Conforme Alvim (1988), a partir da década de 20 a área jurídica irá se ocupar da infância pobre, sobretudo aquela que, mesmo após a regulamentação do trabalho infantil, permanecia ociosa nas ruas. Em 1921, a lei que “cria” o menor abandonado, pressionará os pais a controlar seus filhos através de critérios para manter a guarda, englobando prerrogativas como habitação, meios de subsistência e capacidade do responsável. O Juízo de menores criado em 1923, atuara na proteção da mão de obra infantil utilizada nas fábricas, combatendo a mendicância e a criminalidade mediante o isolamento da infância em instituições especializadas para os menores abandonados e delinqüentes. 

 

Nos anos 30, o trabalho na rua será permitido desde que institucionalizado e controlado. Na década de 40, a concepção de que os espaços públicos seriam espaços de socialização da marginalidade, além do temor acerca da possibilidade do “descontentamento das massas”; e de que o Estado deveria fornecer subsídios à formação de indivíduos úteis por meio do trabalho, dá origem ao Serviço de Assistência ao Menor- SAM. Como corolários desta concepção, surgem a partir de 1942, com o apoio do empresariado industrial e como política social do regime Vargas, serviços como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial- SENAI, de qualificação para a indústria. No ano de 1943, os direitos e deveres da infância trabalhadora passaram a ser regulamentados na Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT. A partir de 1946, surgem o Serviço Social da Indústria – SESI, o Serviço Social do Comércio – SESC e o Serviço Nacional de Aprendizado Comercial – SENAC (ALVIM, 1988). 

 

Com a urbanização acelerada e concentrada em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, a década de 50 se deparará com acentuados níveis de desigualdade e pobreza, e um processo de desenvolvimento regional desigual. Nos anos 60, no interior de uma moderna atuação na política social, surge a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor – FUNABEM, como resposta às denúncias efetuadas pela imprensa ao SAM, uma vez que este se constituía como um espaço de criação de criminosos e alvo de inúmeros inquéritos. A FUNABEM surge como o reconhecimento do colapso da atuação governamental até então desenvolvida, propondo a reeducação do menor, sem centralizar a sua atuação exclusivamente na internação, mas também no auxílio à família e à comunidade. Além disso, a FUNABEM se diferenciará por uma reestruturação na forma de organização que a tornará mais flexível, constituindo-se em uma fundação nacional e de várias fundações estaduais (ALVIM, 1988). 

 

A década de 60 marcará a ampliação da presença do Estado na política social. A preocupação social com a criminalidade, incentivou a iniciativa dos juristas em encomendar pesquisas sociológicas para orientar seu trabalhos nos juizados, assinalando na década de 70, o marco de entrada de cientistas sociais no tratamento do tema. É também na década de 70 que se aprofundará a atuação e engajamento da Igreja na questão do menor, sobretudo a partir de 1978, com a criação da Pastoral do menor. Nesse período, a imprensa denunciava a atuação de “pivetes” e “trombadinhas”, associando a criminalidade com a situação de rua, pressionando o seu recolhimento e internação em instituições especializadas (ALVIM, 1988). 

 

Surgem as estimativas acerca dos menores abandonados e delinqüentes, como o realizado pela CPI do menor, em 1976, o qual estimou em 25 milhões o número de menores carentes e abandonados, tornando-se documento obrigatório e referência sobre o tema. Mas é no final da década de 70, no ano internacional da criança, que se dá a ampliação da questão do menor, com o aumento da mobilização social e da preocupação com a violência contra as crianças, cometida sobretudo pela policia e pela FEBEM. Em um contexto de visibilidade da questão do “menor” em situação “irregular”, um novo código de menores será criado em 1979. No entanto, o código terá uma preocupação em reforçar dispositivos de controle da situação do menor infrator, buscando dominar um problema que se desenrolava desde os anos 50, a infância “perigosa”, mediante a implementação de mecanismos de punição aos infratores (ALVIM, 1988). 

 

A partir de 1980, os profissionais de pesquisa passarão a fazer parte do cenário antes ocupado somente por assistentes sociais e juristas (GREGORI, 2000). No entanto, a visibilidade em relação ao fenômeno dos meninos de rua criou uma série de representações, tal como àquela em que a criança pobre passou a ser vista como sinônimo de criança de rua; ou a de que uma vez em contato com a rua através do trabalho, a criança transformar-se-ia progressivamente em marginal, se menino, “delinqüente”, se menina, “prostituta”; ou com relação às estimativas sobre o número de crianças na rua, os quais compreenderiam números sempre altos e com um aumento progressivo (ROSEMBERG, 1995). A despeito da culpabilização da pobreza pelos problemas sociais, Gregori pondera que “não é apenas em um contexto de carência que proliferam jovens desassistidos ou mesmo violentos” (GREGORI, 2000, p. 17).

