Rita Amaral

 

Coroa central, símbolo de Xangô, no Axé Ilê ObáNo dia 16 de agosto de 1990 surge um fato inédito na história de São Paulo. O tombamento, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), do Axé Ilê Obá, um terreiro de candomblé de nação ketu, localizado na Vila Facchini, na capital de São Paulo. Além de algumas notas em jornais, pouco se falou sobre o assunto. Tanto a comunidade conhecida como «povo-de-santo», quanto a academia silenciaram sobre o fato. Em todo caso, quem cala, consente; o que já é alguma coisa, pois este tombamento coloca em evidência a possibilidade de repensar o conceito de patrimônio histórico e cultural e seus modos de preservação, ao mesmo tempo em que dá um exemplo concreto de uma política cultural avançada, levando em consideração o conjunto dos valores culturais de um grupo, mesmo se eles não têm sido reconhecidos como tais pela história oficial.Um resumo do processo de tombamento do Axé Ilê Obá é necessário, antes de prosseguirmos.

Em 1986, quando estive no Axé Ilê Obá pela primeira vez, à procura de informações sobre a cultura material do candomblé paulista (juntamente com outros colegas), a mentalidade preservacionista de «mãe» Sylvia de Oxalá (a ialorixá da casa) já se mostrava de modo muito claro: pensava, segundo suas palavras, em «montar um museu» com as roupas e objetos religiosos de seu tio, o «pai» Caio de Xangô, seu antecessor, preservando, desse modo, a memória do terreiro. Lembro que, neste dia, fizemos muitas perguntas sobre detalhes da casa, da construção e dos assentamentos que talvez lhe tenham parecido estranhas. Essas informações recolhidas, entretanto,  mostraram-se de grande utilidade também para o terreiro já em 1987, quando «mãe» Sylvia  pediu ajuda para sua tentativa de conseguir o tombamento da casa como patrimônio histórico. Sabendo que a edificação contava, na época, apenas 12 anos, não correspondia a nenhum estilo arquitetônico definido e conhecendo a política de preservação dos órgãos competentes, tivemos, a princípio, um certo receio em dar-lhe apoio à idéia, ao mesmo tempo em que acreditávamos numa renovação dos conceitos que norteiam a noção de patrimônio cultural. Resolvemos dar-lhe apoio naquilo que nos fosse possível.

Ao preparar o dossiê do Axé Ilê Obá, exigido pelo CONDEPHAAT, ao mesmo em que reconstruía a história do terreiro, aprendi muito. E entendi a importância e a necessidade de preservação daquele espaço, não só para a comunidade do terreiro (cerca de 120 pessoas nesta época), mas também para o candomblé paulista.

Construído em 1974, por Caio Egydio de Souza Aranha com ajuda da comunidade (incluindo gente que se transferiu da umbanda para o candomblé juntamente com «pai» Caio), o Axé Ilê Obá é uma construção de 4.000m2, com amplo barracão, dependências para os assentamentos dos orixás (quarto de Oxalá, de Ogum, Oxum, Xangô etc.), para as obrigações do terreiro (ampla cozinha, com fogão de lenha e a gás, roncó, poço, sala para jogo de búzios etc.) e para os que residem no terreiro. Os planos de Caio de Xangô incluíam a transformação da casa num «seminário» de candomblé, onde os iniciados viveriam durante cerca de sete anos, tempo considerado necessário para a formação de um sacerdote no candomblé. É por este motivo que na fachada do terreiro se lê: «Aché [sic] Ilê Obá – 1o. Seminário de Candomblé do Brasil».

Procissão das Águas de Oxalá do terreiro Axé Ilê ObáCom a morte de Caio, em 1984, seu cargo foi ocupado por Sylvia de Oxalá, sua sobrinha e filha-de-santo. Mas, sendo solteiro ao morrer, Caio deixara como herdeiros legais outros sobrinhos, nem todos ligados ao candomblé. Além de outras propriedades, o Axé Ilê Obá, edificação e terreno, também entraria na partilha. Sylvia conta que procurou seus irmãos e lhes pediu que abrissem mão do Axé. Sendo uma propriedade valiosa e bem localizada, eles não aceitaram.

