Gabriela Renata R. dos Santos, Patrícia Lagun Mesquita e Rafaela de Andrade Deiab 

Disciplina: Trabalho de Campo em Antropologia
2003
Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de Domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda noite
e a mulher que trata de tudo.O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.
(«Família», de Carlos Drummond de Andrade. In: Alguma Poesia)

1. INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida a partir do projeto intitulado originalmente «Projeto para Pesquisa de Campo em Antropologia», que se propunha estudar o trabalho doméstico enquanto uma instituição social brasileira a partir da relação entre empregadas domésticas e patroas. Algumas questões foram levantadas, como: «Por que  essa relação existe de forma tão disseminada em nosso país?», «Por que é potencialmente conflituosa?», «Como se reproduz e se reinventa na sociedade brasileira ao longo do tempo?».  Para responder estas questões, tomou-se como recorte a relação entre patroas e empregadas na cidade de São Paulo enquanto  instituição peculiar, que estabiliza a vida familiar brasileira e situa-se num determinado nicho do mercado de trabalho.
Debruçar-se sobre um tema tão presente e codificador da convivência na sociedade brasileira revelou-se muito estimulante. O trabalho doméstico é parte constituinte da maioria dos lares brasileiros de classe média e alta. Talvez por ser tão disseminada – quase naturalizada – a relação empregada doméstica/patroa tenha sido pouco estudada pelas Ciências Sociais. 
Este artigo propõe como um dos objetivos mostrar a especificidade da relação patroa-empregada, buscando apresentar como ela se compôs e se reinventou enquanto instituição que pauta o mundo do trabalho ao longo dos diversos momentos da história brasileira. Além disso, a partir das falas das empregadas e patroas, bem como das expressões utilizadas em suas respectivas associações e agências de emprego, construiu-se um léxico do universo do trabalho doméstico  para entender as categorias que o permeiam, tais como «arrumadeira», «empregada», «babá», «cozinheira», «serviços gerais», «trabalhadora», «atestado de antecedentes», «referências», etc. 
Como foi dito anteriormente, no projeto que deu origem a este artigo, «acreditamos que, por meio de um incurso histórico, descobriremos a formação dessas classificações, em outras palavras, realizaremos como que uma arqueologia dessas categorias. Além dessas categorias formais, procuraremos compreender as representações que se forjam nessa relação social e que dão sentido a ela.» 
Portanto, este estudo busca usufruir as ferramentas teórico-metodológicas que a Antropologia oferece: explorar a versão nativa, o modo pelo qual as pessoas organizam o cotidiano e, portanto, conferem significados ao seu modo de viver. 
Dessa maneira, uma abordagem antropológica da relação institucionalizada entre patroas/empregadas permite entrever como essas pessoas lidam com sua rotina diária,  como essa relação compõe sentidos, cria expectativas, deposita valores e estabelece limites.

2. QUADRO DE REFERÊNCIAS

2.1. Procedimentos Metodológicos

Grande parte dos procedimentos metodológicos propostos foi cumprida. Foram realizadas entrevistas com domésticas e patroas. Em duas delas, patroas e empregadas eram da mesma residência. Dentre as domésticas entrevistadas, houve certa heterogeneidade de condições de trabalho: uma profissional «dormia no emprego», realizando serviços de «babá-arrumadeira»; outra «ia e voltava», realizando «serviços gerais»; a terceira era «diarista», «faxineira».
Não foram utilizados questionários, mas algumas perguntas estão presentes em quase todas as entrevistas, entre elas: «O que é uma boa patroa/empregada?», «Por que existe emprego doméstico no Brasil?», «No geral, como define a relação entre empregadas e patroas? Pacífica? Tumultuada?», «Qual é o horário de trabalho?», etc. Isso porque são perguntas que dão margem a respostas que indicam  pistas para os  questionamentos já expostos na introdução.