 

No que se refere à intervenção, ocorreram muitas mudanças na forma com que atuam os órgãos assistenciais desde a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA em 1990; como a alteração do modelo correcional-repressivo herdado do período ditatorial, na qual mais se institucionalizava do que “ressocializava”, tornando o “menor” um inadaptado para viver em sociedade (MILITO, 1995). A onda democratizante do fim dos anos 80 e início dos 90 marca a preocupação em tratar a criança e o adolescente de maneira a respeitar sua autonomia e, desde a sua implantação, já se pode observar resultados significativos nesse sentido; afinal é “a criança que tem que se adaptar à instituição ou a instituição tem que se adaptar à criança?” (MILITO, 1995, p.132). No entanto, a aplicação do ECA. também expõe uma fragilidade na sua pretensão universalista que diz respeito às suas vozes dominantes que contemplam, sobretudo, visões e concepções culturalmente definidas. A esse respeito, Cardarello (1996) afirma que o ECA se apresenta com uma tal ambigüidade que por vezes abre possibilidade para diferentes interpretações, constituindo-se como um direito universal que muitas vezes se torna um privilégio de alguns.

 

Com relação aos diferentes modos de conceber e viver a infância, proponho-me a contextualizar a diversidade cultural do desenvolvimento infantil, de modo a relativizar a sociabilidade no espaço da rua.

 

A infância na rua

Segundo o historiador Philippe Áries, a representação social da criança corresponde a concepções mutáveis e historicamente situadas (ARIÉS, 1981) e seu conteúdo se modifica de acordo com cada grupo ou classe social. Assim, se em classes populares de Porto Alegre, podemos encontrar a concepção de criança como um “adulto incompetente” (e não como um “adulto em formação”); em classes médias, por sua vez, a criança é concebida como um ser emocionalmente frágil e tomada como um projeto, um investimento na construção de uma família (FONSECA, 1995).

 

Ao estudar o significado do ter um filho para moradores de uma vila em Porto Alegre, a antropóloga Cláudia Fonseca (FONSECA, 1995) atribui o valor simbólico da criança, nesse contexto, à consolidação do status de adulto e à ampliação dos laços com a comunidade. A autora vê o fenômeno da circulação de crianças, ou seja, a “coletivização da responsabilidade pelas crianças”, uma espécie de adoção não formalizada entre parentes ou pessoas de classes sociais distintas (da qual participavam pelo menos 70% das mulheres da vila), como uma estratégia de sobrevivência e como uma das formas de consolidar redes de solidariedade já existentes (consangüíneas ou não). Além disso, a criança teria um valor material que diz respeito à possibilidade do sustento econômico futuro dos pais, pois seja qual for o destino da criança, a mãe biológica sempre terá prioridade sobre a identidade materna, já que o “sangue puxa”. Nesse sentido, para a mãe é digno de sua parte afastar-se temporariamente de seu filho, esperando que ele seja criado numa situação melhor, para retomá-lo quando puder ser capaz de cumprir com o seu papel de forma satisfatória.

 

Longe das preocupações dos adeptos das idéias do reverendo Malthus, as vantagens da maternidade encontram em outras lógicas e alternativas a solução da incapacidade da mãe em criar seus próprios filhos. Assim, essa redistribuição ou troca realizada com a criança, muitas vezes é “inevitável”; como no caso em que o novo companheiro da mãe recusa o “ridículo” de ser pai de criação do filho de um outro, ainda mais “inevitável” se ocorre o nascimento de um outro filho dessa união (FONSECA, 1995). Assim, da mesma forma que dar a criança não seja visto pela mãe como abandono, não podemos afirmar que a situação de pobreza dos pais possa ser encarada como “negligência”. 

