Dalmolin

Bernadete Maria Dalmolin

Maria da Penha Vasconcellos.

 

 

O artigo aborda tema atual de saúde mental, em um cenário de tendência de reversão do modelo hospitalar, para uma ampliação significativa da rede extra-hospitalar, de base comunitária e territorial – promotora da reintegração social e da cidadania – tendo, como objeto de estudo, trajetórias empregadas no cotidiano das relações sociais de sujeitos que enfrentam o adoecimento psíquico, no espaço de uma cidade de porte médio. Com o propósito de compreender o sofrimento e de refletir a respeito da atenção psicossocial necessária, articulando sofrimento psíquico e espaço público, apresenta reflexões possibilitadas pelo acompanhamento de trajetórias de cinco sujeitos em sofrimento psíquico severo, em sua vida cotidiana. Propõe-se explicitar às instituições, que constituem o sistema de gestão de atenção à saúde mental, a importância da articulação do espaço público ao trabalho institucional, voltado para cuidar, incluir e humanizar a atenção nessa área.
Neste estudo, o sofrimento psíquico – “doença mental”, em psiquiatria – é entendido na dimensão da complexidade, em conformidade com o pensamento de Morin e Le Moigne: “O simples é sempre simplificado (…), mas tão grande é a tentação da clareza rápida (…), que esquecemos que não existem fenômenos simples, (…) porque uma idéia simples deve estar inserida para ser compreendida num sistema complexo de pensamentos e de experiências.” (p.251).
Essa categoria pode ser compreendida como uma manifestação de características psíquicas, que ocorre na vida da pessoa, e que envolve um conjunto de elementos que a constitui, seja de ordem orgânica, psíquica, social, cultural, religiosa, filosófica ou econômica. Esse tipo de manifestação repercute na história de vida pessoal, familiar e na rede de relações interpessoais, transcendendo, assim, os momentos pontuais, que caracterizam uma situação específica de «crise”, ou seja, a doença mental insere-se em um campo de conhecimento complexo.
Como a “doença” é parte da história do sujeito e pode manifestar-se em qualquer tempo de sua vida, faz-se necessário observar que ela não o desloca totalmente, tornando a vida um mal constante, ou um rol de fracassos e limitações, em outras palavras, a pessoa, ainda que vivendo essa condição, é portador de saúde mental e/ou um potencial para lidar com adversidades, que a ela se apresentem. Talvez, a negação das contradições, que o homem enfrenta consigo mesmo, tenha nos afastado da busca de «métodos» de intervenção, que possibilitem a descoberta das positividades, como fios que nos conduzam a uma aproximação com o mundo do sofredor psíquico, para nós, hermético e diferente. 
Há uma dinâmica, que se estabelece no processo das relações e em seus desdobramentos, para a qual sentimo-nos desafiadas a olhar – ainda que de forma limitada -, no sentido de compreender os mais diversos aspectos que configuram a vida cotidiana, e que nos mostram sujeitos singulares em seus contextos. «Cada um representa vários papéis sociais, segundo o que é na sua casa, no seu trabalho, com amigos ou com desconhecidos. Vê-se que cada ser tem uma multiplicidade de identidades, uma multiplicidade de personalidades nele próprio, um mundo de fantasmas e sonhos que acompanham a vida» (Morin, p.83-4).
Com vistas à compreensão dessa condição humana, a partir de outras leituras possíveis, recorremos a Morin que, ao propor o «pensamento complexo», opõe-se à forma reducionista e determinista de interpretar a realidade, de modo a provocar disjunção e redução na construção do pensamento, separando o sujeito do objeto, a alma do corpo, o sentimento da razão, a existência da essência, gerando a produção de conhecimentos especializados, fragmentados e parcelados, no sentido de dificultar a re-ligação do sujeito com o universo que o rodeia. Este é um pensamento consoante com o ocorrido, de forma predominante, no campo da saúde mental, a exemplo de olhares reducionistas, associados a uma cadeia linear de causa-efeito.
Segundo o pensamento complexo, o problema «não é reduzir nem separar, mas diferenciar e juntar”. O problema chave diz respeito a um pensamento que una, chamando a agregar, aos pilares do pensamento científico (ordem, separatibilidade e razão), um pensamento que comporte, em seu interior, um princípio de incompletude, de incerteza, de sensibilidade. Nesse sentido, há que se considerar diferentes aspectos de um mesmo fenômeno, entendendo que o ser humano, integrante do cosmos, está interligado a um emaranhado de relações, que não podem ser tratadas isoladamente, uma vez que se nutrem mutuamente.
