Tendo me dedicado durante a minha pós-graduação em Antropologia Social à reflexão antropológica a respeito de temáticas históricas (Frehse 1999, 2004 e 2005a), gostaria, neste texto, reformulado especialmente para integrar esta edição comemorativa da revista Cadernos de Campo, de refletir sobre o rendimento da etnografia para o estudo antropológico de temáticas históricas. Considerando-se que esse tipo de investigação depende fortemente da análise de documentos históricos, quais as potencialidades da etnografia para esse tipo de pesquisa no âmbito da antropologia? 

O objetivo de enfrentar essa questão inspirou a elaboração deste artigo. Para fazê-lo nos limites do presente texto, discutirei a problemática a partir das balizas teórico-metodológicas que nortearam a pesquisa de que resultou a minha tese de doutorado (Frehse 2004). Buscarei, à luz delas, explorar especificamente as potencialidades de uma etnografia das ruas centrais de São Paulo entre o início do século XIX e o início do XX. Foi este o cenário espaço-temporal de referência para a apreensão de transformações nas regras de comportamento corporal e de sociabilidade na cidade então; transformações essas que me interessaram por aquilo que poderiam revelar a respeito da maneira como a sociedade paulistana da época se ajustou, em termos culturais, à possibilidade histórica da modernidade no momento mesmo em que esta foi começando a fazer-se presente em São Paulo, em meio à crescente prosperidade das exportações cafeeiras do interior da província e à decadência da escravidão no país. 

No intuito de trazer à tona essas potencialidades, é necessário antes demonstrar por que a etnografia pode perpassar também estudos antropológicos referentes a temáticas históricas. Essa é uma etapa relevante para a reflexão, dada a associação quase imediata que, desde a famosa introdução de Argonautas do Pacífico Ocidental, costuma ser feita, na disciplina, entre etnografia e uma metodologia baseada no uso da chamada “observação participante” durante o chamado “trabalho de campo”. O estudo de temáticas históricas evidentemente vai na contramão de tais preceitos: é impossível fazer “observação participante”, e o “campo” é o arquivo. Há como, nesse contexto, falar em etnografia? 

A meu ver, sim, já que esta é perpassada por uma perspectiva epistemológica muito específica: aquilo que chamarei de perspectiva etnográfica. Com o objetivo de provar a pertinência do argumento, submeterei o meu próprio estudo de doutorado a um estranhamento a posteriori, a fim de avaliar nele a presença do recurso à etnografia. Será então possível destacar que a perspectiva etnográfica carrega consigo potencialidades de cunho teórico-metodológico e literário para o estudo antropológico das ruas paulistanas do passado oitocentista, a despeito das inevitáveis limitações que a etnografia apresenta para o trato de temáticas históricas. 
A etnografia como perspectiva epistemológica

Se a antropologia se particulariza por, como assinala Eduardo Viveiros de Castro ([1998] 2002), “dialogar para valer”, num mesmo “plano epistemológico”, com aqueles que são objeto do discurso antropológico, o que caracteriza tal empreendimento como “antropológico” quando o que se pretende é analisar práticas culturais vigentes em um contexto espaço-temporal que não é de forma alguma aquele em que vive o pesquisador que sobre elas se debruça?

No meu modo de ver, a característica distintiva é que, mesmo quando o arquivo é o “campo” no qual transcorre a pesquisa empírica, esta permanece orientada, em termos epistemológicos, pela ênfase num modo de conhecer que é propriamente etnográfico, quando o pesquisador recorre a sua formação antropológica para analisar o contexto espaço-temporal em questão. A etnografia envolve uma determinada perspectiva de conhecimento da vida social que leva o antropólogo a, no contato com material histórico, atentar para aspectos que os colegas historiadores, em contato com a mesma documentação, deixam em segundo plano em favor de outros dos quais o antropólogo, por sua vez, passa ao largo. De que perspectiva se trata?

A fim de encontrar uma resposta há que se contemplar, mesmo que brevemente, o debate a respeito das características da etnografia como recurso célebre da antropologia no mínimo desde os estudos pioneiros de Malinowski. Para este autor, “etnografia” é o rótulo de uma ciência ([1922]1978: 18). Outros antropólogos evocam a noção para aludir à experiência cognitiva de cunho existencial forjada no estranhamento das distâncias e proximidades entre as referências (culturais e teóricas) do pesquisador e aquelas dos “outros” que ele estuda (cf., por exemplo, as notórias considerações de Lévi-Strauss [1958]1970: 16 e de Geertz [1973]2000: 6, mas também de Lévi-Strauss [1960]1973: 16 e de Geertz 1988, desenvolvidas, no cenário acadêmico nacional, por Peirano 1995 e Goldman 2001). Em diálogo com essas concepções todas, há quem argumente especificamente que “etnografia” rotularia um “método” específico da antropologia para estudar grupos humanos (Magnani 2002: 17). 