 

A prática da circulação pode motivar também o contato com o espaço social da rua. A literatura sobre meninos (as) de rua faz alusão a essa prática de “aventurar-se” pelas ruas longe de casa, desde a incorporação da fuga no cotidiano da família (MILITO, 1995); até o auxílio de benzedeiras, “despachos” e o próprio batismo para curar o “menino fujão”; ou a criança “reencarnada num corpo que o espírito rejeita” (FONSECA, 1995). Nesse sentido, Maria Filomena Gregori também observa que, “(…) a saída definitiva nunca é a primeira e que os meninos levam um bom tempo nas idas e vindas, até que fiquem mais enlaçados às ruas e comecem a circular- também em idas e vindas- entre as instituições e as ruas” (GREGORI, 2000, 88). A autora  complementa,

 

“A fragilidade de laços e de estabilidade, que já se inicia na experiência familiar, associada à mobilidade no espaço urbano- que dificulta a formação de laços comunitários mais consistentes- e a uma vivência escolar irregular, traz como conseqüência uma situação em que a criança fica sem lastro para relações mais permanentes. Esse padrão intensifica-se quando esses meninos e meninas começam a estabelecer uma rede de sociabilidade no universo da rua. Mesmo transferindo para esse universo a busca de algo que perderam nas outras esferas, eles encontram imensa dificuldade de fixação identitária e espacial” (GREGORI, 2000, p. 86).

Gregori (2000) vê na dinâmica da situação de rua um padrão urbano popular resultante da pobreza, sobretudo dos que não tiveram êxito em se manter na esfera da sociabilidade privada (casa, bairro, comunidade, trabalho fixo). Os ensinamentos informais gerados através das fugas de casa, do contato com os agrupamentos de rua e com instituições é um dado relevante na relação mais estreita do menino com a rua. É preciso considerar também que o aprendizado da circulação e da vivência na rua, com sua linguagem, seus códigos e dinâmica, possa ser iniciado na própria família com a experiência dos irmãos mais velhos, iniciada pela mãe, ou simplesmente através do trabalho informal; muito embora a situação de rua seja uma iniciativa que independe da atenção ou decisão dos pais. . 

 

Quando utilizo o termo rua, refiro-me ao espaço localizado longe da residência familiar onde haja um ambiente mais propício ao trabalho informal, mendicância e até pequenos furtos. Como veremos mais adiante, trabalharei a idéia de dependência ao espaço da rua relacionado muito mais a uma interdependência constituída por uma sociabilidade mediada por uma prática cultural. Essa sociabilidade, no entanto, já pode vir antecipada, em grande medida, do ambiente da casa – residência familiar – (FONSECA, 1995), dessa forma, o seu ingresso na rua pode não marcar uma situação de extremo contraste (GREGORI, 2000; LEMOS, 2002).

 

A respeito da antecipação dessa socialização, Jardim (1998) observou em sua etnografia realizada em uma vila da Grande Porto Alegre, que o pátio se constituía como uma auto-referência geográfica e simbólica que identifica moralmente as famílias. A autora mostra que o ambiente moral do pátio se constitui como um espaço de relações de reciprocidade entre vizinhos, tomados muitas vezes como parentes, ampliando tanto a noção de espaço “privado” para além dos limites da casa, como de família, esta entendida também como relações de cunho econômico e moral. 

 

No mesmo sentido, Magnani (1998) se propõe a pensar na rua como uma experiência simbólica, ou seja como «suporte de sociabilidade». Empreendendo pesquisas sobre práticas de lazer, locais de encontro e formas de sociabilidade no contexto da cidade de São Paulo, o autor identifica espaços distintos, o bairro e o  centro. Tratando-se dessas formas de sociabilidade no espaço do bairro, o autor elabora o conceito de “pedaço”, denotando uma categoria êmica que representava um espaço social delimitado de cumplicidade de códigos, lealdades e pertencimento,

 

O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que  as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade (MAGNANI, 1984, p. 138).

A referência ao “pedaço” enquanto código de identificação, demonstra que a periferia se encontra recortada por espaços socialmente diferenciados por regras, marcas e acontecimentos específicos que oferecem uma ampla rede de significados,

 

Essa malha de relações assegura aquele mínimo vital e cultural que assegura a sobrevivência, e é no espaço regido por tais relações onde se desenvolve a vida associativa, desfruta-se o lazer, trocam-se informações, pratica-se a devoção- onde se tece, enfim, a trama do cotidiano (MAGNANI, 1984, p.140).

O espaço assim delimitado, combinava relações de parentesco, vizinhança, procedência e vínculos de participação social, traçando fronteiras simbólicas de pertencimento, identificando, por exemplo, quem era  “do pedaço” e quem era “fora do pedaço”. Analisando o espaço da cidade, o autor destaca a referência às atividades de lazer, referindo-se aos fluxos no espaço da cidade e nos espaços urbanos, pelo termo “trajeto”. 