Esse pensamento possibilita, também, o entendimento de que, nessa interação, a pessoa em sofrimento psíquico recebe fortes influências do campo social, por questões «instituídas» e que, ao mesmo tempo, retroage sobre essas determinações, imprimindo-lhes singularidades.
Dessa forma, pensar o doente mental, com base em uma construção individual ou individualista do mundo, não oferece meios para ultrapassar os valores da norma, da simplificação de um processo que se constituiu de um emaranhado complexo, “[…] é perder a riqueza dos elementos que se entrecruzam e se entrelaçam para formar a unidade da complexidade de um sujeito que vive uma condição humana, destruindo a variedade das complexidades que o teceram” (Morin, p.188).
Esse pensamento desafia, ainda, a unir/integrar, de modo complementar, questões antagônicas–consenso/conflito, lógica/estranhamento, inclusão/exclusão, autonomia/dependência, ordem/desordem – indissociáveis e indispensáveis – para a compreensão da realidade, como um jogo incessante e incerto, com múltiplas lógicas: um caráter dialógico (Morin e Le Moigne, p.204). Assim, quando consideramos duas maneiras de os serviços de saúde abordarem o sujeito com sofrimento mental – a manicomial (fechada) e a comunitária (aberta) -, estamos diante de um exemplo de relação organizacional dialógica, na mesma instituição. De outro modo, a partir do campo de pesquisa, percebemos que diferentes práticas terapêuticas são, freqüentemente, acionadas por familiares de sujeitos em sofrimento psíquico, compondo um conjunto de recursos, também, de caráter dialógico.
Essa forma de pensamento está apta «a reunir, contextualizar, globalizar, e, ao mesmo tempo, reconhecer o singular, o individual, o concreto» (Morin e Le Moigne, p.213), possibilitando a construção de uma complexa teia de relações. Os movimentos na vida cotidiana dão-se por meio dessas redes, entre diversos sistemas sociais, em diferentes domínios de conversação que, apesar de independentes, afetam-se mutuamente. Há, dessa forma, uma re-ligação entre os elementos que dão sentido àquilo que Morim chama de complexus, entendendo-se, por esse fenômeno, aquilo que se «tece junto». Neste sentido, pensar a complexidade é pensar um tecido (relações sociais e interpessoais), em que os fios paralelos não são apenas presos com amarras, confundindo-se, mas ligados, transversalmente, por uma trama (dinâmica das relações e ações), que os liga e religa, movimentando, novamente, todos os fios, e construindo uma outra textura, uma outra estampa (novas dinâmicas, novos encontros intersubjetivos). 
Embora vivamos as incessantes tentativas de eliminar incertezas, o indeterminado, o impreciso, somos por eles surpreendidos, como é o caso do adoecimento psíquico (que pode ser considerado um ruído, nos termos de Morin) e por tantos outros, que acompanham o cotidiano. Diante disso, há necessidade de negociações (com essas incertezas), na perspectiva de construir pontes, mesmo que provisórias que permitam um ir e vir, reconstruindo, no cotidiano, novas formas de lidar com a vida, sem que essas situações constituam, necessariamente, uma fatalidade, como dá a entender expressões recorrentes, a respeito de nossos interlocutores pesquisados: coitado, endoidou! Não tem cura
Etnografia do sofrimento: contribuições de um método para a compreensão do complexo mundo psíquico
Dada à natureza do objeto de pesquisa, procuramos um caminho que pudesse explorar as interações cotidianas e nos guiar nesse desconhecido emaranhado, que é o da “loucura”, procurando compreender o sofrimento e a própria assistência. Recorremos à antropologia, em particular a etnografia, para compreender o modo de vida dessas pessoas, circulando em espaços abertos, com a hipótese de que, se existe uma lógica típica de serviços de saúde, existe uma outra, na prática cotidiana dos sujeitos em sofrimento psíquico, que resulta em uma produção singular, constituída de redes de sustentação, de referências, construídas a partir de suas relações interpessoais, e, com isso, vislumbrar outras possibilidades, novos itinerários terapêuticos para pessoas que adoecem mentalmente, para além daqueles que se limitam ao percurso da institucionalização.