Paralelamente a essas reflexões metodológicas, consolidaram-se, sobretudo a partir da década de 1980, outras, mais fortemente referidas ao papel político-social da etnografia. O historiador da antropologia James Clifford foi pioneiro em conceber a etnografia essencialmente como uma negociação política que marca o contato entre antropólogo e nativos durante a pesquisa de campo e a formalização textual da interpretação dos resultados da investigação ([1983]2002: 43). Dialogando com essa visão, ganharam espaço outras que visavam enfatizar, por meio do termo, uma forma específica de representação textual da análise antropológica (cf., por exemplo, Marcus e Cushman 1982; Clifford e Marcus 1986; Geertz 1988). 

Em meio a essa plêiade de pontos de vista, interessam-me particularmente as referências à experiência cognitiva implícita à etnografia. Esse tipo de ênfase se faz presente num debate amplo que, vigente não apenas no cenário acadêmico internacional, mas nacional atualmente, fornece esclarecedoras argumentações em relação ao fato de que a etnografia de forma alguma se restringe ao contato tête-à-tête com os nativos: o “campo” do trabalho de campo antropológico pode ser também o arquivo. Cecília McCallum, em particular, reconhece na etnografia a “postura epistemológica que define a antropologia” (McCallum 2001: 6). E isso porque os dados na pesquisa antropológica constituiriam um “fato social total”: a etnografia fundamenta-se num duplo “processo de objetivação” do etnógrafo, que aprecia os processos de “objetivação” vividos pelos outros que estuda para, num segundo momento, “auto-objetivar-se” por meio da análise e da descrição que faz do contexto apreendido (Idem: 8-9). Argumentando nesses termos, a autora acaba por trazer para o primeiro plano que à etnografia, tão decisiva para um conhecimento de cunho antropológico, está implícito um modo de conhecer a realidade sociocultural. É uma “postura” perante o conhecimento, uma maneira de justamente posicionar-se perante o contexto de estudo durante e após o trabalho de campo, nas etapas de análise e de interpretação dos dados. 

Essa é a associação mais explícita que pude encontrar entre etnografia e epistemologia. Importa, para os fins deste texto, que ela abre espaço para uma concepção alternativa de etnografia, mais “liberta”, por assim dizer, da associação automática com o trabalho de campo baseado no contato físico, tête-à-tête, com os sujeitos a serem estudados. E isso por mais que McCallum tenha, ela mesma, realizado trabalho de campo para a abordagem de antropologia da saúde que apresenta em seu estudo (2001). 

Ancorada nessa argumentação, gostaria de, parodiando o provérbio, “aumentar um ponto” desse “conto”. Ou diminuir, considerando-se que parto de uma dimensão epistemológica específica embutida na noção de “objetivação dupla”. No meu modo de ver, esta ocorre também quando o contato com os processos de objetivação dos “outros” e do próprio antropólogo é mediado particularmente por documentos históricos. McCallum preconiza a existência da dupla objetivação inspirada nas considerações de Lévi-Strauss ([1950]1997) sobre a noção maussiana de “fato social total”. Menos do que recuperá-las aqui, importa enfatizar que há embutida nelas a proposição de um modo específico de conhecer a vida social. E é justamente esse modo de conhecer que é ensinado ao estudante de antropologia quando este toma contato com a noção de etnografia. Aprender a “fazer etnografia” é aprender, antes de tudo, a impregnar corpo e alma, inteligência e sensibilidade da imprescindibilidade da busca pelo “diálogo para valer”. E isso, mesmo sabendo que o conhecimento antropológico é sempre menos do que aquilo que o outro diz e sempre mais do que aquilo que se poderia dizer sem o outro. Ora, precisamente esse fundamento epistemológico da etnografia abre espaço para que se a reconheça ativa em relação aos mais diversos “campos” de estudo, quando o pesquisador se propõe uma pesquisa antropológica. A consciência da necessidade do “diálogo para valer” é o ponto para o qual convergem as impressões coletadas mais ou menos aleatoriamente em campo, seja quando o campo é o campo tradicional do trabalho antropológico, seja quando é o arquivo. É por serem submetidos a essa consciência que os dados coletados pelo antropólogo via contato direto ou indireto com os sujeitos estudados se transformam em dados propriamente etnográficos. 