 

A respeito dos deslocamentos, Gregori (2000), referindo-se a processos dinâmicos de constituição de identidade de meninos em situação de rua em São Paulo, analisa o processo de circulação à luz da dinâmica da “viração”. Assim, a autora se refere à “viração” como uma dinâmica constitutiva de vida dos meninos em situação de rua no qual a circulação, a instabilidade e o não estabelecimento de vínculos permanentes se faz presente em seu cotidiano. Embora preservando laços familiares e contato com a residência familiar, os meninos não se fixam nas relações, a mobilidade e a fragilidade de laços impede também que desenvolvam vínculos comunitários ou que se fixem até mesmo na sociabilidade no universo da rua. A instabilidade é constitutiva da dinâmica da “viração”, na qual o apoio e proteção institucional aumentam a crença dos meninos na sua capacidade individual, ou seja, na ilusão de independência. Este instrumento de sobrevivência na instabilidade exige um aprendizado sobre os procedimentos de vivência na rua, no qual até mesmo as imagens e o discurso sobre eles são adaptadas e utilizadas de forma estratégica nos discursos e práticas dos meninos. No entanto, a “viração” se coloca como um fim em si mesmo, pois o menino “(…) está longe de conseguir projetar um caminho de saída da menoridade. Seu destino permanece preso na circularidade das ações. Parece condenado a ser, para sempre, um menino de rua.” (GREGORI, 2000, p. 22).

 

Assim, por referência aos deslocamentos constantes e característicos da dinâmica da “viração” (GREGORI, 2000), o conceito de “trajeto” (MAGNANI, 1984) deve ser entendido como parte constitutiva do cotidiano dos meninos. Esse fluxo que abre o “pedaço” (MAGNANI, 1984) para o exterior e possibilita a experiência das ruas urbanas e os deslocamentos entre os seus espaços, é auxiliado tanto pelas experiências de lazer quanto pelas possibilidades de trabalho informal que a cidade oferece. Lemos (2002) elenca como um dos fatores da sociabilidade com as ruas urbanas, o reduzido espaço de lazer das regiões periféricas, atribuindo aos meninos em situação de rua uma tal familiaridade com o espaço da rua que não permitiria uma distinção muito clara entre o espaço público e o privado. Para Gregori (2000), a privatização do espaço público, ou a indiferenciação público/privado colocaria em risco a individualidade, auto-estima e consciência de cidadania dos meninos em situação de rua. Dessa forma, apesar da “casa” e da “rua” tratarem-se de categorias analíticas importantes na compreensão da realidade brasileira (MATTA, 1997), penso que elas não possuem significados rígidos ou homogêneos, mas se tratam de categorias que devem sempre ser referenciados em seus usos em contextos e lógicas culturais específicas.

 

Como já foi citado, o contato com a família não desaparece com o contato com a rua. Os dados apontados no último levantamento quantitativo (FASC, 2004), mostram que 71% das crianças e adolescentes de Porto Alegre responderam que têm contato com a família “sempre (todos ou quase todos os dias)”, contra 7% dos que responderam que “nunca” têm contato com a família (FASC, 2004, p.96). Assim, é importante considerar a relação familiar como complementar e concomitante com a rua e até como uma estratégia da própria família; não se pode dizer que a família perca a criança para a rua ou o inverso, uma vez que reafirmaríamos novamente que a rua não é o lugar da criança sem perceber o que ela oferece. Essas noções podem ser encontradas tanto no senso comum, quanto nas definições acadêmicas, a exemplo da primeira definição de “menino de rua” em 1979, na obra de Rosa Maria Fisher Ferreira, na qual o espaço da rua e a relação com comerciantes, policiais, outros meninos, etc, passaria a substituir o espaço doméstico e a relação com a família (FERREIRA, 1979 apud ROSENBERG, 1995). 

 

No senso comum, a situação de rua aparece freqüentemente representada em dois extremos, a saber, a condição de meninos vítimas ou algozes. Nesse sentido, é comum considerar a situação de rua como a ação de indivíduos inadaptados ou indisciplinados que buscam a liberdade na rua ou pela negligência de adultos que abandonam e exploram. A primeira idéia é muitas vezes apropriada no discurso dos meninos (as) como uma motivação para a situação de rua, mas como bem observa Gregori (2000), é preciso desconfiar dessas justificativas e perguntar se os meninos efetivamente estavam “presos” na residência familiar. 