Para seleção dos sujeitos participantes do estudo, o ponto de partida foi o levantamento de internações psiquiátricas de moradores de um bairro da cidade, nos últimos anos, fornecido pela Secretaria de Saúde, após ter sido identificado como área que apresentava elevados índices de internações, por transtornos psíquicos. Em seguida, fomos sistematizando outros registros – observação direta, conversas informais, visitas, relatos de vizinhos, sobre quem eram os reconhecidos, na dinâmica social do bairro, como «doentes mentais». Aos poucos, procedemos às primeiras aproximações com esses sujeitos e seus familiares, na busca de reconhecer rotinas, assim como com os demais moradores, identificando expressões e manifestações peculiares, relacionadas aos distúrbios psíquicos, vivenciados por aqueles, no espaço urbano. 
Descrições iniciais do bairro permitiram observar que o “doente mental” vive um conjunto de rupturas internas, expressando comportamentos problemáticos que o descentram, tornando-o um estranho para si mesmo, e que famílias e vizinhança, em alguma medida, vinculam-no com o antes, com sua história de vida pessoal e familiar, de modo a (re)estabelecer conexões, que possibilitam não romper, radicalmente, com a identidade anterior: do bom rapaz, do trabalhador, do vizinho. Fica evidente que todos convivem com as dificuldades, decorrentes de sua condição de adoecimento, mas não se restringem a viver essa situação, nem têm presente, o tempo todo, essa «sintomatologia». 
Composto o repertório, aproximamo-nos do ponto de vista dos moradores. Cruzando informações e, por meio das observações, fomos selecionando os possíveis participantes, fase longa e trabalhosa, que só interrompemos, ao percebermos uma espécie de recorrência no conjunto das informações. Então, buscamos estabelecer mediações entre o nível de experiência dos sujeitos (relações sócio-culturais-afetivas) e os processos mais abrangentes, de modo a obter algum ordenamento. Partimos com um aporte teórico, ressignificado, diante do nosso objeto de estudo e da organização do espaço urbano, adotando categorias empregadas por Magnani – circuito, trajeto e pedaço – resultados de etnografias realizadas pelo autor e que demonstraram a existência de uma articulação nas relações, no que se refere à lógica de uso e apropriação dos diferentes espaços e equipamentos urbanos. 
Nessa fase da pesquisa, identificamos relações mais objetivas desses sujeitos com instituições, que oferecem tratamento, especificamente, o circuito ligado à atenção à saúde mental, que deu base geral para compreender as práticas terapêuticas mais utilizadas por moradores e, de forma mais visível, no campo institucional: serviços de saúde geral (pronto atendimento, hospitais gerais, farmácia pública), serviços de saúde mental (hospitais psiquiátricos e serviços de atenção diária), além de outros «apoiadores» institucionais (promotoria e defensoria pública), os quais ganham visibilidade na rede de proteção dos direitos dessas pessoas, sendo utilizados, principalmente, para garantir o acesso a bens e serviços de saúde. 
Posteriormente, aprofundamos os trajetos de cinco personagens “típicos”, identificados, no local, como pessoas que vivem a experiência do sofrimento psíquico grave, constituindo a população de estudo. 
Trajetos expressam dinâmicas sociais, relacionadas aos modos de ser e de viver no espaço do bairro, e ajudam a compreender como seus habitantes enfrentam as especificidades de situações locais. Assim, trajetos são entendidos como escolhas construídas e conquistadas no entrelaçamento das dimensões individuais e sociais, que indicam que  circunstâncias (pessoas, situações, lembranças) trazem-lhes suporte para se apropriarem de espaços, interagirem com pessoas, produzirem situações desejadas, Cartografamos os percursos desses sujeitos que, segundo sua condição, vão produzindo distintos caminhos, constituídos de determinadas redes (sociais, afetivas, de serviços de saúde), os quais foram ganhando forma e sentido, ao longo do trabalho, a partir da observação e relato dos próprios sujeitos da pesquisa.No entanto, ocorrem, também, nos entremeados desses percursos, as «não-escolhas» – situações não protagonizadas, nem desejadas por eles –, mas que estão instituídas e presentes, ao mesmo tempo, em suas vidas. Esse tensionamento de sujeitos, em certas situações, e de sujeitados, em outras, ora construindo «brechas de fuga», ora se rendendo ao que já não vem mais ao encontro de suas necessidades, aparece vivo e pulsante nas inter-relações cotidianas, expressando eficácia simbólica e social. 