Sindicatos foram visitados. Na primeira visita ao SEDESP (Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo), uma secretária recepcionou o grupo. Segundo sua opinião, a Antropologia não tinha nenhuma relação com o serviço prestado pelo sindicato. Foi marcada uma entrevista com a presidente, uma advogada, para a semana seguinte. Na ocasião, a Dra. Margareth Carbinato recebeu muito bem o grupo,  oferecendo até mesmo um cafezinho, chamando sua secretária por meio de uma campainha. Muito solícita, ela reiteradamente se ofereceu para dar uma palestra na USP, caso o professor quisesse.
Quanto ao STDMSP (Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município de São Paulo), foi marcada por telefone a entrevista com sua presidente, Dejanira. Contudo, o grupo não foi recebido na data combinada, pois Dejanira tinha saído em função de uma emergência. A «viagem» não foi de todo perdida, posto que foi possível entrevistar uma associada que havia procurado o sindicato querendo saber sobre «seus direitos». A entrevista foi remarcada para o dia seguinte. Dejanira interrompeu várias vezes a conversa para receber telefonemas e membros da diretoria que vinham pedir sua assinatura em documentos. O encontro durou  menos de 30 minutos porque o sindicato fecha, religiosamente, às 16hs, horário em que os seguranças são dispensados.
A entrevista na Agência Nova Gaúcha foi muito interessante. Seu proprietário, Alexandre, recebeu muito bem o grupo e deu todas as informações  que foram pedidas, mesmo quando estranhava  perguntas como  «O que faz uma babá?». «Oras, cuida de criança!». 
Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas, constando dos anexos do projeto original. Os panfletos (SEDESP), a apostila do STDMSP, o livro da presidente do SEDESP, os sites dos sindicatos e da ONG «A patroa e sua empregada» também integram estes anexos e são utilizados como documentação na etnografia. 
É preciso dizer que  houve dificuldades para encontrar patroas e empregadas disponíveis e que quisessem dar entrevistas. Conseqüentemente, foi impossível observar o dia-a-dia de uma casa e coletar diretamente dados para a análise da interação entre empregadas e patroas. Assim sendo, diferentemente daquilo que o projeto anunciava como objeto, foi enfocada apenas a relação entre esses dois atores e não sua  interação.
O quadro teórico  cumpre, na verdade, duas funções: resgatar as raízes do serviço doméstico no Brasil (quadro histórico) e, ao mesmo tempo, os conceitos trabalhados pelo pensamento brasileiro para tratar desta  sociedadee de tão peculiar instituição, o serviço doméstico, ambígua por articular o público e o privado.

2.2. Quadro Teórico – Histórico

Quando o objeto de estudo foi escolhido, já se tinha em mente a análise de seu caráter disseminado e potencialmente conflituoso. A hipótese sugerida durante o projeto foi que essa tensão teria suas raízes na ambigüidade própria ao «emprego doméstico». Para analisar a relação de emprego – integrante do mundo público, formal, moderno, capitalista – quando realizada no espaço doméstico – privado, arbitrário, informal, tradicional – foi proposta a recuperação da conformação histórica dessa instituição. Ou seja, as categorias  «serviço», «trabalho» e «emprego» domésticos foram contextualizadas historicamente, bem como sua reinvenção ao longo dos diversos momentos da sociedade brasileira. Mas, como definir essa instituição? 
Lavadeiras - DebretA categoria «serviço doméstico», na acepção aqui utilizada, englobará todas as atribuições da casa realizadas por pessoas que não sejam da família. Deste modo, as conexões históricas entre o universo do trabalho doméstico e a herança escravocrata serão trazidas à tona, tendo como foco as relações entre o mundo privado e o público. Isso porque essas são categorias estruturais que se repõem naquela ambigüidade já referida, que mistura a casa e a rua, a família e o trabalho, a moral e as relações econômicas, as empregadas que «são da família» e seus irrisórios salários etc.