 

No entanto, não quero com isso afirmar a existência de uma certa indiferença familiar com a criança em classes populares, mas apontar que; primeiro, a rua não é representada como um espaço totalmente “separado” e potencialmente negativo, e de certa forma também é vista como inevitável; e segundo, que o discurso de liberdade formulado pelos meninos possa ser formulado para um interlocutor específico que provavelmente congregaria das mesmas representações. No entanto, o relato de alguns pais sobre a insistência em buscar a criança de volta pra casa e as fugas constantes também devem ser consideradas enquanto estratégias mais ou menos bem sucedidas (GREGORI, 2000). 

 

Conforme Gregori, as inúmeras fugas podem vir acompanhadas da desistência dos responsáveis de ir à busca dos meninos e de um processo de criação de laços de sociabilidade que mais do que solidariedade, pode socializar estratégias de sobrevivência na rua: “Há um vínculo entre a aptidão para viver na ‘viração’ e a desistência dos responsáveis de tomar conta deles” (GREGORI, 2000, p.94). 

 

Trazendo um pouco de algumas visões sociais sobre as motivações para o contato de crianças e adolescentes com o espaço da rua, nos deparamos com uma série de concepções desse fenômeno. São muito disseminadas aquelas interpretações nas quais a situação de rua aparece como uma motivação de cunho racional, como uma opção pela liberdade, e aquelas nas quais a presença desses meninos (as) significa uma estratégia de exploração dos recursos dos que transitam nas ruas, garantindo a possibilidade do ócio, ou dinheiro fácil à família desses meninos. Nessa linha estão ainda os argumentos de que os programas sociais em vigência são suficientes  para evitar a situação de rua, pois beneficiam as famílias com uma renda extra e estas se aproveitariam desses recursos ao permitirem (ao contrário do que impõem esses programas) que os meninos/as trabalhem na rua para manterem seu sustento, sem que precisem trabalhar. A esse respeito, Lemos (2002) destaca que os serviços de assistência às famílias pobres, acabam não tendo papel decisivo na sobrevivência destas, sobretudo com relação às bolsas-auxílio, que além de se tratarem de valores muito baixos em comparação aos proventos gerados pela mendicância, furto, exploração sexual e/ou tráfico de drogas, têm um prazo de duração restrito.

 

A respeito das motivações sobre a dependência do espaço da rua, ou da dificuldade em “tirar” essas crianças e adolescentes desse espaço, encaminhando-os à família, abrigos, adoção, etc., temos a concepção de que basta oferecer outro espaço “melhor” no que se refere às condições materiais, que por si só todos os problemas estariam resolvidos. Mas a questão não se encerra aqui, autores como Gregori (2000) já apontaram a necessidade de superação de uma visão reduzida à esfera econômica, sobretudo limitada a uma mera questão de renda, aludindo para a relevância da compreensão das experiências e do universo material e simbólico em que os meninos estão inseridos. 

 

Por outro lado, também é errôneo afirmar a dependência da criança às elaborações culturais adultas, deixando de ver o papel das experiências práticas na consolidação das sociabilidades infantis. Existem poucos estudos em antropologia que dão ênfase no papel ativo da criança como ser produtor de cultura. Clarice Cohn (2000), em seu artigo sobre os Xikrin, subgrupo Kayapó do sudoeste do Pará, propõe-se a pensar a infância e o desenvolvimento infantil resgatando noções e experiências antropológicas, mas com um olhar voltado para as experiências infantis enquanto uma etapa específica de criação cultural. Conforme a autora, mais do que socializadas passivamente, as crianças se constituem, por meio de suas vivências e interações, em agentes sociais ativos da cultura.

 

Resgatando a noção de pessoa, enquanto uma acepção cultural de humanidade, a autora explicita como entre os Xikrin o processo de aprendizado das crianças depende da iniciativa delas. No “sentar ao lado [de quem sabe] para ouvir», a criança demonstra interesse em aprender e através de um “pedido» (kukiere), ela especifica o que se quer aprender,

 

Esse pedido pode ser feito para pessoas com quem não se tem uma ligação de parentesco, embora deva-se sempre respeitar as restrições de comunicação envolvidas; por isso, um jovem me disse que havia pedido a um velho a quem chama de sogro que lhe ensinasse alguns remédios do mato, mas por intermédio de um de seus netos, que intermedia não apenas o pedido, mas também a situação de aprendizado, acompanhando os dois homens na floresta. Assim o interesse e a motivação para o aprendizado são individuais, e o repertório de conhecimentos adquiridos é dado pela iniciativa, e não pela posição social (COHN, 2000, p. 8).