Os participantes do estudo – Beija-Flor, João-de-Barro, Bem-Te-Vi, Pomba-Rola e Sabiá – tiveram os nomes substituídos por codinomes de pássaros regionais, para manter o anonimato dos mesmos:

Beija-Flor vivia entre “a captura e a liberdade”, pois passava metade do tempo internado em hospital psiquiátrico, sem o seu consentimento, e sem uma justificativa pautada no agravamento do seu problema de saúde, mas, antes, para aliviar a família, sob o suposto argumento de que na rua “se envareta fácil e arruma encrenca”, correndo o risco de se ferir. Na rua, pudemos identificar a composição de diversos cenários (reais e imaginários), que lhe possibilitavam dar novos sentidos à vida. 

João-de-Barro tinha uma relação muito intensa com instituições de saúde; então, buscamos compreender a leitura que fazia de cada uma delas, para entender, sobretudo, como resistia e enfrentava o jeito dominante, impregnado nos serviços, que fazia calar a sua voz. 

Bem-Te-Vi vivia entre duas instituições: uma pensão “protegida” e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), ambas dotadas de regras bastante restritivas; apesar disso, sabia tirar proveito de situações que o vitalizavam, especialmente, das atividades delegadas pelas instituições e, ao mesmo tempo, cavadas, por ele, na rua.

Pomba-Rola, após uma longa trajetória de luta para se aliviar da “doença”, que a afastou dos projetos de vida – trabalho, namoro, família –, restringiu seu espaço sócio-afetivo aos limites domésticos. 

Sabiá vivenciou, mais recentemente, o impacto do adoecimento psíquico, as situações de crise, o que nos possibilitou compreender melhor as repercussões dessa condição na sua vida familiar, afetiva e social. 

Assim, fomos captando as dinâmicas e constituindo os trajetos. Este estudo cumpriu os princípios éticos para pesquisa, que envolve seres humanos, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FSP/USP.
As tramas da loucura: das instituições de saúde aos espaços da cidade
Ao longo da pesquisa, aspectos pouco visíveis foram ganhando evidência. De um lado, a organização e dinâmica urbana desloca-se do uniforme e homogêneo, para dar lugar a um complexo sistema de equipamentos e recursos, conferindo sentidos diversos a seus moradores; do outro, as instituições de saúde se constituem em “tortuosos” caminhos, norteadas por visões e percepções, muitas vezes, distintas das de seus usuários. 
Ao nos aproximarmos das relações sociais e interpessoais, vividas por esses sujeitos, constatamos que suas interações e comportamentos sociais estavam diretamente relacionados aos espaços freqüentados por eles, tornando suas dinâmicas muito distintas, fazendo-nos perceber duas grandes cartografias: a das instituições de saúde e a do bairro. 
No âmbito institucional, sobretudo, hospitalar, as limitações tomavam uma dimensão grandiosa, a gravidade parecia acentuar-se: era o lugar do “fantasma da doença”, da pouca personalização, das incapacidades. No bairro, compreendido pelo espaço doméstico e pela rua – embora nesta, os ganhos se tornassem mais visíveis –, apesar das dificuldades e limitações, os sujeitos mantinham contatos importantes, encontravam saídas mais flexíveis. Aí, salientava-se um sujeito que, mesmo reconhecido por suas diferenças, preservava desejos e criava possibilidades, envolvendo-se em diferentes situações, na busca da construção de sua história. A instituição, dotada de rotinas e protocolos, para intervir sobre esse sofrimento humano, vai tornando o sujeito “paciente”, passivo e, muitas vezes, despojado de seus direitos e investimentos simbólicos. Em contrapartida, a rua, embora tenha regras, permite o exercício da liberdade, da negociação, da convivência, pautando-se mais pela vida do cidadão. 
São duas paisagens, que oferecem recursos distintos, embora se entrecruzem e se aproximem, em muitos momentos da vida dos protagonistas, em face da concepção de “doença mental”, oriunda da psiquiatria – discurso competente – dominante no circuito da atenção à saúde mental e disseminada no âmbito das famílias e da população do bairro. 

 

As delimitações do bairro compõem uma modulação do espaço público, análoga ao que Magnani denominou pedaço, em que são desfrutadas relações mais intensas desses sujeitos. Observa-se uma lógica de uso, que torna alguns locais diferentes de outros, ou seja, não se trata de qualquer espaço público. Trata-se de um espaço, nas proximidades de suas residências e, por vezes, de serviços de saúde, onde encontram diferentes formas de apropriação, construindo pontos de apoio, quer para o desenvolvimento da sociabilidade, do trabalho, de negociações, do exercício dos direitos, quer para dar vazão àquilo que ficou fragilizado, ou cristalizado, com a vinda do sofrimento psíquico, e para o qual não encontram saída satisfatória em outros espaços. Situação semelhante foi desvendada por Magnani, em etnografia sobre os surdos na cidade de São Paulo, quando observou que, em uma visão universalizante, eles eram tratados como deficientes; enquanto que, em espaços próprios e mais intensos de contato entre pares, aprimoravam seu principal elemento distintivo, a línguagem de sinais, e, com isso, a própria possibilidade de se desenvolverem, tornando-se, apenas, diferentes. Esse olhar contribuiu, em nosso universo, para relativizar noções generalizadoras, a respeito do grupo estudado, tais como a periculosidade, a incapacidade e a exclusão.
Se a história da psiquiatria foi mostrando que os loucos precisavam ser retirados da sociedade, por não conseguirem seguir as regras mínimas de convivência, ou, ainda, porque obstaculizavam o desenvolvimento econômico, podemos fazer um contraponto com a história vivida por nossos protagonistas no bairro. Do ponto de vista do trato com a cidade, podemos dizer que eles não se mostram sem rumo, nem perturbam a convivência. Ao contrário, vivem fraternalmente e se apropriam da cidade de tal maneira, que podem, não só nela viver, como ainda estabelecer estratégias de vida, de reforço de suas referências, de escolhas, o que torna esse pedaço um exercício vital para enfrentar outros momentos da existência. Paradoxalmente à história da psiquiatria, que construía serviços para “proteção” dessas pessoas, o que observamos é que, salvo uma ou outra situação mais delicada, espaços públicos fornecem elementos mais consistentes de proteção, uma vez que permitem equacionar a subjetividade e o desejo, no contexto das relações sociais.