Sendo o ponto de partida o Brasil colônia, já de início surge um problema: como definir o que é privado, pois,  se vida privada contrapõe-se a vida pública e pressupõe o Estado moderno como critério de delimitação, a rigor a história da vida privada só seria possível a partir do século XIX. Uma solução é  ampliar o sentido do conceito para incluir o universo da intimidade e do cotidiano. Portanto, esse alargamento do conceito engloba indagações sobre as manifestações da intimidade em momentos em que seu espaço ainda não estava plenamente definido.
Nessa medida, é interessante começar pela obra Casa-Grande & Senzala, que deixa evidente esse mal-estar entre público e privado no Brasil já nas primeiras décadas do século. O espaço privado da casa-grande em sua relação com a senzala é eleito por Gilberto Freyre como produtor de uma sociabilidade que nos é peculiar e, no limite, brasileira. Somos, segundo a obra de Freyre, uma civilização que surgiu do espaço privado. É nele que se ensejam as relações que nos são típicas por serem tensas e, simultaneamente,  envolverem proximidade, num equilíbrio de antagonismos que matiza a violência com a doçura.
A proximidade entre escravos e senhores que se desenrola nesse locus específico, a grande propriedade, cria laços sentimentais que amenizam a violência. É neste espaço hierárquico, regido pela família patriarcal e escravista – logo, violenta – que se misturam sentimentos doces e de dominação, que criam e caracterizam a nossa cultura. É nesta moldura – do autoritarismo privado e adocicado – que Freyre aloca os escravos domésticos e seus serviços prestados na casa sob a vigilância das ia-iás. «Quanto às mães-pretas, referem às tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavam-se quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a quem se faziam todas as vontades: meninos tomavam-lhe a bênção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas de carro. E dia de festa, quem as visse anchas e enganjentas entre os brancos da casa, havia de supô-las senhoras bem-nascidas; nunca ex-escravas vindas da senzala. É natural que essa promoção de indivíduos à Casa-Grande, para o serviço doméstico mais fino, se fizesse atendendo a qualidades físicas e morais; e não à toa e desleixadamente. A negra ou mulata para dar de mamar a nhônhô, para niná-lo, preparar-lhe a comida e o banho morno, cuidar-lhe a roupa, contar-lhe histórias, às vezes substituir-lhe a própria mãe – é natural que fosse escolhida dentre as melhores escravas da senzala. Dentre as mais limpas, mais bonitas, mais fortes.»
Nesse trecho Freyre cita quase todos os pontos que desenvolve sobre esse assunto durante todo o livro. As histórias portuguesas, que sofrem alterações na boca das amas-de-leite, passam a ter, como personagens principais, bichos ao invés de príncipes (Idem. 2001.p.386 e 387). As canções de ninar, que embalavam o sono do iô-iô,  também foram mudadas, amolecidas pela boca negra, tal como as palavras das históriashistórias (p. 382 e 383). Amolecida e adoçada também fora a comida dada aos garotos e meninas. «À figura da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as primeiras palavras do português errado, o primeiro ‘padre-nosso’, a primeira ‘ave-maria’, o primeiro ‘vôte!’ ou ‘oxente’, que lhe dava o primeiro pirão com carne e ‘molho ferrugem’, ela própria amolengando a comida (…)» (p.389). E, para terminar, as mulatas  iniciavam os meninos no amor físico, transmitindo-lhes a primeira sensação de ser um homem completo.(p.343). Devotavam-lhes tão verdadeiro amor, que houve casos de sinhôs que se casaram com suas mucamas (p.395). Em outras situações, amores mais maternais foram dedicados às crianças: «(…) ao recém-nascido, reuniram-se, no Brasil, as duas correntes místicas: a portuguesa, de um lado; a africana de outro. Aquela representada pelo pai ou pelo pai e mãe brancos; esta, pela mãe índia ou negra, pela ama-de-leite, pela mãe de criação, pela mãe preta, pela escrava africana. Os cuidados profiláticos de mãe e ama confundiram-se sob a mesma onda de ternura maternal. Quer os cuidados de higiene do corpo, quer os espirituais contra quebrantos e o mau-olhado» (p.382). 