No intuito de ressaltar essa dimensão do vínculo entre etnografia e epistemologia, privilegio relacionar etnografia a uma perspectiva epistemológica. Aquilo que chamo de perspectiva etnográfica é forjada na metáfora da perspectiva para destacar, na concepção de etnografia, a sua dimensão de ponto de fuga para o qual converge a maneira de o pesquisador apreender, analisar, interpretar, representar e, assim, conhecer a vida social, independentemente de sua forma de contato com o seu “campo” empírico de estudo. 

Trata-se, por isso mesmo, de um modo de conhecer a realidade que impregna todas as etapas metodológicas envolvidas na realização de uma pesquisa antropológica. Perpassa a formulação da questão teórica, a definição do objeto, do cenário espaço-temporal empírico de referência; envolve a construção da referência metodológica, o levantamento, a sistematização e análise dos dados e a redação do texto monográfico. 

Com o propósito de demonstrar a pertinência do argumento, trata-se agora de rastrear a presença a perspectiva etnográfica numa investigação antropológica na qual o tempo histórico de referência é o passado. Cabe debruçar-se sobre as minhas opções teóricas, metodológicas e literárias na investigação que originou a tese de doutorado (Frehse 2004). E isso para demonstrar como os procedimentos metodológicos da investigação estão impregnados da perspectiva etnográfica. 
Em busca da perspectiva etnográfica

O exercício de estranhamento que viso aqui realizar pressupõe que a perspectiva etnográfica medeia os procedimentos metodológicos, não os determina mecanicamente. Nunca é demais relembrar Malinowski: “Não é suficiente […] que o etnógrafo coloque suas redes no local certo e fique à espera de que a caça caia nelas. […] O pesquisador de campo depende inteiramente da inspiração que lhe oferecem os estudos teóricos” ([1922] 1978: 22-23). Desde então, quando o assunto é etnografia, é freqüentemente reiterada, mesmo que a partir de abordagens teóricas distintas, a premissa de que o conhecimento etnográfico depende de uma boa formação teórica prévia (cf., por exemplo, DaMatta [1974]1978: 24; Geertz [1983]2000: 55-70; Peirano 1995: 44-45; 2006: passim). Tais considerações sugerem que a etnografia não indica mecanicamente o que conhecer. Ela intermedeia a relação do pesquisador com aquilo que quer conhecer com base em determinada formação teórica. E a questão se torna saber como essa mediação se faz presente na definição da questão teórica do estudo, na definição do objeto, na construção de referências metodológicas, no levantamento, sistematização e análise dos dados, na redação da monografia. 

A questão teórica que enfrentei em minha pesquisa de doutorado foi a seguinte: como a sociedade paulistana oitocentista, rural e de fortes raízes estamentais e escravistas, se ajustou, em termos culturais, ao advento da modernidade em seu dia-a-dia na cidade (Frehse 2004: 7)? De fato, o momento é de difusão ali, em intensidade até então inédita, da realidade social e cultural ligada à concepção de que tudo e todos são transitórios, moda, modernos – com todas as contradições que essa realidade envolve e acarreta. É um processo histórico que começa a fazer-se presente no dia-a-dia dos indivíduos em São Paulo; em particular, com a prosperidade crescente das exportações cafeeiras e a decadência da escravidão no país, a partir da segunda metade do século XIX. 