 

Limpar jardim, comprar mercadorias, descobrir maneiras de interagir com pessoas e instituições, conseguir e desenvolver um trabalho, fazer amizades, descobrir direitos, obter remédio, sentir-se defensor do bairro, amigo do policial, namorar, ir à missa, dar bronca em um desafeto, brincar com uma criança, acompanhar o movimento da cidade, e tantas outras situações instauradas no espaço público, são estratégias dotadas de fundamental capital afetivo e simbólico, que alimentam esperanças, fazendo com que o desejo, ou o desamparo, possa encontrar meios de se exprimir. É, principalmente, no pedaço do bairro que os protagonistas podem exercitar e construir, com cada um dos fragmentos encontrados, os vínculos identitários, que fazem a sua própria sustentação. São espaços em que se tornam mais potentes e protegidos, para estabelecerem relações de troca, diante da sensação de perda do senso de continuidade de suas identidades, constantemente ameaçadas. 
Como exemplo emblemático da relevância desses espaços, registramos a diferença dos universos de dois protagonistas: Beija-Flor e Pomba-Rola. Enquanto ele se absorve na rua, durante todo o tempo possível, ela vive, quase exclusivamente, dentro do ambiente doméstico, limitando seu universo de trocas e possibilidades, com isso, aumentando sua dependência em quase todos os aspectos da vida – expressão dos limites de quem perdeu a esperança equilibrista de encadear seu mundo ao mundo social –, pela presença do sofrimento, tratamentos baseados na institucionalização e na medicalização. Embora possamos pensar que, no caso de Pomba-Rola, a “rua vai para dentro da casa”, por meio de uma família extensa, que a visita periodicamente, essas relações, mediadas por “aqueles que trazem”, não têm a mesma riqueza da experiência dos que dela se apropriam. 
Por outro lado, quando esses espaços se distanciam, ou se conectam com pessoas de fora, as diferenças ficam mais sensíveis e as relações podem ser vistas como ameaçadoras, excludentes e desestruturantes, silenciando suas vozes e requerendo outros comportamentos e estratégias. Isto pôde ser percebido, por exemplo, na relação com a escola, que não aceitou o candidato a aluno, quando o identificou como “doente mental”, ou no motorista do coletivo urbano, que deixava Beija-Flor no ponto de ônibus, por se tratar de uma pessoa “cambaleante”. Quando as relações passam a ser mediadas por instituições de saúde mental (e aparato em torno delas). Essas relações se “artificializam”, ou melhor, institucionalizam-se, de modo a deixar pouco do que é propriamente do sujeito, de alguém que necessita de suportes terapêuticos “continentes” e consistentes, para que a saúde se faça possível. Mais do que isso, a produção subjetiva sofre uma captura, salientando-se, no estabelecimento das terapêuticas, aquilo que pode ser regido pela norma e pelos padrões, definidos a priori

 

Cartografando as trajetórias nas instituições, do circuito da saúde, percebemos que, à primeira crise, há endereçamento para o sistema psiquiátrico tradicional (Hospital Psiquiátrico) – o batismo à institucionalização – realizado por profissionais de diferentes serviços da cidade e, com o passar do tempo, pela própria família. Cada serviço de saúde contribui, à sua maneira, para que o sujeito chegue a situações de extrema gravidade e tenha como destino, o hospital psiquiátrico; ou seja, à medida que restringem o acesso, não trabalham sua base territorial, desconhecem as pessoas e os problemas de saúde de sua região e não pensam projetos articulados, reiteram o sofrimento e a exclusão. A família, por desconhecer outras possibilidades, e sem suporte terapêutico, que alivie sua sobrecarga, não escapa da lógica instituída, naturalizando a institucionalização, caminho inevitável para situações psíquicas tão diversas. O hospital psiquiátrico, o único lugar a receber pessoas em situação de crise psíquica, mantém, de forma predominante, um conjunto de forças e mecanismos impositivos, altamente entrópicos, para a complexidade que emerge do sujeito, dificultando a reestruturação de seu mundo subjetivo, pois, além de reduzir as chances de expressão, com o “repertório terapêutico” disponibilizado reforça a necessidade de exclusão da pessoa, que vive o sofrimento. 
Para nos aproximarmos do sentimento vivido nessas circunstâncias, tomemos um diálogo, na família de Beija-Flor, acerca da dinâmica e dos pactos presentes na internação:

(irmão): _ Tu gostas tanto de sair, por que não queres ir ao hospital? Beija-Flor levanta o tom de voz e se dirige a mim:
– Se te levarem pra um lugar, te enrolarem e não te deixarem mais sair, o que tu acha? 
O irmão insiste: –mas tu não queres ir nem nas revisões?
– Revisões, revisões – retruca Beija-Flor: Já me levaram pra revisão e me deixaram lá não sei quanto tempo. Nunca vi revisão ter 30, 60 dias.

Beija-Flor refere-se à hospitalização, com revolta, e continua, falando mais que todos os presentes: – o hospital é muito sofrido, porque lá não tem o cara querer alguma coisa. E, neste momento, bem mais alterado, pede-me: – por favor, será que a gente podia deixar de falar de hospital, se não eu não falo mais.

O que dizer do questionamento perspicaz de Beija-Flor? O que acharíamos se nos levassem para um lugar, nos enrolassem e não nos deixassem sair, por trinta, sessenta dias? E, se isso se repetisse três a quatro vezes no ano? E, ainda, se, na instituição, tivéssemos que nos resignar com sua dinâmica e fazer silenciar o nosso eu, os nossos desejos, os nossos direitos, como nos mostrou, também, a mãe de João-de-Barro, ao relatar o desespero do filho quando, ao chegar ao hospital, foi impedido de entrar com seus pertences – uma sacola cheia das coisinhas boas, que ele próprio preparou -, ou, como o que Sabiá contou sobre o ocorrido com ele, quando um funcionário: jogou-lhe uma toalha, deu-lhe umas roupas velhas e amassadas e, depois, colocou-o no colete e na CTI? Destacamos alguns depoimentos:

Naquele dia, ele foi medicado no hospital geral e encaminhado pra internação, mas mandaram pra… (outro município) porque ele tava feio. No dia seguinte ele próprio foi na Secretaria de Saúde arrumar a vaga, o transporte, ajeitou tudo. Aí eu fui junto, mas quando chegou lá, quem disse que ele queria ficar, não queria mais! Lá ele não podia ficar com nada das suas coisas. (…) Lá foi muito ruim porque era longe e a visita era só de quinze minutos. A gente gastou mais de cem reais, eu e a minha filha, e só pudemos ficar com ele quinze minutos (depoimento de familiar de João-de-Barro).

Pra mim, foi um choque chegar no… (hospital psiquiátrico). Meio confuso, sem saber por que eu fui parar lá no meio de toda aquela gente. Me lembro que me mandaram tirar a roupa, me jogaram uma toalha e me deram umas roupas pra vestir, mas não roupa de hospital, umas roupas velhas, amassadas (depoimento de Sabiá).

Quando cheguei, me agitei porque não sabia que ia ter que ficar lá, aí me botaram na primeira semana num quartinho fechado. Aí eu enlouqueci mesmo. (…). É o que eles chamam de UTI. (depoimento de Sabiá).

Esses “detalhes”, do vivido, são rotinas institucionais, que chamam atenção para o nosso mundo de “lucidez”, em que o outro da relação – aquele que vive uma condição, por si, esfaceladora e angustiante, não participa na condição de sujeito, o que intensifica seu mal-estar, reforçando, a cada dia, o lugar de (des)valor, de sujeitado, de menos humano, como se não fizéssemos parte da mesma condição humana. 

 