A autora mostra como a função das crianças como mensageiras e canais de ligação entre as casas é uma tarefa específica destas devido à distância social entre os adultos, por não serem “limitadas” ou obrigadas a agir de acordo com o pia’am dos adultos (distância ou respeito que regula as relações entre os adultos). A autora explica que o pia’am que as crianças sentem e demonstram é de outra natureza dos adultos, o pia’am das crianças volta-se a qualquer pessoa não familiar de mais idade que ela própria, como «vergonha». Para os adultos, o pia’am tem origem nas relações de afinidade e impede a comunicação direta de categorias de pessoas. Essas diferenças se expressam, na prática, pela possibilidade das crianças entrarem em todas as casas e entre estas e o pátio, a Casa dos Homens (ngà). 

 

Ao meu ver, esse outro olhar sobre a infância se contrapõe também, às nossas representações culturais sobre esta etapa de desenvolvimento; a cultura ocidental essencializa a maioridade como a condição obrigatória de tomada da consciência individual e do protagonismo das ações, deixando de considerar a socialização infantil como uma etapa específica. A autora continua sua argumentação demonstrando como as crianças Xikrin adquirem o que ela designa (valendo-se de Schieffelin & Ochs, 1986) de “competência lingüística e competência pragmática” (COHN, 2000, p.15), a saber, a “habilidade de se expressar corretamente e de modo contextualizado, e de construir sentido a partir do que lhe é dito” (COHN, 2000, p.15). Nesse aprendizado cultural, a experiência de interação entre as crianças Xikrin é de suma importância e diversa da experiência dos adultos, 

 

(…) em diversos momentos o que elas fazem pode parecer uma imitação do mundo adulto – como na caça a passarinhos dos meninos, que eram, ou deveriam ser, dados às irmãs, reais ou classificatórias, co-residentes ou não, para prepará-los para eles, como ainda acontece com as frutas coletadas em suas excursões, ou como a pintura corporal realizada pelas meninas. No entanto, o que as crianças estão fazendo não é uma mera imitação do mundo adulto, mas uma constituição ativa de relações sociais que as acompanharão por toda a vida. Quando forem mães, essas meninas vão também se reunir para sessões de pintura corporal, tendo uma parceira fixa com quem se pintar (Vidal, 1992). Assim também, na distribuição de produtos da roça e de caça, a relação entre irmãos de sexo oposto permanece importante por toda a vida. Portanto, o que esses meninos estão fazendo, ao presentear suas irmãs com frutos colhidos em suas andanças, nessa idade mais comuns a eles que a elas, ou trazendo o produto de sua caça para que ela possa preparar para eles, não deve ser entendido como um ensaio das relações entre marido e mulher, mas como o início e a efetivação de uma relação de reciprocidade que poderá durar toda a vida (COHN, 2000, p. 17).

Instigado com as reflexões da autora, pude formular algumas questões acerca do papel da relação entre os meninos em sua socialização. Estas lições que a antropologia comparativa nos oferece permitem que retornemos ao ponto inicial e possamos propor novas questões sobre nossa própria cultura e, o que é mais importante, nosso fazer antropológico. Longe de afirmar que a socialização infantil em nossa sociedade se dá de forma idêntica à socialização Xikrin ou que a criança nos dois contextos goza de ampla independência em suas escolhas, gostaria apenas de apontar o quanto nossa sociedade, mesmo pensada em termos dominantes, percebe a fase da infância sempre atrelada (para não dizer dependente) a vidas adultas. Essa concepção fica muito clara quando pensamos na situação de rua entre crianças, uma vez que a socialização infantil sem um adulto “responsável” é encarada como um problema social, no qual invariavelmente há um adulto a quem se possa responsabilizar por esta situação “irregular”. A esse respeito, Gregori (2000) refere-se à cultura ocidental, destacando nesta o prolongamento do período de dependência da infância e da juventude, já que na hipótese da falha da guarda atribuída à família nuclear, a sociedade civil e o Estado são responsabilizados.

 

Conforme Bálsamo (2005), é a partir da década de 60 nos EUA que surgem estudos que se contrapõe à visão universalista do parentesco. Filiadas a uma perspectiva evolucionista, as teorias da arqueologia, lingüística e antropologia biológica concebiam o parentesco através da análise formal e descritiva e não eram mais do que projeções culturais a outras culturas. Ancorados numa teoria simbólica do parentesco, antropólogos como Clifford Geertz passaram a criticar tal perspectiva compreendendo a cultura como fenômeno empírico centrado na prática e discursos locais, ou seja, como sistemas simbólicos de ordenação do mundo. Assim, o parentesco pensado a partir do ponto de vista simbólico, passou a oferecer um outro olhar e o aprendizado de que estruturas de parentesco semelhantes podem corresponder a significados diferentes.