Ajuste cultural certamente não significa abdicar das próprias referências em favor de outras quaisquer. É verdade que, como bem discerniu Marshall Sahlins ([1985]1994: 181-87) a partir de um diálogo com categorias de Marx, os indivíduos colocam, na ação – “práxis” –, as suas categorias “em relações ostensivas com o mundo”. Os significados dos objetos são, na práxis, submetidos a riscos objetivos (acasos) e a riscos subjetivos (as intenções desses mesmos indivíduos e a relação dos signos com outros, no interior do sistema de relações entre signos que define a cultura). É por isso que o autor afirma que a cultura é ordenada historicamente. Todavia, ao mesmo tempo Sahlins argumenta, parafraseando Franz Boas, que “o olho que vê é o olho da tradição”, por causa da capacidade humana de atribuir significados aos fenômenos. Justamente por conceber a “ação simbólica” em termos dialéticos é que o antropólogo recupera, especificamente para o debate sobre a noção de cultura, toda a potencialidade da noção de práxis que, já presente em Marx, foi tão bem desenvolvida pelo sociólogo Henri Lefebvre (1966: 43) na distinção que este fez entre os três níveis da práxis, ou seja, do “ato; relação dialética entre a natureza e o homem, as coisas e a consciência”. Este autor diferenciou entre práxis repetitiva (que “recomeça os mesmos gestos, os mesmos atos em ciclos determinados”), práxis mimética (que “segue modelos”, criando sem saber como nem por quê) e práxis inventiva e criadora (que “introduz descontinuidades no processo global sócio-histórico”). O ajuste que me interessou na investigação aqui perscrutada se dá justamente nesse meio de caminho entre a irreversibilidade da mudança e a originalidade cultural em relação a esta mesma mudança. É um meio de caminho cheio de reinvenções, marcado que é pela ressignificação sempre inconclusa do velho como novo e vice-versa.

Abordei a temática teórica do ajuste cultural à modernidade a partir de interlocução com autores que se preocupam, cada um à sua maneira, em abrir espaço para um aprofundamento teórico-metodológico da práxis marxiana. Por sua vez, esta noção remete instantaneamente à análise dos fatos sociais no plano da vida de todo dia dos indivíduos. Ora, não é para essa seara da vida social que a etnografia enquanto perspectiva epistemológica instiga o antropólogo? Ao sinalizar para a busca epistemológica incessante do “diálogo para valer”, a perspectiva etnográfica estimula o pesquisador justamente a atentar para os pequenos fatos do dia-a-dia, para o aparentemente insignificante que está além – ou aquém – das previsões oficiais e dominantes. É essa a natureza dos dados que marca aquilo que Malinowski chamou de “carne e sangue da vida nativa”. Em passagem célebre, escreveu o antropólogo polonês sobre os chamados “imponderáveis da vida real”: 
Pertencem a essa classe de fenômenos: a rotina do trabalho diário do nativo; os detalhes de seus cuidados corporais; o modo como prepara a comida e se alimenta; o tom das conversas e da vida social ao redor das fogueiras; a existência de hostilidade ou de fortes laços de amizade, as simpatias ou aversões momentâneas entre as pessoas; a maneira sutil, porém inconfundível, como a vaidade e a ambição pessoal se refletem no comportamento de um indivíduo e nas reações emocionais daqueles que o cercam ([1922]1978: 29). 
Como, no meu caso, o assunto era o advento da modernidade em São Paulo no século XIX, era claro para mim que esses “imponderáveis” não poderiam ser apreendidos sem levar em conta o processo histórico mais abrangente de difusão de um modo de vida muito específico, cotidiano, na vida de todo dia dos indivíduos na cidade. Adveio daí a interlocução intensa com a sociologia de Lefebvre – novamente (tendo-se em mente que já a iniciara no mestrado – cf. nesse sentido Frehse 1999 e 2005a). Com o objetivo de aprofundar a compreensão dos dilemas sócio-históricos do ajuste cultural que perpassam a práxis dos indivíduos, uma referência relevante para a reflexão é a abordagem sahlinsiana sobre as ressignificações culturalmente específicas de fatos históricos. E dá-lhe Sahlins – também novamente (considerando que também no mestrado suas reflexões foram relevantes para a abordagem antropológica de outra temática histórica). 

A atenção etnográfica à vida cotidiana acabou sendo relevante também para a operacionalização da questão teórica e conseqüente definição do objeto de estudo. Para uma compreensão antropológica desses ajustes culturais no plano da vida de todo dia dos indivíduos na São Paulo oitocentista, foi fundamental que o objeto de estudo favorecesse a apreensão analítica da dinâmica cultural relativa à práxis desses mesmos indivíduos em sua rotina na cidade de então. Essa orientação epistemológica me impulsionou a um aprofundamento nas abordagens sociológicas da vida cotidiana no mundo contemporâneo, seja em sua vertente microssociológica (cf., por exemplo, Schütz [1970]1979; Goffman [1959]1995; 1967; Garfinkel, [1967]1984), seja em sua visada histórico-dialética (cf. em especial Lefebvre 1958, 1961, [1968]1972, 1981). Tive então como incorporar como orientação metodológica, por um lado, que o plano da vida social cuja análise é favorecida pela perspectiva etnográfica é atravessado por especificidades sócio-históricas. No contexto paulistano em foco, a vida de todo dia se encontrava mais e mais influenciada pelo modo de vida “cotidiano”, que se define pelo fato de que os ritmos temporais e espaciais tributários da racionalidade capitalista interferem de forma crescente na vida de todo dia dos sujeitos a serem estudados; e isso, seja porque esses ritmos representam ameaças inexoráveis, seja por terem se transformado em regras de conduta dominantes, seja por serem forças às quais resistir com unhas e dentes. Por outro lado, analisar as práticas culturais no plano da vida de todo dia implica considerar também as variáveis situacionais que as envolvem. 