Identificamos que a circularidade e a recorrência, pelo mesmo circuito, resultam mais da falta de outros itinerários terapêuticos, do que dos parcos benefícios provenientes dos recursos disponibilizados. A constatação dominante é a de que a riqueza das trajetórias cotidianas não consegue abrir “brechas” no conjunto de prescrições, metodicamente organizadas para “combater a doença”. A reincidência de internações, por falta de respostas positivas para as novas exigências que essa situação de vida impõe, denuncia, traz à tona a precariedade de ofertas, do script da relação terapêutica, em que os papéis estão dados, determinados e esperados, sem lugar para a singularidade da vida, como constitutiva de projetos terapêuticos. 
Nesse campo de tensões, as trajetórias se constituíram, fazendo com que cada universo singular tivesse marcas e ritmos peculiares, criados pelas possibilidades de experimentar diferentes espaços. Nessa construção, não obstante as “não-escolhas”, sujeitos investem tempo em determinados planos, de significativo valor social, cultural e afetivo, mostrando que, mesmo em presença do sofrimento, há sempre a produção de novos mapas existenciais.
Foi assim que observamos, em Beija-Flor, como a rua permite diversidade para (re)compor cenários velozes e, por vezes, imaginários do campo psíquico, dando novos sentidos à existência e concretizando projetos. Na rua, dá-se o encontro de momentos lúdicos de um rapaz que, aos quarenta anos, conserva um visual de menino e mantém desejos de ter amigos, namorada, casamento e trabalho. Nesse cenário, apreendemos o investimento diário em um modo de existência masculino, articulando gênero e trabalho, atributos que fazem parte de sua identificação com os códigos do lugar. O trabalho se lhe apresenta, não como atividade econômica produtiva, mas com um caráter de legitimidade social.
Com Sabiá, presenciamos o desmoronamento de um território psicossocial, de como o processo inicial de uma crise, seguida de longas e sucessivas internações, privaram-no de relações sociais e familiares, aprofundando fissuras no processo de produção do eu e do mundo. Marcas foram aparecendo, ao olhar para trás, e perceber as lacunas deixadas por amigos, irmãos, pelas festas, os quais apareciam, apenas, como registro na sua memória. Retornando a uma casa quase “vazia”, teve que tolerar um longo ciclo, até a chegada do inverno, quando a família retorna “ao ninho”, trazendo-lhe, novamente, o aconchego, a proteção e, com isso, a progressiva reconstituição de seu território psicossocial e de sua autonomia.
João-de-Barro ensinou-nos que a luta e a resistência contra limitações, oriundas da existência-sofrimento, precisam ser constantes, e dizem respeito à amplitude da vida. É ele que mais sente o esfacelamento de sua identidade. De operário, marido, pai, morador da sua própria casa, passou a ser assegurado, depois, aposentado por invalidez, separado (da esposa e filho), voltou a morar com os pais e a viver um conjunto de outros fluxos existenciais.  Isso o inquieta, desestabilizando-o emocionalmente, de forma recorrente, o que tem tornado alguns momentos bastante difíceis, de grande confusão, e de poucos avanços, em termos de ação terapêutica. Mas, ele fisga, no contexto problemático que se delineia, todas as possibilidades que acredita serem benéficas para sua recomposição, sendo o grande “cavador” do sistema de saúde, para “manter-se vivo”, e provando que a reivindicação e a persistência, ainda que, por vezes, pouco toleradas, possibilitam uma rede mais densa e um lugar mais cidadão. Em seu percurso, merecem destaque a promotoria e a defensoria públicas que, como ele, perceberam que as ofertas de saúde mental devem ser acompanhadas de outras passagens, articulando o mundo subjetivo e o espaço urbano.
Pomba-Rola expressa os limites de quem perdeu a esperança equilibrista de encadear seu mundo ao mundo social, pela presença do sofrimento. A convivência com longos anos de um funcionamento estranho/insólito e a difícil lida com essa condição humana parecem ter trazido, junto, o fracasso dos papéis esperados para uma mulher de sua idade: o namoro, o casamento, a família. Apesar disso, esse é o campo que permite maior interlocução e sentido à sua existência. Pomba-Rola explicita a necessidade de se analisarem as questões de gênero, construídas na vida familiar e social de pessoas, em situações parecidas à sua.
Bem-te-Vi vive uma situação peculiar, em relação aos demais. Mora em uma “pensão”, distante da família biológica, e faz um grande exercício para alargar suas redes de sociabilidade. Com a vizinhança, apesar das restrições impostas para sair de casa, consegue estabelecer relações acolhedoras e de trabalho, mas é com o serviço de saúde, que se instaura a grande novidade nesse contexto, ao captar e, em alguma medida, investir no trabalho de office boy, como abertura para o exterior, onde reencontra a possibilidade de produzir obras, valor social, afetividade e liberdade. 
Esses percursos revelam um entrecruzamento de temas, que expressam o desejo de viver e de pertencer a um lugar social: falam da luta para evitar perdas (de referências) surgidas por ocasião do adoecimento (buscando a preservação e reconstrução da identidade), da associação aos códigos do lugar (trabalho, gênero, família, religião), da manutenção e do fortalecimento dos vínculos sociais (trocas, alianças, interações na rede social) e da busca de autonomia e liberdade, para circular e reconstruir suas experiências, tanto subjetiva, como objetivamente.