É interessante notar que os negros, sobretudo a negra, têm papel civilizador no modelo montado pelo «antropólogo» pernambucano. A mulher negra não aparece como pessoa dominada, subjugada pelas regras do senhor; ao contrário, ela cria, inventa, chantageia, seja por meio das comidas, das histórias, dos doces, da magia, da medicina tradicional e, até mesmo, por meio de sua própria sensualidade. Logo, é em função dessa estrutura hierárquica que se produz a «peculiaridade nacional», em que se tenta remediar, amansar, adoçar, dificultando uma formalidade na resolução de impasses. A relação formal remete-se à  igualdade e ao distanciamento dos corpos, ao menos ao reconhecimento do outro.
Entretanto, olhe-se mais de perto esses múltiplos serviços prestados pelos escravos e escravas dentro da casa. Será que eram apenas amas-de-leite as negras que cuidavam dos nho-nhôs? Ou seriam pajens, bás ou, ainda, somente amas? Parece haver uma indefinição ou variedade muito grande quanto aos personagens e nomes das pessoas responsáveis pelos serviços da casa.
Freyre, a partir dos anúncios de escravos fugidos, arrola as seguintes ocupações de escravos: «São freqüentes nos anúncios de jornais (…) as seguintes especializações entre os homens: catraeiro, lenhador, talhador de carne, carreiro, sapateiro, padeiro, pescador, sangrador, cozinheiro, cambiteiro, alfaiate, caiador, carpina, marceneiro e pajem. Entre as mulheres: engomadeira, lavadeira, costureira, doceira, ama-de-leite, marisqueira, enfermeira e mucama.»  Mesmo em Casa-Grande & Senzala , ele alterna o uso de escrava, sinhama, mucama, negra velha, mãe-preta, mulata, ama e ama-de-leite para se referir a essas negras próximas às crianças.
Naquela primeira lista, uma surpresa: pajem, hoje entendido como sinônimo de babá – ocupação feminina – consta da lista masculina e era a única ocupação doméstica. Esse significado parece ter sido mantido  no século XIX, em São Paulo: «(Correio Paulistano 17/02/1865) Atraz de santa Iphigenia aluga-se uma escrava de 14 annos para casa de família, afiancia-se sua conducta e um rapaz de 22 para serviço de pagem, muito diligente e fiel.«
Talvez o dicionário ajude a esclarecer este impasse: «sm 1. Na Idade Média, mancebo da nobreza que acompanhava um príncipe, um fidalgo, ou uma dama, para prestar-lhes certos serviços e iniciar-se na carreira das armas. 2. Nas touradas, cavaleiro que transmite ordens. Em navios de guerra, marinheiro que cuida da limpeza. sf  Ama-seca.»  Como pode ser visto, a palavra é primeiramente remetida ao masculino e, em múltiplos contextos, a um homem que presta serviços e também dá algumas ordens. Assim, «pagens» provavelmente eram os escravos  que prestavam toda espécie de serviço  dentro da casa senhorial. Esse outro anúncio de fuga de escravo revela mais detalhadamente esses serviços prestados pelo pagem «(Correio Paulistano, 06/05/1880): Juiz de Fora, escravo fugido. Acha-se fugido desde 1o de março do corrente, o escravo Theodoro (…) e tendo mais ou menos 22 annos, pagem de serviço doméstico acostumado a lidar com animaes, copeiro, entende do ofício de carpinteiro, sabe lidar com máquinas de corte (…)».
Quanto ao significado feminino de pajem no dicionário, refere-se à ex-ama-de-leite que, agora «seca», serviria a outro tipo de ocupação, sobretudo ao trato das crianças. Talvez por ser uma mulher «seca de leite» –  sendo o leite traço essencialmente feminino – tenha sido qualificada pelo substantivo anteriormente empregado no masculino.