 

Além dos apontamentos de outros autores, pude perceber no relato dos meninos, principalmente os mais velhos e com maior tempo na rua que, muito embora a família seja uma referência importante, as relações da rua acabam se tornando mais significativas. Aquilo que muitos autores costumam designar como uma “outra família” na rua acaba sendo uma motivação posterior na permanência no circuito do atendimento específico. 

 

Mas será que é relevante nos preocuparmos com a distância da família uma vez que as condições sociais dos meninos são, por vezes, muito parecidas com o de meninos de classes populares? Alguns autores (GREGORI, 2000; MILITO, 1995) já se perguntavam sobre o que faz a diferença entre as famílias que mantêm os filhos fora da rua e as que não o conseguem evitá-lo. Creio que seja fundamental entender os processos históricos de estigmatização que possibilitaram a delimitação do espaço da rua. Assim, poderemos nos perguntar mais particularmente, qual a diferença entre uma criança que está trabalhando nas ruas, daquela que trabalha com os pais, ou daquela que tem o seu contato com a rua iniciada pela família, que a acompanha no trabalho? Outro fator importante é a constatação de que na rua os ganhos diários dos meninos são muito maiores. 

 

Em 2004, o Laboratório de Observação Social da IFCH-UFRGS (FASC) realizou um mapeamento com crianças e adolescentes em situação de rua na Grande Porto Alegre; na qual foram utilizadas técnicas quali-quantitativas, sobretudo o questionário estruturado. Em um dos pontos do questionário, os meninos foram indagados sobre a renda familiar mensal em salários mínimos. Para 31% destes a renda familiar mensal corresponderia de ½ a 1 (meio a um) salário mínimo – com uma média geral de 1 a 1 ½ (um a um e meio) salário mínimo (FASC, 2004, p.95). A meu ver, essa variável precisa ser relacionada com uma média geral de 6,5 pessoas dependentes por família e de uma porcentagem igual de 26% para os que responderam ter, respectivamente, entre três e quatro, e sete a quatorze irmãos (FASC, 2004, p.96, 93). A média familiar corresponde quase exatamente à renda individual mensal adquirida pelos meninos na rua, que em 32% dos casos ficam com uma parte e entregam a outra para a família; em 31% ficam com todo o dinheiro, e em 29% dos casos entregam tudo para a família ( p.103,104).

 

Conforme o estudo realizado pelo FASC (2004), entre os meninos entrevistados, 51% responderam que iniciaram seu contato com a rua “para trabalhar/ ajudar a família/ ter dinheiro”; 21% dos meninos teriam vindo “por opção/ por gostar da rua”; 17% por “problemas familiares (separação, brigas, violência)”; 4% “para acompanhar parentes e amigos” e 1% deles “para usar drogas” (p. 110). É preciso ainda contar os programas e serviços assistenciais que eles mobilizam com sua presença na rua; a visibilidade da criança pobre na rua permite a ela barganhar com uma certa prioridade o direito que provavelmente não seria assegurado se estivesse com a família. Mostrarei no próximo capítulo, que a obtenção de dinheiro, alimentação, bens materiais, etc também depende de estratégias e de conhecimentos aprendidos através de experiências práticas e da sociabilidade com os outros meninos e as instituições.

 

Negociando a autonomia

É tarefa deste artigo recompor um pouco do cotidiano dos meninos (as) num espaço institucional, a saber, uma escola que atende especificamente a população de crianças e adolescentes em situação de rua em Porto Alegre. Através da discussão de algumas histórias de vida e do cotidiano da escola, tento descortinar o significado da experiência e das relações estabelecidas nesse espaço, enquanto lócus específico da problemática abordada. Posteriormente, passarei a abordar a relevância dos usos e conhecimentos de estratégias na consecução de bens materiais e simbólicos. 