Considerações finais – Dos fios cotidianos, a trama que ensina
Na riqueza desse percurso, as inter-relações vividas nos espaços da cidade apresentaram-se como focos mais ativos de subjetivação desses sujeitos, dado que é, nessas circunstâncias, que aprendem regras, constroem estratégias, exercem trocas, forjam alianças, driblam repressões, criam saídas ou, no limite, mantêm-se conectados ao território imaginário, como via possível para sobreviverem ao turbilhão do adoecimento. A incorporação do espaço público não se coloca em oposição aos demais, mas, como parte fundamental das estratégias mais amplas de suas vidas. 
Dessa forma, trazer a cidade, como espaço de convivência e de prática, como ação terapêutica estruturada e/ou não, faz a vida ganhar outras dimensões, não só para as pessoas em sofrimento e suas famílias, como para todos os envolvidos no universo dos serviços de saúde mental, provocando rupturas ao modelo vigente. 
Do ponto de vista da prática terapêutica, esta ganharia mais consistência, por possibilitar um encontro entre os territórios geográfico e existencial, nascedouro de uma força de produção de modos de ser e de sentir, uma arena de subjetividades, tecidas na relação intersubjetiva, no espaço da cidade, e que permite agregar pessoas, signos, fatos, acontecimentos, emoções, sentimentos, normas, solidariedade, constituindo potentes roteiros de passagem.
A análise ajuda, ainda, a repensar o território, conceito “engessado” na prática dos serviços, por girar mais em torno da necessidade da instituição de saúde e menos do sentido produzido na vida das pessoas do local, perdendo de vista a sensibilidade à lógica impressa no cotidiano. Essa situação complexa e conflituosa pode apresentar-se como oportunidade para profissionais de diferentes serviços de saúde problematizarem suas concepções e práticas, e se posicionarem de outro lugar, onde a instabilidade, as incertezas, a desorganização e a reorganização façam parte da história a ser apreendida, a cada momento, a cada nova situação. Dessa forma, seria possível criar novos papéis, novos sentidos, buscando superações do que, há muito, não responde ao universo de “usuários” de saúde mental do município, que se sentem inseguros e desrespeitados, pela falta de responsabilização das instituições para com eles e suas problemáticas. 
O desafio: desenvolver “tecnologias de saúde”, que possibilitem tecer, junto com o sujeito, novas redes, novos itinerários, para os quais seus investimentos façam sentido, de modo que a subjetividade petrificada possa vir a vitalizar-se e, o que era desejo despotencializado, ser reativado, buscando fisgar, nas próprias trajetórias,“elementos que possam, eventualmente, funcionar como componentes dessas redes; identificar focos susceptíveis de fazer a existência do (sofredor psíquico) bifurcar em novas direções, de modo que territórios de vida possam vir a ganhar consistência” (Rolnik, p.91). É desses enlaces do sujeito com o campo sócio-cultural que, acreditamos, seja possível a criação de novos itinerários, com mais ruas que clausuras, mais fluxos que fixos, mais escuta que contenções, mais acolhimento que retórica, mais sensibilidade que protocolos, mais colorido que escuridão, mais resistência que subordinação, mais tensão que passividade, mais diversidade que normalização, mais metamorfose que estagnação, mais autonomização que passatempo e, para além da doença e do sofrimento, mais saúde, mais alteridade, mais subjetividades autônomas e livres para o mundo “psi”.
A partir dessa perspectiva, necessário se faz que serviços de saúde mental, em especial, equipamentos “substitutivos”, aprofundem discussões acerca da real missão de cada um para com a população, que sente e sofre mentalmente. Reconhecemos a necessidade da presença e intervenção das instituições de saúde mental, em diferentes momentos e situações da vida desses sujeitos e de suas famílias, contudo, de modo a preservar os vínculos e comprometendo-se, desde o resguardo e proteção, quando a crise se intensifica, até o apoio às possibilidades de autonomização de suas ações, afirmando-os como sujeitos de direitos. 

Enfermeira, doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Professora da Universidade de Passo Fundo/RS.
Psicóloga, doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP/SP, Professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da FSP/USP/SP.
Referências

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Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget; 1990.
Morin E. Ciência com consciência. 2. ed. Rio de Janeiro: Berhand Brasil; 1998.
Magnani JGC. De perto e de dentro: nota para uma etnografia urbana. Rev. Brasil. Ciências Sociais 2002; 17(49): 11-29.
Magnani JGC. A antropologia urbana e os desafios da metrópole. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP 2003; 15 (1): 81-95.
Rolnik S. Clínica Nômade. In: Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia: A Casa (Orgs.). Crise e cidade. São Paulo: Educ; 2000. p. 83-97.