Retornando aos anúncios, já se encontra nessas poucas linhas aquilo que era valorizado na escravaria doméstica: conduta afiançada pelo ex-dono (que aparecerá mais tarde sob a forma das «referências») e qualidades como «muito diligente e fiel». A diligência se refere ao afinco no trabalho e a fidelidade aos laços morais que ligariam escravo e senhor, indicando, assim, que o serviçal não fugiria nem se revoltaria. 
Os qualificativos  usados pelos senhores para propagandear os escravos («fiel», «diligente» ou mesmo «pagem», referindo-se à ama-seca) nos remetem à expressão «‘Servus non habent personam‘, de Marcel Mauss, indicando que o escravo não tem personalidade, nem corpo, nem antepassados, nem nome,  cognomeou bens próprios. O escravo entendido como corpo sem persona é, por definição, para o branco, o próprio «vazio social» (Idem. p.162). E justamente esse vazio social é preenchido pelas representações construídas pelos senhores, das quais são parte integrante os adjetivos acima expostos.
Pode-se ressaltar, ainda,  a idade da  escrava doméstica citada: «14 annos». Veremos que essa tenra idade se repete nos anúncios do século XIX paulistano e nas falas das empregadas domésticas entrevistadas. Ainda meninas, encarregar-se-ão não só do trato das crianças, como de todo o serviço da casa, algo que continua a acontecer nos dias de hoje. «(Correio Paulistano, 22/02/1865) Mulatinha. Nesta typographia se dirá quem vende uma mulatinha com 7 para 8 annos de edade, com princípios de costura e muito geitosa para carregar creanças.» (Correio Paulistano, 03/01/1886) «Uma bonita preta creoula desta cidade, muito nova, sadia, sabendo costurar, cosinhar, lavar, engommar, todo o serviço doméstico, e tratar de creanças etc. Trata-se na casa acima referida com o illm. Director da mesma o snr. Coronel Oliveira.» (Correio Paulistano, 06/01/1865) «Aluga-se uma creoula, sadia, muito própria para tratar de creanças, por ser muito carinhosa. Já sabe costuras, e engommar alguma cousa, sem vício nenhum: trata-se na rua do Braz defronte da igreja, armazém.» 
As «costuras» são referências comuns porque, desde a colônia, a tecelagem, fiação e confecção de roupas, principalmente a dos empregados, era considerada um serviço doméstico também a cargo das escravas e sinhás. «As atividades domésticas de homens e mulheres [durante a colônia], porém, não se resumiam à cozinha e suas dependências. A fiação do algodão e sua tecelagem, que visavam à confecção de roupas brancas masculinas e femininas e às vestimentas dos serviçais, consumiam parte do tempo dedicado ao trabalho doméstico, sobretudo dos escravos».
Neste último anúncio classificado, surgem as qualidades evidenciadas nessas serviçais do lar: o carinho com as crianças e a ausência de vícios. Quanto a estes últimos, Gilberto Freyre  ilustra quais eram: «O vício de comer terra era talvez o pior.(…) Havia negros que se suicidavam comendo terra. Do banzo passavam ao suicídio. (…) O vício do tabaco, fumado em cachimbo de pau ou de barro, ou mascado, provavelmente com uma folhinha ou duas de maconha ou diamba para aumentar o gosto do pecado, era mais comum. (…) Nas senzalas havia cachimbeiras inveteradas e até bebedeiras de fumo, isto é, negras que bebiam fumo. (…) Vício comum entre escravos do tempo do Império foi também o da cachaça (…). » Certamente quem fosse  amamentar os infantes não poderia ter vícios, pois deveria ser «sadio». Na atualidade, as babás também devem gostar de crianças, ter boa aparência (tal como as escravas domésticas), ser saudáveis, limpas e sem vícios, sobretudo não fumar, tal como se verá na descrição etnográfica.
Outras versões geram suspeitas sobre o quadro idílico pintado por Freyre, em que estão inseridas as amas dentro da casa-grande. Muitas vezes «aspirando a sair de seu estatuto aviltante, ‘seduzida e embalada’ por essa esperança, a mucama deixaria de lado sua ‘cria’ para fornecer ao nhonhozinho todo o carinho de que ele necessitasse. O arbítrio senhorial lograva extorquir da escrava um tipo especial de serviço que o simples salário não podia obter da ama-de-leite livre.»