Colocava-se então o problema: como conseguir outro espaço de mesmas dimensões, capaz de abrigar tantas  pessoas? E os assentamentos, enterrados sob a construção? Aqueles que ajudaram, com trabalho e dinheiro, a construção e o crescimento do terreiro, não teriam o direito de opinar? E a comunidade que freqüenta o terreiro, consultas os caboclos nos toques de quarta-feira, seria levada em consideração? A sobrevivência do Axé Ilê Obá dependia muito de suas instalações.

Os primeiros dados foram entregues ao CONDEPHAAT no final de 1987 e em abril de 1988 foi aprovada a abertura do processo de estudo do tombamento. Uma notícia feliz e que trouxe um fio de esperança aos filhos da  casa e à própria Sylvia.

Nessa época, alguns especialistas (arquitetos, historiadores, sociólogos, antropólogos) mostravam-se bastante  céticos quanto à possibilidade de um parecer positivo do CONDEPHAAT: construção nova, sem estilo, candomblé  paulista, «sem tradição»… 

Mesmo havendo o precedente do tombamento da Casa Branca, na Bahia, pensava-se não no candomblé, mas numa tradição que parecia relacionada à idéia de uma certa «pureza» do candomblé  baiano. Neste sentido, o discurso de religiosos e acadêmicos coincidia.

Este argumento traz em seu bojo a visão, hoje já superada, de tradição como a continuidade do mesmo. «Cultura em conserva», como dizia Bastide. Nesta concepção, a tradição é estática, fria, repetitiva. Mas mesmo para os que pensam deste modo é possível lembrar que o candomblé (ou outras manifestações religiosas de origem africana, tenham o nome que tiverem) é uma religião com cerca de 400 anos. Deve ser importante se ela está situada, neste momento, em Salvador, São Paulo ou Porto Alegre? É em nome desses 400 anos que se tomba o Axé Ilê Obá. Em nome dos 400 anos de luta para sobreviver à repressão e todos tipo de dificuldades que seus adeptos enfrentaram por toda parte.

O CONDEPHAAT mostra, com esse tombamento, que é possível dar passos efetivos para a renovação do conceito de patrimônio cultural, especialmente investindo de dinamismo o conceito de tradição. Já não é mais possível pensar em «tradição congelada» ou separada da praxis dos grupos; nem, também, recortada em arquitetura ou acontecimentos datados. As tradições são construídas diariamente, inventadas, reinventadas, abandonadas ou recuperadas. Aos órgãos de defesa cabe garantir as condições para que isso se dê.

Mãe Sylvia de OxaláForam centenas de páginas de informações, fotos, genealogias, explicações, plantas arquitetônicas, bibliografias, cartas, telegramas (e pedidos aos orixás, diz «mãe» Sylvia) até que finalmente, em 23 de abril de 1990, o Colegiado do CONDEPHAAT deliberou e  aprovou, por maioria (1 voto de abstenção) o tombamento do Axé Ilê Obá como patrimônio cultural, considerando-o como um exemplo típico da formação das casas de culto em São Paulo, conforme consta no Diário Oficial de 16 de agosto de 1990.

Vitória das religiões afro-brasileiras, que vêem reconhecidas como legítimas suas práticas no maior centro urbano do país, lugar da ordem econômica e pretenso racionalismo cético. Vitória do Axé Ilê Obá e do CONDEPHAAT, que propõe, com esse tombamento, a mudança efetiva do ponto de vista «oficial» das políticas culturais incorporando, na prática, as discussões que vêm sendo feitas sobre o tema.

O tombamento do Axé Ilê Obá certamente não garante que ele mantenha o culto da forma como vem fazendo até aqui. Mas garante, minimamente, a liberdade de escolha do próprio destino pelo grupo. E esta liberdade, sim, pode ser entendida como o verdadeiro patrimônio cultural».

(Publicado originalmente em Comunicações do ISER no. 41, ISER, Rio de Janeiro, 1991)

Bibliografia

MAGNANI, José Guilherme Cantor. «Pensar Grande o Patrimônio Cultural» In: Revista Lua Nova, n.32, 1983.

VELHO, Gilberto. «Antropologia e Patrimônio Cultural» In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no 20, 1984.