Aliar a perspectiva epistemológica da etnografia à orientação metodológica de foco sobre as práticas culturais da vida de todo dia em suas peculiaridades microssociológicas e sócio-históricas conduziu-me a privilegiar como objeto de análise as transformações nas regras de conduta referentes aos comportamentos corporais e às interações sociais no espaço urbano paulistano oitocentista. O objetivo específico passou a ser atentar para como se modificaram as regras de conduta no intuito de averiguar o que elas poderiam revelar sobre a maneira como a sociedade pode ter se ajustado na cidade à difusão da modernidade. 

Mas por que as regras de conduta revelariam algo sobre o ajuste? Elas medeiam, como sugere Erving Goffman, comportamentos e interações ([1956]1967). O que envolve tanto a seara da cultura – se temos em mente que regras são sempre de cunho simbólico – quanto a da moral, já que as regras envolvem um grupo de adeptos, sendo que é a adesão às regras que leva à constância e padronização dos comportamentos. Essa dupla perspectiva permite ir ao encontro de uma terceira: a da história da civilidade nos termos em que a noção foi como trabalhada pelo historiador Jacques Revel. Nos termos deste estudioso, a civilidade é linguagem corporal destinada às “exigências do comércio social”, quer se trate de membros do próprio grupo ou de outros ainda ([1986]1991:169). 

Civilidade é uma categoria êmica da sociedade ocidental européia (Pons 1992:21), sendo que o seu sentido histórico primeiro se liga às regras corporais socialmente desejáveis para a convivência na cidade enquanto forma específica de povoamento humano (etimologicamente “civilidade” remete à conduta socialmente desejável, “civil”, dos “cidadãos”, moradores da “cidade”). Não obstante, com a modernidade a noção começa a difundir-se pelo mundo afora a partir da França com um novo sentido. Corresponde a uma linguagem corporal que, propagada pela burguesia francesa em ascensão econômica e política, a partir do século XVIII, se propunha como adequada à “civilização” constituída a partir da hegemonia política e sociocultural dessa mesma burguesia (Elias, [1939]1993). O termo passa a dizer respeito aos tempos “modernos” instaurados pela mediação do poder dessa classe. Não é, nesse sentido, casual que tenha sido na Paris das revoluções liberais do século XIX que foi inventado por Baudelaire o neologismo “modernidade”. 

À luz dessas ponderações, compreender como se alteram as regras de conduta em São Paulo em meio ao advento da modernidade ali significa apreender como a sociedade, tão marcada pela cultura caipira das plagas rurais e interioranas do sudeste da antiga colônia portuguesa na América, foi se ajustando aos padrões de civilidade implícitos a essa realidade social e cultural marcada pela concepção de que tudo e todos são transitórios. 