 

A Escola Porto Alegre é uma escola de caráter municipal com doze anos de trabalho, restringindo sua atuação em 1994, ano da construção da Escola, em um serviço de abordagem de rua, o Serviço Social de Rua- SESRUA. Com a efetiva fundação da Escola em 1995, a maioria dos educadores que atuavam no SESRUA passou a vir trabalhar na Escola. O ingresso dos adolescentes na instituição se dá pela abordagem do SESRUA e por meio das informações e “recomendações” que circulam entre os meninos. Atualmente, a Escola também recebe encaminhamentos de adolescentes em situação de rua de outras instituições, tais como a Casa de Acolhimento, Acolhimento Noturno, Lar Dom Bosco, Programa de Execução de Medidas Sócio-educativas, Abrigo Municipal Ingá Britta; além de outras demandas da comunidade, tal como a iniciativa de pessoas que vão até a Escola levar o adolescente. 

 

A Escola atende há aproximadamente 100 alunos matriculados, mas existe uma espécie de “revezamento” em que alguns alunos freqüentam a escola de forma esporádica, o que dá uma média de 25 alunos ao dia, mas também há os que a freqüentam de forma regular; ao mês, em torno de 42 alunos diferentes freqüentam a escola. O aluno pode realizar sua matrícula em qualquer período do ano. Quando o aluno chega à Escola, ele é encaminhado ao Serviço de Acompanhamento, Integração e Acompanhamento – SAIA. O SAIA teria uma preocupação em realizar um acolhimento diferenciado, pois no início do trabalho da Escola havia uma negação dos grupos aos alunos novos que chegavam. Para evitar isso, o acolhimento é realizado através de uma “investigação oral, institucional e familiar”, para saber qual o perfil do menino e o seu grupo adequado. Além da parceria com o SESRUA, com os Abrigos e serviços da rede, a Escola se utiliza da Visita Domiciliar- VD e de uma rede de serviços. Essas parcerias também evitam que o menino tenha que realizar a mesma entrevista em cada serviço, tendo um acolhimento inicial integrado. A Escola realiza um monitoramento da situação dos meninos, com os programas que este está freqüentando, do Conselheiro Tutelar a que este está vinculado, etc. Há também a relação com outras prefeituras, uma vez que uma parte significativa dos meninos em situação de rua em Porto Alegre são originários de cidades da Grande Porto Alegre. Após a entrevista, o aluno assina um “contrato pedagógico” com direitos e deveres, especificando uma sanção caso infrinja o acordo.

 

Os alunos são divididos em grupos com um professor referência, os grupos centram-se em temas geradores que dizem respeito às demandas dos meninos, por exemplo, um dos grupos está mais ligado com o tema da identidade na transição para a maioridade. Como há poucos alunos, é possível “colar” nos alunos. Muito embora seja um desejo da coordenadora pedagógica da Escola, os educadores não têm uma formação específica para trabalhar com os meninos, a coordenadora alega que isso redundaria numa visão “romantizada” da rua.

 

Como no início do trabalho os meninos não podiam ficar o dia inteiro na Escola, pois tinham de ir a busca de alguma fonte de renda, foram desenvolvidas atividades de produção de cerâmica e de papel reciclado nas quais os meninos ficam com o dinheiro da renda de sua produção; exceto uma porcentagem fixa que permanece na Escola para a manutenção das atividades sem que haja a necessidade dos recursos próprios desta.

 

A Escola se encontra vinculada ao Ensino de Jovens e Adultos- EJA, oferecendo até o equivalente à quarta série do Ensino Fundamental. Inicialmente a Escola atendia a demanda dos meninos às séries iniciais do ensino fundamental, mas atualmente tem aumentado a procura pelas séries finais, evidenciando um aumento da escolarização da população dos meninos em situação de rua. A partir dos quinze anos, os meninos em situação de rua são encaminhados à EPA, se têm idade inferior são encaminhados ao Lar Dom Bosco; o meninos mais velhos atendidos na EPA têm entre 20 a 24 anos.

 

Segundo a coordenadora da Escola Porto Alegre, a especificidade da Escola foi sendo criada historicamente no interior de um movimento iniciado em meados de 1985-1986, que propunha propostas pedagógicas alternativas, a exemplo de escolas criadas na FEBEM, no Movimento Sem Terra- MST, etc. Nesse movimento surge o Projeto Escola Aberta, destinada inicialmente aos casos de defasagem e de evasão escolar; evasão esta facilitada por mecanismos de “expulsão ” da Escola (CRAIDY, 1998). A coordenadora se refere ao tempo dos meninos na Escola como uma etapa de preparação para que possam “suportar” a escola regular, alegando que esta também precisa estar preparada, citando a importância de resgatar a auto-estima dos meninos, pois alguns se acham incapazes de aprender, há ainda o preconceito ao fato de estarem mal vestidos, à aparência, corporeidade, agressividade, etc.