Outros elementos surgiriam complicando um pouco mais o quadro anterior, principalmente no que concerne ao mercado urbano das amas-de-leite, onde se nota que os senhores exploravam suas negras, fazendo-as abdicar do trato dos próprios filhos. Fica clara a crueldade decorrente da escravidão nessa relação que muito foi enaltecida para subsidiar uma escravidão «adocicada» e na qual as «mães-pretas» eram quase um símbolo. Contudo, cada «filho branco» custava a essa «mãe» a renúncia do filho natural, muitas vezes vendido.
Os anúncios de jornal novamente são um bom sintoma desse processo. «(Correio Paulistano 05/01/1865) Escrava e filho. Quem quizer comprar uma mulata muito moça, sem vícios, sabendo cosinhar, lavar e engommar e estando com um filho de dous mezes e abundante leite, nesta typographia se dirá quem vende.»
Em 1872, um suíço – Charles Pradez- comenta anúncios semelhantes a esses publicados no Rio de Janeiro: «Uma coluna do Jornal do Commercio se enche todos os dias de anúncios de aluguel de amas-de-leite; para quem sabe do que se trata, cada linha representa um drama íntimo, a história do naufrágio de uma aflição santa ou indica uma cruel separação; cada anúncio significa lágrimas, luto e desespero! Apesar disso, o interesse pesa sobre essas coisas e outras, cada ama corresponde de 120 a 150 francos por mês. Tirar o filho de sua mãe! Não é atroz? Não é revoltante? Pois é: fala-se da emancipação diante de algumas pessoas mais ou menos interessadas em manter a ordem de coisas atual e elas responderão se é utópico, visionário, que os operários europeus são muito mais infelizes que os negros etc. etc.»  Nessa mesma linha de argumentação, Miriam Moreira Leite encaixa sua análise das fotos de amas: «Os retratos de amas-de-leite que conhecemos apresentam tão-somente a imagem positiva do relacionamento afetivo da ama vestida à européia, com o bebê branco ao colo. Mas é fácil verificar que (…) a prática da amamentação por escravas alugadas a particulares ou asilos de crianças abandonadas foi responsável por uma das formas mais sinistras de inter-relacionamento nos grupos de convívio. Além de privar os filhos de seu leite, as amas-de-leite eram exploradas fisicamente ao máximo, tanto quando eram alugadas a instituições para amamentar diversas crianças, como pelo período prolongado que se exigia que aleitassem». Algo formalmente análogo se passa nos dias de hoje: as mães da classe média e média alta, para ingressarem no mercado de trabalho, consideram imprescindível a doméstica dormir no serviço para cuidar de seus filhos. Deste modo, as empregadas são obrigadas a se apartar de seus rebentos deixando-os com parentes, ou na creche, enquanto cuidam dos filhos de sua patroa.
Se esses últimos anúncios apresentavam o quadro geral entre 1865 e a década de 1870, em princípios dos 1880 novidades começam a surgir : «amas brancas», «preferência por brancas ou estrangeiras», «preferência por captivas» e «ama se oferece» são termos que começam a pulular nesse tempo de transição.»(A Província de São Paulo, 11/01/1883) Ama de leite. Precisa-se de uma que seja sadia, preferindo-se a côr branca. Para tratar rua da Imperatriz n.2, 2o andar.» «(A Província de São Paulo, 03/03/1883) Ama. Precisa-se de uma preferindo estrangeira.» «(A Província de São Paulo, 04/10/1880) Criada. Precisa-se de uma para carregar criança. Prefere-se branca e estrangeira. Tratar na r. Direita n. 8.» «(A Província de São Paulo, 13/09/1880) Ama de leite. Uma boa ama de leite se offerece para receber e amamentar uma criança em sua casa, rua 21 de maio n.28, no Chá» «(A Província de São Paulo, 14/09/1880) Ama de leite. Precisa-se de uma que seja sadia: prefere-se captiva, sem filho. Para tratar na rua de Santo Amaro em frente ao matadouro.»