Evidentemente, o objeto precisou ser recortado. Civilidade onde exatamente? Quando? De quem? Também esse procedimento metodológico foi encaminhado pela mediação da perspectiva etnográfica. As ruas paulistanas à luz do dia emergiram como cenário espaço-temporal privilegiado para o contato analítico com aquilo que Geertz chama de dimensão “pública” da cultura ([1973]2000: 12). Como proclama a literatura especializada na temática da modernidade nas grandes cidades oitocentistas (Frehse 2004: 14-17), a rua constitui ali o espaço que sintetiza as concepções de fugacidade e transitoriedade que caracterizam essa realidade social e cultural. Então, concentrar-se nas transformações nas regras de conduta nesse cenário à luz do dia, que é quando ocorre com toda a intensidade a difusão de objetos, relações sociais e concepções historicamente próprias da modernidade em meio à movimentação humana intensa que ali se dá, favorece a análise etnográfica do ajuste cultural à civilidade historicamente própria desse tipo de realidade. Com efeito, a regra de movimentação corporal nas ruas das grandes cidades modernas à luz do dia envolve um conjunto de técnicas corporais, usos físicos do corpo (Mauss [1936]1997: 365), que, exercitadas num ritmo específico, numa seqüência de repetições indutoras de “maneiras” (Lefebvre 1992: 55), resultam num comportamento corporal definido: a circulação, passagem regular pelas ruas. Quanto às interações, a regra que as perpassa é a impessoalidade, cedo problematizada, em termos teóricos, por Georg Simmel ([1903]1967: 14-18). E isso, quer os indivíduos se movimentem pela cidade isolados ou ajuntados em multidões. A circulação impessoal como regra básica daquilo que chamei de civilidade moderna (Frehse 2004: 25) exprime assim, no plano dos movimentos corporais e dos contatos sociais diários, o princípio de transitoriedade que sintetiza a modernidade. Circulação: trânsito. Impessoalidade: atributo do transeunte. É a essas referências que os indivíduos tiveram de ajustar os seus corpos em seu dia-a-dia nas ruas de São Paulo, modificando de forma original as regras de civilidade historicamente antigas que até então tinham mediado os seus comportamentos corporais e interações sociais nas ruas. O que pode revelar os termos do ajuste em questão no plano “carne e sangue da vida nativa” – no caso, substanciado nos comportamentos corporais e nas interações. Esse plano é fundamental para o “diálogo para valer” com as práticas culturais paulistanas em processo de ajuste à difusão da modernidade, nos Oitocentos.

Definido esse recorte, a questão teórica pôde ser reposta, só que de maneira mais precisa. É que o contato com a historiografia paulistana referida à vida social nas ruas do início dos Oitocentos deixava entrever que ali a circulação e a impessoalidade não eram de forma alguma regras de conduta relevantes ali durante o dia. E muito menos à noite. As ruas, até mesmo as centrais, eram lugares em que os pobres, escravos, forros ou livres, se deixavam ficar dia a dia e pelas quais os senhores e suas famílias passavam apenas em ocasiões especiais, festivas, nem um pouco cotidianas. Ora, o que seria desse mundo em face da difusão da modernidade e suas regras de civilidade nas ruas, isto é, em face do irreversível ajuste ao moderno e a diferenciação original em relação a este? Como a sociedade paulistana foi, nas ruas, se ajustando aos padrões da civilidade moderna ali? 

A fim de responder a questão, permanecia necessária uma referência metodológica que me guiasse analiticamente pelas ruas paulistanas a serem perscrutadas através da documentação histórica. Que personagem me forneceria os seus “ombros” para que eu, por detrás deles, pudesse passear analiticamente pelas ruas do centro paulistano entre o início do século XIX e o início do XX em busca de um estranhamento etnográfico das regras de civilidade e suas mudanças ao longo do tempo? 

Foi essa preocupação simultaneamente epistemológica e teórico-metodológica que trouxe para o primeiro plano a importância metodológica do transeunte para a minha investigação. É ele o protagonista mais acabado das regras de conduta que definem a civilidade moderna. Trata-se da personagem na qual qualquer indivíduo – homem, mulher ou criança – se transforma nos momentos mais ou menos fugidios em que pelas ruas passa entre um lugar e outro com regularidade. Na rua o transeunte corporifica a circulação como regra de conduta que envolve os comportamentos corporais dos indivíduos nesse espaço; e a impessoalidade como regra relativa à sociabilidade desses indivíduos ali. 

Estabelecida a referência metodológica, abria-se espaço analítico para novas perguntas. Quem seriam os transeuntes nas ruas de São Paulo nos Oitocentos, cenário físico em que a diferença entre aqueles que serviam e aqueles que eram servidos se expressava também no tipo de movimentação física por ali? Quem transitaria por essas ruas dia a dia, se elas eram eminentemente lugares dos pobres, e se os indivíduos social e economicamente mais prestigiados as freqüentavam apenas em dia de missa ou de festa? E uma vez nas ruas, como interagiriam entre si os indivíduos? 

Em relação à São Paulo oitocentista, não faltam abordagens sobre o dia-a-dia de grupos sociais específicos. Mas pouco se sabia sobre uma outra dimensão da experiência que os membros de cada segmento vivenciaram separadamente, em suas movimentações e interações diárias nesse espaço: a relação de cada indivíduo (de qualquer que seja o grupo) com e em meio a terceiros variados nas ruas, indivíduos mais ou menos “estranhos”, enquanto a modernidade ia se difundindo na cidade.