcionam também como proteção, inclusive  quando as pessoas aventuram-se para o desfrute de lazer «fora do pedaço», como acontece com  disputas de futebol em outros bairros, excursões, idas a salões de baile ou a outros equipamentos de lazer situados em outros pontos da cidade.

Como se pode ver, o momento de desfrute do lazer não pode ser considerado apenas por seu lado instrumental, passivo e individualizado – reposição das energias gastas. Isto porque, como a análise da categoria «pedaço» mostra, existe um componente afirmativo referido ao estabelecimento de laços de sociabilidade, desde o núcleo familiar até o círculo mais amplo  que envolve amigos e colegas  (no âmbito do «pedaço»)  e desconhecidos (fora do «pedaço»). Daí a importância do diálogo entre o «pedaço» (no âmbito do bairro) e outros espaços da cidade que abre, através dos «trajetos», o particularismo da experiência local para outras vivências, em outros locais: é o «direito à cidade» (LEFEBVRE, 1969), o que significa acesso a espaços, equipamentos, instituições, serviços que transcendem os limites da vida cotidiana no bairro.

No entanto, seja «no pedaço» ou fora dele,  constata-se uma progressiva diminuição dos espaços destinados ao exercicio do lazer da população de baixa renda. É o que acontece principalmente com modalidades tradicionais como circos, parques de diversão,  futebol de várzea; a insuficiência de áreas verdes, praças  e parques – ou dificuldade de acesso  a eles, em virtude de sua localização – configura outra carência, assim como a inexistência ou precariedade de instalações  para   atividades comunitárias, sociais e culturais. Tal situação é resultado do caráter excludente do desenvolvimento urbano e a conseqüente desigualdade da distribuição dos equipamentos, privilegiando alguns setores em detrimento de uma grande maioria.

Tal diagnóstico –  apenas indicativo – por si só aponta para a solução mais evidente: uma política cultural capaz de equipar as regiões mais carentes com a infraestrutura necessária e facilitar o acessso para usufruto da rede de lazer mais ampla. Se esta conclusão se impõe, cabe, entretanto, uma segunda constatação, aparentemente óbvia, mas não sem consequências: se há carências nessa área, com maior razão é preciso preservar o que existe e é utilizado, e impedir sua destruição.

Decisões relativas ao uso do espaço não podem ser tomadas em função de apenas uma lógica que supostamente decide o que é bom, conveniente e bonito  para a cidade; há outros pontos de vista, decorrentes da existência de outros atores sociais  com suas tradições, modos de vida, hábitos – igualmente legítimos. Aliás, é justamente essa diversidade que caracteriza a experiência urbana: «Nesse sentido, a diversidade urbana, além de ser uma propriedade das cidades, deve ser reconhecida como o princípio que as torna cidades» (DOS SANTOS, 1985, pg. 78).

Edificações de épocas e estilos diversos, espaços culturais tradicionais ao lado de centros voltados para o experimentalismo e a vanguarda, locais escolhidos e/ou compartilhados por pessoas de diferentes faixas etárias e outros exemplos mais de contrastes caracterizam a riqueza da experiêcia urbana, a que todos os moradores da cidade – os cidadãos, no sentido original do termo – têm direito.

Tal é o contexto das práticas urbanas, entre as quais a de lazer. Como se pôde apreciar, no caso deste último, se ainda o universo do trabalho faz-se presente, ao menos enquanto definidor dos limites do tempo livre – afinal, trata-se do lazer desfrutado no final de semana, entre uma e outra jornada de trabalho – já não é principalmente por referência aos valores desse universo que o lazer adquire seu pleno sentido.

Mesmo numa sociedade como a brasileira, marcada por profundos contrastes socio-econômicos, com uma imensa população carente, cada vez mais o lazer deixa de ser  pensado como privilégio de poucos, ou como algo acessório, passando a ser encarado como direito de todos e parte constitutiva de modos culturalmente diferenciados de vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOS SANTOS, C. N.  (coord.) – Quando a Rua vira Casa. Rio de Janeiro, Ibam/Finep, Projeto, 1985.

LALIVE D’ÉPINAY, C. Beyond the Antinomy: Work versus Leisure? Stages of a cultural mutatiom in industrial societies during the twentieth centurySociety and Leisure. 14 (2), 433-446.

LEFEBVRE, H. – O direito à cidade.  São Paulo, Ed. Documentos, 1969.

MAGNANI, J.G.C. (1998). Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo, Editora Hucitec.(2a. edição)

Texto apresentado ao Condephaat para fundamentar o processo de tombamento do Parque do Povo.  São Paulo, 4 de julho de 1994.