Esses novos termos indicam sinais de grandes modificações nos referenciais culturais, sendo decorrentes do processo de declínio do sistema escravista e do início da imigração. Uma aproximação mais detalhada desse contexto pode revelar os nexos  dessa mudança de «preferências».
Sintomático desses novos tempos de ares «civilizantes» é o anúncio de um produto considerado moderno: a farinha láctea. «A escassez da ama sadia e o seu preço elevado tem tornado a introdução da farinha láctea Nestlé um verdadeiro benefício para o Brasil. Hoje uma mãe pode ter a satisfação de criar seu filho com o leite se tiver pouco, sem risco de enfraquecer nem se sofrer na sua saúde (…)»   Aqui fica claro como a publicidade do produto estrangeiro tem que dialogar com os valores e o imaginário locais. Nessa medida, evidencia as benesses desse alimento para toda a nação, que poderá substituir as amas cada vez mais caras e menos sadias.
O anúncio revela, também, o imaginário existente em torno da amamentação materna pautada pelo receio de enfraquecimento e perda de saúde. Agora, porém, a fragilidade do bem-estar materno (remediado por produtos como a farinha láctea) parece preferível perante os «novos riscos» da amamentação por escravas (negras).  Houve nos jornais e nas escolas de medicina acaloradas discussões sobre os malefícios (nos quais em décadas anteriores não se tocara) da amamentação por amas, amas negras. A mãe branca, enquanto figura moral mais «elevada», agora poderá transmitir no leite tal qualidade a seu filho. «Na Europa há toda uma discussão sobre as vantagens do leite materno, a fim de garantir melhores cuidados ao bebê e, supostamente, transmitir-lhe, pelo leite, as qualidades naturais de sua mãe. Pouco a pouco o costume das amas-de-leite de aluguel declina, e o médico baseado numa nova especialidade – a puericultura -, intervém cada vez mais no cuidado dos bebês, em detrimento de práticas e da autoridade materna.»  Contudo, os hábitos sempre são mais arraigados do que as novas teorias; assim, uma mudança menos radical seria a contratação de amas brancas, melhor ainda se estrangeiras.
As novas imigrantes brancas, beneficiadas pelo contexto, usufruiriam o «nicho de mercado» já aberto pelas negras escravas, agora tornadas insalubres.  Alfabetizadas,  ofereciam-se nos jornais para amamentar filhos alheios na própria casa. Alencastro analisa argutamente esse novo quadro social pela mudança da partícula «se». «Uma oferta de senhora (…) que inverte o pronome pessoal se, mudando a partícula apassivadora do verbo pronominal em objeto direto, ativo: uma mucama é posta a alugar-se pelo seu proprietário, a senhora livre se aluga ela própria» (Idem. p. 64).
Há ainda aqueles senhores e senhoras que, impregnados da lógica da escravidão, são mais resistentes a esse processo de «modernização» que os retiraria da posição central do arbítrio e poder, dosados estes pelo uso da força física. Eles preferem as «captivas». A preferência por cor e  origem também se faz presente nos pedidos que as patroas, em 2003, fazem às agências de colocação de empregados domésticos. 
Definitivamente, os processos culturais têm uma  temporalidade peculiar, re-inventando e re-interpretando os artífices que ocupam quase o mesmo lugar nos sistemas de relações do serviço doméstico, há tanto tempo sedimentado.
É preciso, contudo, matizar a interpretação feita por Freyre, trazendo os estudos de outros historiadores no que tange à Colônia. E, ainda, faz-se necessário marcar a passagem para o Império, posto que esta narrativa é quase linear, aproveitando as categorias do serviço doméstico escravo, colonial e nordestino, somando-as aos exemplos do Segundo Reinado paulistano, para mostrar a permanência desses termos e funções.